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Polícia e favela: dois extremos?

Entre o temor nas abordagens e a repulsa aos policiais nas periferias

[Imagem: Marcio Bertoli]

Periferia de São Paulo. Marcos*, 23, nos detalhes finais do corte em degradê, estiliza atento o risco no cabelo de seu cliente. “Isso aqui é arte, eles vêm aqui e ficam felizes pra caralho com o resultado”, relata sem tirar os olhos do penteado, ao passo que Vinícius* parece contente com o novo visual e Júlio* aguarda a sua vez de ser atendido na barbearia.

O perfil dos três? Negros, pardos e periféricos. O retrato da população mais afetada pela letalidade policial no ano de 2019, correspondendo a 79,1% das mortes pelos agentes, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

As características das pessoas mais revistadas não destoam. É o que aponta a pesquisa “As Faces do Racismo”, um levantamento de percepção realizado pelo Instituto Locomotiva, em parceria com a Central Única das Favelas (CUFA), em que para 94% dos entrevistados, de um universo de 3111, negros e periféricos são os mais suscetíveis a um tratamento violento nas abordagens policiais.  

A sensação não é outra, senão o temor de ser discriminado pela cor e pelo local de origem e a descrença na segurança pública por parte dos moradores dos bairros mais pobres. 

O reflexo? Uma dicotomia entre polícias e periferia. A brecha ideal para a escalada de facções criminosas em comunidades e para o avanço de políticas conservadoras na segurança pública, a exemplo das propostas no governo de João Doria e do agora impetimado Wilson Witzel, ambos políticos que apostaram na letalidade policial como solução à violência.

Nesse cenário, a doutrina de guerra ao crime vitimiza minorias não apenas nas comunidades, mas também dentro da própria corporação. Segundo dados do FBSP, dos 172 policiais mortos em 2019, 112 eram negros ou pardos, enquanto brancos são a maioria dentro das unidades policiais do Brasil.

O soldado Victor de Oliveira Farias, um homem negro, foi o claro exemplo. No ano de 2019, durante atendimento a uma ocorrência de roubo, na estrada do M’Boi Mirim, foi alvejado por vários tiros e não resistiu aos ferimentos, deixando sete filhos. 

Entre o temor de abusos nas abordagens e a ausência de integração das polícias nas periferias, a J.Press traz relatos dos residentes do Jardim Ângela, outrora o distrito mais violento do mundo segundo a ONU, e de Sérgio*, soldado da Polícia Militar de São Paulo, também residente da zona Sul da capital. 

Mesmo céu, mesmo CEP, no lado Sul do mapa:


J.Press – Existe uma conotação negativa por ser negro e do Jardim Ângela?

Marcos – Sem dúvidas! O meu estilo [chavoso], a minha tatuagem, a cor da pele, tudo isso é visto torto pela sociedade. Na comunidade é mais tranquilo. Mas em outros lugares, é outra história. 

 

[Imagem: Marcio Bertoli]

J.Press – E nas abordagens policiais? Qual o reflexo?

Marcos – Bate aquela insegurança. Já tive uns enquadros pesados aqui na vila. Um meio que os caras [os policiais] pegaram na maldade. 

 

Ilustração de uma abordagem das polícias nas periferias
[Imagem: Marcio Bertoli]

J.Press – Como se desenrolou esse episódio?

Marcos – Me enquadraram por suspeita de uma fita que eu não tinha nada a ver. Eles estavam procurando outro moleque por roubo, ou algo assim, e meio que começaram com umas coisas do tipo “bora neguin, foi você” e “a gente vai te levar se você não assumir o B.O.”. Deram até um tapa na minha cara. Tentaram entrar no meu psicológico. E o mais engraçado? O policial era negro, você acredita? No erro, além de forçar o meu braço. No fim, me deixaram ir e deram a ordem de não olhar para trás. Me vi sem dignidade.

 

[Imagem: Marcio Bertoli]

J.Press – Por que você acha que isso aconteceu? 

Marcos – Sinceramente, não sei! Eu estava com os moleques e meio que eles miraram [suspeitaram] em mim. Conversa de esquina. Já tinha visto umas viaturas passar… Mas ser negro, da comunidade e funkeiro, os cara deve entender como suspeito. 

 

[Imagem: Marcio Bertoli]

“É essa fita mesmo, eles devem achar
nóis suspeito por ser preto ou mais claro [pardo]. Já tive um rolê assim com os ROCAM [polícia motorizada] quando estava voltando do trampo. Eles me pararam e apontaram a arma na maior agressividade”, relembra Vinicius, de 24 anos, um jovem pardo e com tatuagens pelo braço.


J.Press – Você é abordado com frequência?

