Jornalismo Júnior

logo da Jornalismo Júnior
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Manhã de pandemia em uma Unidade Básica de Saúde

Como de fato estão atuando os postos públicos frente à calamidade proporcionada pelo coronavírus

— Bom dia, posso ajudar?

— Pode sim! Tô com a garganta inflamada faz 7 dias, preciso de receita pra amoxicilina.

— Você tá louco? Essa crise, você com sintomas de corona e vem aqui sem mais nem menos?

— Li que garganta inflamada, não acompanhada de outros sintomas, por mais de 5 dias, descarta a possibilidade de corona; até por isso vim só agora.

Moro no Grande ABC, utilizo sistema de saúde público. Fiquei deveras em dúvida entre ir à Unidade Básica de Saúde (UBS) próxima da minha casa a fim de procurar um diagnóstico para minha garganta inflamada, ou aguentar o incômodo e não passar pelo transtorno que é um posto de saúde público em momento de pandemia. Aliás, eu não fazia ideia se haveria transtorno, só presumi; não me lembro de ter passado por uma pandemia com tamanho impacto na vida cotidiana.

Sim, outras já existiram. Pode parecer que não, diante do desespero quase generalizado e da dificuldade de ação das autoridades em relação à atual situação. Mas, na verdade, pandemias não são fenômenos tão incomuns assim na história da humanidade. 

A última vez em que a Organização Mundial da Saúde decretou uma pandemia foi em 2009 com o vírus H1N1, causador da chamada “gripe suína”. À época, estima-se que o vírus tenha infectado cerca de 1 bilhão de pessoas nos primeiros seis meses após ser detectado. Até outubro daquele ano, foram 18.449 mortes confirmadas pela doença no mundo. Já a gripe espanhola, em 1918, considerada a maior pandemia da história recente, foi responsável por cerca de 50 milhões de mortes no período de um ano.

No caso da Covid-19, em 30 de março de 2020 havia 777.286 casos confirmados e 37.140 mortes ao redor do mundo, cerca de três meses após o surgimento do vírus, na China.

Mortes em decorrência da H1N1 e coronavírus

A curiosidade desequilibrou a balança e lá fui eu (com um pouco de medo de retornar para casa mais enfermo do que quando a deixei, devido à Covid-19). Caminho alguns minutos e me deparo com um cenário bastante diferente daquele que imaginara.

 Diria que a unidade passava também por uma quarentena — visto o vazio daquela casinha que me acostumei a ver cheia no sol ou na chuva, de jovens, idosos, enfermos e outros nem tanto —, se não fosse o moçoilo alto, de cabelos extremamente pretos, que veio ao portão de entrada da UBS me atender.

— Mesmo assim é perigoso, não pode ficar saindo de casa com sintomas – replicou com aspereza –, me dá sua carteirinha do posto.

Entrego o documento para o homem que usa, além de luvas e máscara, um avental isolante, assim como todos os agentes da unidade.

— Número para contato? Mora com quantas pessoas? – pergunta enquanto mede minha temperatura com um termômetro digital.

— 3 pessoas: mãe, padrasto e irmão, ninguém com sintomas.

A transmissão rápida e fácil é um dos principais problemas da doença, além das complicações que podem surgir em pacientes de grupo de risco, como idosos (mais de 60 anos) e pessoas com doenças crônicas e problemas respiratórios. Para os mais jovens e saudáveis, os sintomas podem ser similares aos de uma gripe, crise de garganta ou, até mesmo, simplesmente não se manifestarem. Por isso a preocupação com a transmissão e o contato: jovens e crianças assintomáticos ou com manifestação leve da doença são os principais vetores, ou seja, facilitam a contaminação de outras pessoas por meio do contato.

A relevância das medidas de confinamento e isolamento social está em precisar evitar o contato entre as pessoas, porque, em um país cuja quantidade de testes é limitada, um número imensurável de pessoas pode estar infectado pelo vírus e, sem saber, transmiti-lo para aqueles a quem o patógeno de fato oferece risco de morte. A Itália, país em que o número de mortes pela doença já ultrapassa os 11 mil, autoridades indicam essa questão como um dos principais agravadores da crise.

