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As pandemias têm fim?

O término de uma crise sanitária internacional apresenta divergências e engloba diferentes perspectivas

A Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) relativa à covid-19 chegou ao fim no dia 22 de maio de 2022 após o prazo de um mês desde a oficialização pelo Ministério da Saúde. Apesar dos argumentos de alta cobertura vacinal e controle epidemiológico, profissionais da saúde e cientistas alertam para os perigos associados ao decreto que determina o “fim” da pandemia no Brasil. 

O posicionamento da Organização das Nações Unidas (ONU) é concordante com a opinião da comunidade científica. Em seu Plano Estratégico de Preparação, Prontidão e Resposta para o término da emergência sanitária da covid-19, publicado em março de 2022, a instituição alerta para um cenário de risco pela flexibilização de políticas públicas em diversas nações e a uma transmissão global do vírus em taxas expressivas. Desinformação, vulnerabilidade de determinados países e incertezas sobre a evolução viral e sua permanência em animais são citados no documento.  

Ao mesmo tempo em que essa discussão ocorre, países da Europa e do leste asiático tiveram aumento de casos, assim como o Brasil mais recentemente. Medidas de isolamento social e fechamento de comércios foram retomadas em nações como a China, reativando a preocupação da sociedade quanto à recuperação socioeconômica. Afinal, quando seria possível determinar o fim de uma pandemia?

 

Do início ao “fim”

O conceito de pandemia passa pelo campo da epidemiologia, área da saúde que estuda a distribuição e os condicionantes de uma doença. A definição mais comum é a de um aumento brusco de uma enfermidade em uma população definida (epidemia), mas com ocorrência mundial — pelo menos em dois continentes. Elas estão associadas a um outro conceito: Emergências em Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII).

As ESPII’s são mais novas e surgiram após a primeira pandemia de Sars-Cov em 2003, iniciada na China. Segundo o epidemiologista e professor de medicina preventiva na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Expedito José de Albuquerque Luna, a comunidade internacional cobrou a China quanto à notificação do surgimento da epidemia em seu território. No entanto, o país se defendeu alegando que o Regulamento Sanitário Internacional (RSI) vigente não previa isso. 

O RSI anterior a 2007 pautava o relato de doenças específicas e historicamente conectadas ao comércio intermarítimo. Apesar de mudar em alguns períodos, havia uma priorização quanto à Cólera, Peste, Febre Amarela e Varíola. Essa última, está erradicada desde 1980, embora o mundo observe o surto da varíola dos macacos. 

Com o caso de 2003, surge um novo regulamento que determina a notificação de mais doenças e a definição de ESPII, conforme explica o professor. “São basicamente três critérios: ser um evento inusitado, ou seja, algo inesperado, diferente; que tenha risco de propagação internacional — ir além das fronteiras de um determinado país —; e que exija uma resposta coordenada internacional. Para operacionalizar isso, o Regulamento Sanitário Internacional incluiu, entre os seus anexos, um algoritmo [questionário com perguntas e respostas esperadas].”

Ele também reforça que organizações da sociedade civil e não necessariamente o governo passaram também a ser consideradas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para notificar novos eventos. Os países signatários se comprometem a criar um sistema de investigação e detecção das emergências, composto por um mecanismo de Vigilância Epidemiológica — recursos humanos e laboratoriais para identificar e medir uma doença  — e por um Ponto Focal Nacional, um “braço” da OMS disponível 24 horas.

Luna descreve que o fluxo não é automático. A partir do momento que a OMS recebe o comunicado, equipes técnicas vão avaliar a situação e repassar informações ao Diretor-Geral da Organização se a considerarem válida. O diretor convoca um Comitê de Emergência composto por especialistas selecionados a fim de elaborar um posicionamento final.

 

Infográfico que traz a linha do tempo de epidemias, desde a Peste Negra até a Pandemia de Covid-19.
Infográfico com linha do tempo das principais epidemias com relevância internacional na história.

