Jornalismo Júnior

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Boa noite, estou ligando o taxímetro

Histórias com aplicativos de transporte trazem visões diferentes sobre momentos aparentemente simples

As dificuldades para se comprar e manter um carro, as vicissitudes trazidas por uma correria já característica de dias contemporâneos, a simples impaciência e necessidade de chegar rapidamente de um lugar A para um lugar B. Esses podem ser apontados como alguns dos fatores que favoreceram o sucesso e o grande crescimento de aplicativos de transporte privado, como o Uber, o 99táxi, o Cabify e semelhantes. Esse fenômeno pode aparentar ser apenas uma resolução prática para solucionar problemas de mobilidade urbana de grandes cidades, mas é preciso considerar o fator humano envolvido nesses processos. 

Talvez seja muito ingênuo enxergar o uso desses aplicativos da mesma forma que se entende o uso de um metrô, por exemplo, no qual as pessoas entram em uma vagão, não sabem e não veem quem as está conduzindo e, geralmente, não conversam entre si. No tipo de transporte que se está tratando aqui, ficamos um bom tempo “confinados” com um outro ser humano. As pessoas envolvidas têm seus próprios sentimentos e preocupações e podem ir o caminho todo em silêncio ou interagir em diferentes níveis. 

 

Uber Quiet: Uma novidade que traz problemas ou soluções? 

Este ano, a Uber disponibilizou, por enquanto apenas nos Estados Unidos, a opção Uber Quiet. Trata-se de uma alternativa de luxo para aqueles passageiros que querem entrar no carro e ter um motorista que não vai conversar. Dependendo dos objetivos com que alguém solicita este serviço, pode-se entendê-lo sob perspectivas diferentes.  

Por um lado, essa opção mostra-se preocupante. Até onde pode chegar o nosso nível de impessoalidade, ou melhor, de desejo por impessoalidade? O Uber Quiet parece atender a uma demanda de passageiros que simplesmente não querem dialogar com um outro ser humano que estará a alguns centímetros de distância, prestando um serviço. Os dois estariam juntos em um carro por alguns momentos, tendo uma relação extremamente distanciada. Ela praticamente objetifica o motorista, que estaria lá apenas para levar alguém de um ponto A para um ponto B sem sequer ter o direito de falar. 

Conversei sobre o assunto com o professor Deodato Rafael Libanio de Paula, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, que apontou uma outra questão: vivemos em um contexto de violência, insegurança e desrespeito. Nesse sentido, as pessoas compreensivelmente fecham-se para novos diálogos e relações por uma questão de segurança. “Os problemas sociais acabam afetando diversas formas de sociabilidade.” A partir do que o professor disse, é plausível pensar que episódios como o que veremos no Caso 5 poderiam não ter acontecido se fosse utilizado um serviço como a Uber Quiet. 

Outra questão reside no fato de a funcionalidade ser uma opção de luxo. Essa parece ser uma maneira de se intensificar as chamadas “bolhas sociais”, segundo as quais as pessoas querem conversar apenas com outras que têm ideias semelhantes ou pertencem às mesmas classes ou grupos sociais. Sobre isso, Deodato também comentou que se não há um acesso homogêneo, o próprio aplicativo está sendo violento. “Isso porque restringe uma relação que deveria ser direito de todos a uma relação puramente econômica, a empresa está vendo um problema social e usando-o como oportunidade para ganhar dinheiro.”

 

Os Casos

Não é raro encontrar alguém que tenha alguma história curiosa sobre a hora em que decidiu chamar um carro para ir a algum lugar. Por meio de diferentes relatos aqui reunidos, é possível refletir sobre essas interações. Optei por manter no anonimato a identidade das pessoas aqui entrevistadas. Primeiro, porque alguns acontecimentos revelam um teor mais que pessoal dos envolvidos. Segundo, porque essas histórias poderiam ser um presente da aleatoriedade para qualquer um que as lê. E é importante lembrar que nem todo presente é, necessariamente, algo bom. 

O objetivo aqui não é trazer respostas sobre o quão profunda ou superficial pode ser a relação entre um motorista e seu passageiro, mas sim levantar mais perguntas. Qual é o limite entre o profissional e o pessoal? Quais são as situações passíveis de se acontecer quando alguém se submete a uma situação dessa natureza? Até onde pode ir uma relação baseada em uma interação de poucos minutos? Pode ela durar mais? Criar laços mais profundos e complexos? 