Vinicius – Pra porra! Já fui enquadrado [com 16 anos] até na presença da minha mãe. E essa foi a primeira vez. Depois dali, polícia como exemplo, coisa de moleque, já era. Ela ficou preocupada e começou a me dar conselhos pra quando eu estivesse andando na rua e fosse parado pelos caras: abaixar a cabeça, não responder [de forma grosseira], não ficar em grupinho… Depois disso, entendi o significado de ser favelado pros polícia.

 

Policial derruba material de jovem em ilustração que demonstra ação da abordagem das polícias nas periferias
[Imagem: Marcio Bertoli]

Ao banco de espera, Júlio*, um senhor negro, também deixa as suas impressões. “Fico preocupado com os meus filhos. Sempre que vão sair à noite, é RG na mão, ‘sim senhor’ e ‘não Senhor’”, comenta.


J.Press – Qual o motivo da preocupação, seu Júlio? 

Júlio – São da minha cor. Mas o que mais me preocupa é o pequeno [de 15 anos]. Outro dia, indo para a escola, o moleque teve o caderno jogado das mãos por um tapa de polícia. Nunca mais ele sai sem o documento e sem tá do lado de alguém. Ou à noite, sozinho.


J.Press – Qual foi o sentimento do senhor?

Júlio – Indignação e medo. Nunca pensei que meus filhos iam passar pelo que eu passei. O menino é direito, só gosta de se vestir com essas roupas de marca, mas estuda e fala que um dia vai ser professor de educação física — o xodó da casa, esse moleque. 


J.Press – O senhor citou a sua experiência como comparativo, então como era a polícia na sua juventude?

Júlio – Era mais brava do que hoje. Lembro da ROTA [batalhão de choque]. Chegava no campão de terra, aquele furgão cinza [Chevrolet Veraneio], a negada saía correndo [relata aos risos]. Eu mesmo? Fui levado uma vez. Pensei que ia morrer, porque eles, nos anos 80, eram muito mais violentos na favela. A gente sabia que eles podiam bater e esculachar à vontade. Minha geração sofreu.


J.Press – E qual a percepção de vocês sobre a atuação policial nas periferias, hoje?

Júlio – Acredito que tem polícia bom e ruim, mas com o que vem acontecendo, igual a morte daquele rapaz [George Floyd], nos Estados Unidos, algumas coisas tem que melhorar. Isso a gente vê todo dia aqui [no Brasil]. Muita violência. Os homens [policiais] têm dificuldade na comunidade, eu sei. O crime está instalado aqui e essa juventude de hoje complica muito o trabalho deles. Mas não precisa ser bruto igual naqueles tempos. Tem muita gente de respeito no [Jardim] Ângela.

Vinícius – Real? Não sei o porquê da polícia aqui. A favela tem sua própria lei e a presença deles não transmite paz e sim medo. Quando uma mulher apanha do marido, quem resolve? Os caras [traficantes]. Mesma coisa quando tem briga de vizinho, são eles que resolvem… sei lá! Acho que eles [os policiais] estão fora da nossa visão e não se importam. Não tenho fé.

Marcos – Eles precisam ser mais tranquilos na vila. A atitude deles tira qualquer chance de uma ideia [diálogo] com os moradores. O Vinícius lançou o papo reto. Só diria que a molecada perde aquela visão de boa pessoa que eles deveriam ter. Os policiais parecem intocáveis na periferia.

 

Ilustração em quadrinhos. Demonstração da dicotomia entre polícias e periferias
[Imagem: Marcio Bertoli]

Sérgio, um homem pardo de 26 anos, nos conta via áudio do WhatsApp sobre sua atuação policial na comunidade e os desafios enfrentados na profissão.


J.Press – O senhor sempre atuou na periferia?

Sérgio – Não. Já trabalhei numa companhia no centro da cidade.


J.Press – Diferentes lugares, diferentes dinâmicas de patrulhamento? 

Sérgio Sim. Lá [no centro] atuei no policiamento de rua, principalmente nas de comércio. Aqui, na base comunitária, a gente atende de tudo. 


J.Press – Qual dos dois extremos é mais estressante?

Sérgio – Não tem essa. Ser policial é tensão a todo tempo. A gente nunca sabe de onde pode sair alguém mal-intencionado. Mas vejo que na periferia é aquela adrenalina a mais, por conta do espaço caótico que é.


J.Press – Por conta disso, há distinção do modo da abordagem entre os moradores da favela daqueles que residem em bairros de classe média e alta? Quais os critérios nesses extremos, se há algum, na sua opinião?

Sérgio – Acho que não. É muito do comportamento da pessoa ao avistar a viatura ou a gente fardado — se fica nervosa, se faz movimentos bruscos, olha de forma desconfiada etc. Porém a gente pode dizer que a periferia corresponde ao maior número de revistas pessoais.