 

 

Até o momento, nove situações levaram à convocação do comitê, mas apenas seis foram consideradas emergências de interesse internacional. O epidemiologista declara que há muita crítica quanto a essas ocorrências. “Elas trazem um grau de incerteza e vários pesquisadores têm apontado que os critérios para decretação das emergências em saúde pública de interesse internacional não estão muito claros porque os critérios que citei são vagos e estão sujeitos à interpretação”.

Luna faz referência a um estudo publicado em 2020 pelo Centro de Segurança Sanitária da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. A pesquisa analisou todas as nove reuniões já ocorridas do Comitê de Emergência da OMS e chegou ao resultado de que existe inconsistência na aplicação dos três critérios pelo órgão. O artigo também detalha que foram considerados outros aspectos da transmissão não englobados pelos critérios.

No caso da emergência do vírus Zika entre 2015 a 2016 no Brasil, o órgão a decretou com o argumento de ausência de conhecimento suficiente sobre a doença.

Já no surto de Ebola ocorrido na República Democrática do Congo, em 2014, a OMS baseou-se na incapacidade dos serviços de saúde suportarem a demanda. A instituição foi criticada pela demora quanto a uma conclusão.

O médico salienta que “a questão de gerar margens para interpretação de quando começa a crise sanitária também está colocada para quando ela se encerra. Não está claro em que momento e o que leva a organização a decidir que a emergência acabou’’. Luna faz menção a uma entrevista fornecida por Mike Ryan, Diretor de Emergências em Saúde Pública na OMS, sobre o foco em evitar o número de hospitalizações e de mortes pela cobertura vacinal e impedimento da transmissão do coronavírus.

 

A permanência da pandemia

Anna Cristina Rodopiano de Carvalho Ribeiro, historiadora, doutoranda e mestra em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, afirma que o conceito de pandemia é mutável nas ciências humanas. “Para além de um acontecimento biológico e coletivo, ela é um grande fenômeno social no sentido do que causa disruptura, tragédia.” Rodopiano faz parte dos grupos de pesquisa História, Memória e Proteção à Saúde da FSP e do Salus, Grupo de Estudos de História das Práticas Médicas e de Saúde da FMUSP, atuando em pesquisas relacionadas a contextos de crise sanitária.

“A pandemia é multidimensional porque, para que seja reconhecida como uma questão de saúde pública, uma emergência sanitária ou uma epidemia, para que ela vá para a bancada do laboratório e um arsenal terapêutico seja construído em torno dela visando a erradicação da doença, ela está em uma trama, em uma construção social específica. Passa por dimensões políticas, culturais, científicas.”

Da mesma forma, a pesquisadora salienta que o término de uma pandemia envolve esses mesmos fatores. Para ela, além dos organismos internacionais, existe um contexto composto de governos locais, a população, as sociedades científicas, as sociedade civis, entre outros. O consenso do que é uma emergência sanitária global e quando ela termina passa pela narrativa e credibilidade de cada um desses agentes.

Em seu trabalho de mestrado, Rodopiano estudou a pandemia da Gripe Espanhola de 1918 com enfoque no interior de São Paulo, na cidade de Botucatu. A disseminação do vírus Influenza H1N1 foi responsável por uma taxa de mortes tão elevada quanto as da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918).

Ela relata que por volta de dois terços da população adoecida em Botucatu estava em um hospital de isolamento destinado para pacientes que não podiam pagar o atendimento e uma parte recebia alimentos e medicamentos do governo em casa. O bairro mais afetado foi o da Estação, onde viviam pessoas em más condições de trabalho e em moradias aglomeradas.

A transmissão da gripe foi acentuada em um cenário de casos de tuberculose e tifo já relatados pela população à câmara municipal na época. Ela menciona que o mesmo cenário se repete “como uma permanência histórica” em outras epidemias. “Precisamos romper as iniquidades, as desigualdades sociais. Os corpos que sempre estão mais expostos ao risco e têm menos acesso à assistência são os corpos negros e periféricos”.