 

Caso 1: No Brasil, tudo acaba em… hot-dog!

Personagem Um pede um carro. 

Pedir para pagar a corrida em dinheiro às vezes pode gerar situações engraçadas. Foi o caso de Um, que foi munido apenas de uma nota de 50 reais para fazer o pagamento. 

Seu motorista, no meio da corrida, parou para abastecer o carro em um posto de gasolina. Ele poderia ter usado a nota de Um para pagar e depois fazer as devidas correções no fim da corrida e acertar as contas, mas preferiu usar a única nota de 10 que possuía. 

No final da corrida, os dois se veem em um impasse. Em vez de simplesmente deixar a conta em débito no aplicativo, o motorista finalizou a corrida e os dois saíram rodando pela cidade na madrugada. Passaram por algumas conveniências 24h e vários outros lugares e acabaram comprando cachorro-quente juntos para trocar o dinheiro. Depois da desventura, por que não sentarem os dois, baterem um papo e comerem o hot-dog juntos? 

Quando terminaram de comer, o motorista deixa Um em casa e pronto, estão acertados. É curioso notar como comer um cachorro-quente na madrugada, depois de uma noite com amigos, seria algo que normalmente se faria com os próprios amigos. O “After” de Um naquele dia foi com seu motorista. Os dois não se viram ou se falaram depois e as probabilidades de que isso aconteça são muito pequenas, mas tiveram uma breve conexão naquele momento, tudo por conta de uma nota de 50.

 

Caso 2: Por que não?

Personagem Dois pede um carro.

Dois começa me contando a história de um jeito que não traria dúvidas de que no final haveria algo surpreendente: no ano passado, foi a um “eco-bar gay” com mais dois amigos. Dois ficou decepcionada, romanticamente falando, porque suas expectativas no bar não foram correspondidas. Sendo uma mulher, não conseguiu encontrar uma paquera em um bar majoritariamente frequentado por homens homossexuais. 

Ela pede um carro sozinha para ir embora para casa e se surpreende. Depois de sair do bar, ela estava bêbada e senta no banco do passageiro, algo que não costuma fazer. Segundo ela, o motorista era “super hipster” e o papo foi ótimo, Dois até se lembra de como ele tinha o plano de abrir um bistrô perto da praia. No final da corrida, “rolou um clima”.

Não cabe aqui descrever detalhes do que se passou a partir disso, mas o fato é que os dois terminaram em um motel. “E era um lugar bem bacana, na verdade. Tinha até hidro, muito chique, o quarto tinha dois andares.” 

Esse pode ser um final de corrida dos sonhos, para alguns, ou algo moralmente repreensível, para outros. Nosso propósito aqui não é discutir moral, mas as implicações sociais do ocorrido. Ambos os envolvidos sentiram-se confortáveis o suficiente para chegar até aquele ponto e esse talvez seja o extremo oposto de uma viagem no qual motorista e passageiro vão em completo silêncio. O quão profundamente os dois puderam se conhecer permanece uma incógnita, porém tiveram esse momento de interação que partiu das suas vontades próprias e que, provavelmente, foi precedido por um pensamento de “por que não?”. 

 

Caso 3: Desvio invasivo

Personagem Três pede um carro.

Três solicitou um carro para ir até a casa de um amigo. Já no começo da viagem, o motorista falou “que bom que não foi um homem que entrou no meu carro” e, a partir daí, tentou puxar assuntos de maneira invasiva. Ele pediu para que ela anotasse seu número, dizendo que se precisasse de uma corrida poderia mandar mensagem e ele fazia perguntas pessoais, querendo saber, por exemplo, se ela morava no destino final da corrida. 

Durante a corrida, ela estava falando com seu amigo pelo celular e ele já estava acompanhando-a no GPS quando o motorista passou reto pelo destino final e fez um desvio na rota. Quando eles finalmente chegaram até a casa, o amigo de Três foi até a porta pagar pela corrida. O motorista, antes falador, teve uma mudança de atitude e ficou calado. 

A mudança de preço que o desvio da rota proporcionou gerou uma discussão. O amigo se recusou a pagar a diferença e o motorista acusou Três de ter falado o endereço errado, o que foi rebatido por ela: “em momento nenhum falei o endereço, que foi tudo pelo GPS”. Ao final, o motorista aceitou o dinheiro sem a mudança no preço e foi embora. 