Limpeza das ruas de Veneza para barrar a pandemia do coronavírus
Ruas na Itália ficam desertas diante de recomendação de isolamento. Foto: GruppoVerita

O procedimento me pareceu todo muito correto até aquele momento. O rapaz, agora próximo de mim, percebo, tem as sobrancelhas cheias, robustas, unindo-se no meio da face, formando uma só faixa de pelos. Em meio ao devaneio, sequer percebi o moço inserir meu dedo a um oxímetro (aparelho que mede a saturação de oxigênio no sangue e frequência cardíaca). Observei-o ainda alguns minutos após a medição. Não limpou o equipamento.

A atitude parece ser minimamente controversa num contexto em que as recomendações divulgadas para prevenção vão desde as mais óbvias às mais absurdas: mensagens em aplicativos chegam a sugerir que todos os itens comprados no mercado sejam higienizados com álcool em gel antes de serem guardados.

Apesar dos exageros incoerentes, as recomendações da OMS são rígidas e estabelecidas: lavar frequentemente as mãos (e, quando não for possível, higienizá-las com álcool em gel), evitar contato próximo com outras pessoas, evitar tocar o rosto.

Num momento em que os países são  orientados a estabelecer medidas de restrição de circulação e muitos líderes já determinaram quarentena forçada para toda ou boa parte da população, a higienização de superfícies de contato parece ser uma precaução minimamente óbvia. Mas nem sempre possível.

O psicológico, me pregando uma peça muito engraçada, inventou-me uma coceira no nariz. Suportei o incômodo enquanto implorava álcool em gel para uma agente que, plantada à porta da unidade, impedia a entrada de qualquer pessoa nas dependências do posto. Ela virou-se para buscá-lo no interior da casinha.

— ATCHIIIM.

A mulher retorna a mim imediatamente, me cobrindo de um olhar assustado. Eu tentava coçar o nariz pressionando-o contra o lábio superior, já que não queria tocá-lo com as mãos lavadas de sabe-se-lá-o-que-passou-por-aquele-oxímetro.

Trouxe-me álcool em gel, fiquei aliviado. Dali a pouco, enquanto aguardava atendimento, notei uma movimentação estranha: pessoas chegavam ao rapaz do portão, falavam meia dúzia de palavras e iam embora contrariadas. Me aproximei de curiosidade. A alguns poucos metros do portão, percebi um senhor abordar o moçoilo.

— A vacina, quero saber da vacina.

— Acabou, meu senhor.

— Não é pra mim, irmão. Minha mãe 68 anos, meu pai 72.

— Cara, acabou mesmo – explicou impaciente o agente –; pega o telefone do posto e fica ligando, não sabemos quando vai chegar.

A vacina é referente à gripe Influenza. A campanha de vacinação é pautada em evitar este tipo de enfermidade, acarretando na maior disposição de leitos para infectados pelo Sars-Cov-2, o coronavírus.

Em meio a uma pandemia, a medida de antecipar a campanha de vacinação da gripe pode parecer sem sentido. Porém, embaçada pela histeria gerada pelo surto da Covid-19, uma epidemia de Influenza cresce no Brasil, como costuma acontecer todos os anos; motivo pelo qual a campanha de vacinação anual contra o vírus é mantida.

Por mais que não sejam da mesma família, o Sars-Cov-2 e os vírus do tipo Influenza possuem algumas semelhanças entre si. E a principal delas: atingem os mesmos grupos de risco. Daí a importância de, além de prevenir mortes devido a outra doença, evitar o crescimento do número de pacientes graves que necessitam do sistema de saúde.

Experiências com o coronavírus em outros países mostram que um dos maiores problemas é o colapso do sistema de saúde: mais pessoas precisam de assistência do que o sistema é capaz de atender. 

Pessoa sendo vacinada contra a gripe
Vacinas são distribuídas por sistema “drive-thru”, em Manaus (AM). Foto: Altemar Alcantara/Semcom

Aparentemente, o lote de vacinas chegara há 3 horas e acabara há meia.