 

Carro da polícias passando pela periferias
[Imagem: Marcio Bertoli]

J.Press – Negros, jovens e vestimentas?

Sérgio – Normal. Mas geralmente quando tem tatuagem de simbologia e usa muitos apetrechos, ficamos em alerta.


J.Press – Então há um perfil?

Sérgio – Na realidade, tatuagem com simbologia a gente pede para ver, porque o indivíduo pode ter um palhaço no braço [homicídio de policiais], uma carpa [ascensão em facções], enfim, tatuagens que remetem a participação no crime organizado. Apetrechos, digo objetos que dificultam a identificação do rosto. Daí nossa maior atenção.


J.Press – Os jovens, em alguns casos, têm essas tatuagens sem saber a real mensagem por trás delas. Não caberia à polícia instruí-los sobre o significado dos símbolos nas abordagens? 

Sérgio – A gente avisa, mas a garotada custa a entender. Deveria ter um programa na escola sobre isso, como o Proerd. Mas o papel da polícia é garantir segurança. Educar cabe aos pais e à escola. As pessoas confundem nosso propósito.


J.Press – E sobre a profissão? Quais os desafios?

Sérgio – Desgastante. Recebemos pouco pelo risco que corremos, há abusos de superiores, rigidez no sistema e falta de reconhecimento do cidadão de bem. 


J.Press – Isso interfere no cotidiano, sobretudo na atuação em comunidades mais carentes?

Sérgio – Você deve ter um bom psicológico, do contrário é problema na certa. Já nas comunidades, vejo que todo e qualquer companheiro se sente mais aflito, pois sentimos certa repulsa dos moradores e uma espécie de monitoramento.

[Imagem: Marcio Bertoli]

J.Press – Isso dificulta o diálogo com eles?

Sérgio – Temos maior dificuldade, é certo. O crime já é um mal enraizado e, muita das vezes, os moradores compactuam com esse tipo de situação. Me diga! Como um efetivo de poucos homens por turno oferecem um serviço de qualidade para essa população? Não tem como. Também acredito que a má polícia já caiu no imaginário e isso dificulta qualquer proximidade.

 

 

J.Press – O senhor se sente vulnerável na condição de policial em localidades desse tipo?

Sérgio – Sem dúvidas. Mas acredito que há uma espécie de violência silenciosa [contra os policiais] de modo geral. Se um erra, isso chama muita atenção e todos pagam. Igual aquele episódio do agente que levou vassouradas de uma senhora e depois pisou no pescoço dela. É certo que não foi correta a atitude do mike [agente], mas e a atitude da senhora? É correto você desrespeitar um servidor no exercício do seu dever? Bater? Cuspir? Jogar pedras nele? Já virou baderna!


J.Press – Sobre isso, considera que já houve excessos de sua parte ou de colegas nas abordagens em bairros mais pobres?

Sérgio – Não. Por mais que nós enfrentemos sufocos nas ruas, mantenho a postura. Já sobre os colegas, prefiro não comentar.

[Imagem: Marcio Bertoli]

J.Press – Tais sufocos resultam em abalos psicológicos? Se sim, já sofreu algum?

Sérgio – Tô nas ruas há três anos, só tive uma crise de estresse [pós-traumático], após um parceiro morrer em serviço. Isso mexe muito com a gente, fora as outras dificuldades da atividade. Fico imaginando se o próximo pode ser eu ou um amigo [da corporação]. 

 

 

J.Press – E para encerrarmos: recentemente, a PMESP (Polícia Militar do Estado de São Paulo) realizou importantes alterações no seu manual antirracista e acoplou câmeras ao fardamento dos agentes. Acredita que são soluções de longo prazo quanto aos excessos em abordagens, ou deve haver a reformulação do atual modelo de policiamento? 

Sérgio – Não tem como questionar. Isso ajudou muito para separar o joio do trigo, porque o nosso RDPM [Regulamento Disciplinar da Polícia Militar], quando comprovado um erro do mike, cai em cima. Se ele foi racista, atuou com o uso desproporcional da força e tudo mais, que a justiça seja feita. Agora, acredito que o atual sistema de segurança [pública] deve sim passar por reformas. Isso, talvez, melhore nossas condições de trabalho e pode gerar mais fé nos policiais entre os cidadãos. Passamos, atualmente, por muitas lutas e isso pode, reconheço, se refletir em um mal policiamento. A polícia deve ser de todos.

 

*Todos os entrevistados preferiram ter suas identidades preservadas.

[Imagem de Capa: Marcio Bertoli/@ilustracomics]

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