“Se olharmos epidemias na proporção da Gripe Espanhola, será que elas chegaram ao fim?” A historiadora afirma que essa perspectiva e a historicidade em torno da memória da Gripe Espanhola a acompanharam durante o estudo do doutorado e representaram uma “memória” importante para a reflexão sobre a pandemia de covid-19. Durante a investigação, ela constatou a prevalência de casos gripais em 1919 e 1920 assim como a piora das desigualdades já existentes. “Os impactos nas construções políticas, na construção de novos saberes, de mentalidades, na estrutura socioeconômica. As dívidas que a municipalidade fez naquela época e que passaram mais de 20 anos sendo pagas e afetaram em muito a saúde financeira”.

 

Acertos e erros

Mesmo com as críticas voltadas à ONU, Luna defende que o órgão tem sua importância. A Organização se destaca por sua multilateralidade e por selecionar especialistas reconhecidos. São, ao todo, seis escritórios regionais: para as Américas; para a África; para o Sudeste Asiático, para a Europa, para o Mediterrâneo Oriental; e para o Pacífico Ocidental. Sua atuação é fundamental no apoio aos países mais vulneráveis.

“Cito, por exemplo, a epidemia de febre amarela em Angola em 2016, na cidade de Luanda. Essa foi uma das nove que foi julgada por um comitê de emergência e não foi considerada um evento de interesse internacional. Apesar disso, ela preenchia vários critérios, tanto que a OMS convocou um grupo de profissionais do mundo inteiro para trabalhar no país.”

O professor identifica que existem aprendizados ao longo das emergências sanitárias. As medidas de barreira utilizadas pela China, como quarentenas e bloqueio de cidades, são algumas delas, mas com custo social e econômico a ser considerado, segundo o especialista. A dependência da importação de insumos como Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e material para diagnósticos é outra questão a ser resolvida.

Já as tecnologias de RNA mensageiro, usada na vacina da farmacêutica Pfizer, e de vetor viral, na vacina da AstraZeneca, de acordo com ele, foram uma conquista adiantada pela urgência da covid-19. No entanto, é necessário um desenvolvimento maior da cooperação entre saúde humana e veterinária sobre o coronavírus. “Por que isso é importante? Porque do mesmo jeito que os humanos infectaram os cães, os gatos, os animais silvestres, isso pode voltar. Um novo vírus, modificado por esse salto de espécies, pode voltar aos seres humanos. Por isso tudo, é preocupante a decisão de considerar que a pandemia acabou.”

O Sistema Único de Saúde (SUS) tem papel fundamental “tanto para atender a maioria da população que não é detentora de um seguro de saúde privado, bem como na organização das campanhas de vacina”, conforme diz o epidemiologista. “É um sistema complexo, de base descentralizada, no qual é necessário um comando que se legitime por tomar decisões acertadas. O que vimos foi um desencontro total numa abdicação da atribuição do Ministério da Saúde de comandar a resposta à pandemia de covid-19.”

Rodopiano também realiza um paralelo entre 1918 e 2020 quanto ao socorro prestado à população. Vários estudos historiográficos apontam que o poder público não estava preparado para responder à altura da epidemia de Gripe Espanhola, enquanto a gestão atual teve inúmeras e graves inconsistências na condução da crise sanitária da covid-19, como desmonte de políticas públicas, baixa realização de testes diagnósticos, inacessibilidade seguida de desigualdade na cobertura vacinal da população, juntamente à propagação de desinformação e ataques à ciência, insegurança do armazenamento de dados sobre a doença, entre tantos outros.

Para além dos insumos, há a questão da comunicação em saúde pública como uma das premissas do SUS. “Dentro dos processos epidêmicos e das ações sanitárias, vivemos uma permanência do desafio de construir essa comunicação em saúde em parceria com a população e não apenas para ela”, diz a historiadora. A Revolta da Vacina, de 1904, no Rio de Janeiro, é um acontecimento histórico que nos leva a pensar a recorrência desse desafio ainda que em diferentes contextos sociohistóricos, visto que na ocasião foram adotadas medidas sanitárias de forma impositiva.

“Precisamos pensar em saídas que sejam plurais e que deem conta de agendas, ações e pautas dentro dessa questão multidimensional pandêmica, de todos os desafios ecológicos, sociais, culturais, políticos e econômicos envolvidos.”

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