— A demanda é enorme – conta uma agente que conheço há tempos.

Depois de muita demora e olhares tortos daqueles agentes que passavam e perguntavam sobre meus sintomas, fui chamado para adentrar à casinha – que é de fato a unidade de saúde –, não a garagem, onde todos que procuram atendimento são obrigados a aguardar.

— Garganta inflamada faz 7 dias.

— Dores no peito? Tosse? Falta de ar? 

— Nada.

Esta que me atende eu nunca vira ali – frequento o posto há cerca de 18 anos –; possuía conduta completamente diferente do padrão ali consumado: seus olhos pretos, cercados por olheiras profundas, buscavam o fundo dos meus e pareciam realmente entender o que comigo se passava. Não sei se contei com a sorte de dar com uma profissional fora da curva do sistema público, ou se o desespero do coronavírus tem tornado-os mais altivos. 

Ela preenchia minha ficha de atendimento quando dois agentes entraram no consultório conversando.

— Esse povo não para em casa – disse um deles rindo.

— Queria eu estar de quarentena – completou o outro, que só reconheci pela sobrancelha –; quem pode e deve estar, não fica em casa.

No estado de São Paulo, o governador João Doria (PSDB) decretou quarentena total para todas as cidades: só se deve sair de casa para atividades essenciais. Portanto, a circulação fica restrita àqueles que vão ao mercado ou farmácia, por exemplo, e para profissionais de serviços como saúde e segurança.

Porém, ao contrário do que foi feito em países como Itália e Espanha para garantir que as pessoas ficassem em casa, não há como garantir o cumprimento da medida pela população. E, seja por não entenderem ou simplesmente desconsiderarem a gravidade da situação, há aqueles que descumprem as determinações das autoridades.

São Paulo é o centro da pandemia no Brasil, e já tem mais de 1.500 casos confirmados da doença, e 113 mortes.

No país, são mais de 4.600 casos e 163 mortes. O descumprimento das medidas determinadas pelos governadores não se restringe a apenas um estado. Em Florianópolis, no dia 19 de março, quando medidas de restrição foram decretadas pelo governador, as praias passaram o dia lotadas.

Menosprezar o risco da situação, contudo, não é exclusividade da população geral. Em oposição às medidas rígidas dos governadores, o presidente Jair Bolsonaro chegou a chamar a Covid-19 de “gripezinha” e, inúmeras vezes, sugeriu que as medidas tomadas por outros líderes eram exageradas. Em pronunciamento no dia 24 de março, a tão polêmica figura declarou: “O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar. Os empregos devem ser mantidos. O sustento das famílias deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à normalidade”. 

Presidente Jair Bolsonaro
Presidente Bolsonaro em pronunciamento oficial. Foto: Reprodução

A médica ainda revistou minha garganta de cabo a rabo antes de me receitar um anti-inflamatório.

— Moça, eu já estou tomando anti-inflamatório, queria mesmo um antibiótico.

— Não posso te receitar ainda, só se piorar.

— Tem na farmácia do posto esse que você receitou?

— Deveria ter, mas aqui, sabe como é…

Infelizmente, eu sei. Antes de ir embora, ainda perguntei sobre o movimento do posto nos últimos dias, que, segundo ela, estava “normal, exceto por algumas pessoas paranóicas”; sobre os lotes de vacina, que “nunca duram mais de 4 horas”; e sobre como está sendo para ela passar por isso:

— É nossa obrigação estar aqui; por enquanto tá dando pra segurar. Sabe Deus até quando.

No início de março, profissionais de saúde de todo o mundo postaram fotos com a mesma mensagem nas redes sociais, em um movimento que viralizou. “Estamos aqui por vocês. Por favor, fiquem em casa por nós”, diziam.

2 comentários em “Manhã de pandemia em uma Unidade Básica de Saúde”

  1. Pingback: Especial Cirque du Soleil: 60 minutos da magia do circo para ver em casa - Jornalismo Júnior

  2. Pingback: Coronavírus: como funciona o SUS? - Jornalismo Júnior

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima