Hugo Nogueira
“Humoresque” é o termo que define uma peça musical caracterizada pela leveza e pelo humor. Trata-se de um título extremamente conveniente para uma requintada produção cinematográfica romântica, plena em diálogos cortantes e soluções dramáticas grandiloqüentes, apesar de nem sempre convincentes, protagonizada por Joan Crawford, uma das maiores estrelas de todos os tempos.
O enredo de Acordes do Coração (Humoresque – 1946) aporta as marcas essenciais do melodrama clássico na Golden Age de Hollywood. O jovem e ambicioso violinista Paul Boray (John Garfield) torna-se o protégé de Helen Wright (Joan Crawford), uma rica diletante enredada num tedioso casamento sem amor e cujo marido, Victor Wright (Paul Cavanaugh) mostra-se notavelmente compreensivo tanto frente às infidelidades ocasionais da sua esposa quanto com o ostensivo pendor alcoólico desta. O relacionamento de Paul e Helen, obviamente, evolui rapidamente para algo menos melódico e mais passional com conseqüências trágicas. O egocentrismo possessivo de Helen é duramente golpeado na medida em que Paul, reafirmando sistematicamente uma renitente e inabalável fidelidade à sua arte musical, recusa-se a ser dominado pelos caprichos de sua amante. Quando Helen compreende a natureza destrutiva do amor que a une a Paul, decide pôr fim ao romance de um modo extremo. Na sua derradeira cena, Joan Crawford volta a ser ela mesma e, diante da vastidão do Oceano Pacífico, sob os crescentes acordes do Liebestod de Tristão e Isolda de Wagner, a estrela enfrenta o dilema de sua personagem num emblemático momento do melodrama romântico norte-americano o qual, a despeito dos exageros dramáticos, vale o filme inteiro.
Se, de um lado, o filme se caracteriza por uma atmosfera extravagantemente luxuosa a qual, eventualmente, tende ao kitsch, por outro lado, a história é sempre envolvente e se mantém à altura das expectativas. Embora John Garfield demonstre sua habitual competência no retrato do músico-prodígio, Acordes do Coração é um filme inteiramente construído ao redor de sua protagonista, a mega-estrela de Hollywood, Joan Crawford. Nos filmes de Crawford, o hibridismo entre as personalidades da atriz e da personagem (fenômeno basilar na consubstanciação do estrelato hollywodiano) foi sempre metodicamente levado ao paroxismo – e Joan Crawford, uma estrela personalíssima, jamais decepcionava a audiência que a acompanhou fielmente diante das telas em quase 45 anos de um ininterrupto estrelato. A atriz, sempre subestimada pela crítica especializada e duramente atacada pela rigidez formal de suas interpretações, demonstrava, não obstante, uma invulgar habilidade na composição das inseguranças e vulnerabilidades emocionais da mulher de meia-idade e os roteiros de seus filmes na década de 40 ofereciam-lhe oportunidades incomparáveis de sofrer todo calvário da paixão madura num langoroso esplendor. Invariavelmente os filmes construídos ao redor da persona cinematográfica de Joan Crawford apresentavam a atriz glamurosamente despedaçada pelo ardor romântico: o roteiro correto de Acordes do Coração (parcialmente escrito pelo notável dramaturgo Clifford Odets) não foge à regra. Helen é uma mulher essencialmente frágil e insegura, incapaz de lidar com as complexidades do amor, experimentando todos sabores e dissabores de uma turbulenta paixão. O tom gélido com a qual Crawford provê a ninfomania de sua personagem, a segurança da elocução dramática da atriz e a intensidade de seu rosto extremamente expressivo atravessam o tempo e justificam esta sofisticada obra que, em mãos menos competentes, estaria infalivelmente destinada ao esquecimento.
Acordes do Coração (Humoresque)
1946 – Estados Unidos – 125 minutos – P/B – drama
Direção: Jean Negulesco
Elenco: Joan Crawford, John Garfield, Oscar Levant, J. Carrol Naish