Esse caso é sintomático de um problema recorrente, o de mulheres que passam por assédio ao pedir um carro. Segundo um levantamento do site ReclameAqui, feito pela Revista IstoÉ em 2017, em um período de sete meses foram contabilizadas 583 reclamações de assédio relacionadas a aplicativos aqui tratados, os relatos incluem “cantadas”, abusos ou constrangimentos. Outro levantamento, do FemiTáxi – aplicativo de transporte exclusivo para mulheres – mostrou que a situação também é problemática para aquelas que trabalham como motoristas neste tipo de serviço: 48% disse já ter sofrido alguma forma de assédio enquanto trabalhava. 

O caso 3 mostra como algumas experiências envolvendo esses aplicativos são negativas e podem, inclusive, envolver crimes como o assédio. Diferentemente do caso anterior, aqui a intimidade não foi uma questão. Tratou-se de uma ocasião em que o motorista não soube reconhecer os seus limites e não agiu de maneira profissional como esta situação exigia. 

 

Caso 4: Motoristas são pessoas

Rota do motorista ao destino

Personagem Quatro pede um carro.

Em um sábado, às 7 da manhã, Quatro precisou pedir um carro para chegar cedo a uma aula para a qual ele não poderia se atrasar. O motorista aceitou a corrida bem rápido. Ele era um senhor de idade que havia acabado de começar a trabalhar com o aplicativo, há aproximadamente dois meses do dia da corrida. 

Um pouco depois do passageiro entrar no carro, o motorista diz que tinha esquecido seus documentos e que ele iria voltar em casa para pegá-los. Quatro confessa que ficou um pouco desesperado para chegar à aula, mas foi paciente com o motorista e os dois voltaram todo o caminho percorrido até então. Foram até a casa do motorista, que entrou e pegou seus documentos enquanto Quatro esperava no carro. 

Os dois retornaram ao caminho original e o motorista disse que tinha medo de dirigir na Marginal Tietê, em São Paulo. Ele preferia andar em bairros residenciais do que em grandes avenidas, e eles fizeram um desvio que quase os fez parar na Rodovia dos Bandeirantes. 

Os dois conversaram pelo caminho e se compreenderam. Quatro estava atrasado e o motorista era um senhor que tinha acabado de começar. Ao final, os dois deram-se cinco estrelas na avaliação do aplicativo.

Motoristas, obviamente, são pessoas. E pessoas têm seus medos e inseguranças ao começar um novo trabalho. Acredito que nem todos os passageiros seriam pacientes e compreensivos como Quatro, que ainda considerou a viagem uma “aventura”. Essa corrida foi uma ocasião em que os dois conseguiram dialogar e se despediram tranquilamente, não é a mesma situação do próximo caso.

 

Caso 5: Às vezes, a comunicação não funciona

Personagem Cinco aceita uma corrida.

Diferentemente dos outros casos relatados até aqui, essa é uma história que um motorista me contou durante uma corrida.

O que tornou a noite de Cinco diferente começou quando ele pegou alguns passageiros bêbados na Rua Augusta, em São Paulo. Os passageiros vomitaram dentro do seu carro, o que inviabilizaria Cinco continuar trabalhando naquela noite, porque não poderia pegar outros passageiros com o carro sujo. Está no regulamento do aplicativo no qual Cinco trabalha que, nesse tipo de situação, o passageiro deve arcar com os custos da limpeza. 

No final da corrida, Cinco explicou a situação aos passageiros e eles se recusaram a pagar. O motorista pediu que eles saíssem do carro e eles assim fizeram batendo a porta com força. O que aconteceu a partir disso foi uma verdadeira briga física no meio da rua. Os passageiros estavam em maior número, porém bêbados e não conscientes do fato de Cinco já ter sido professor de jiu-jitsu. 

A história acabou com os passageiros imobilizados no chão e Cinco indo embora com seu carro. No dia seguinte ele faria um boletim de ocorrência, e o aplicativo cobriria o custo de 500 reais da limpeza do carro.

 

Até onde vai nossa comunicação? 

Existe um debate na área da Comunicação que discute se, dada a cultura de efemeridade e superficialidade dos dias contemporâneos, é possível haver, de fato, comunicação. Conversei novamente com Deodato de Paula, professor de Teoria da Comunicação, sobre as possibilidades de as pessoas dialogarem e se conectarem durante uma corrida.

Segundo ele, essa situação dependerá do tipo de relação para a qual as pessoas envolvidas estão abertas. O professor conta uma experiência em que pediu um carro e o motorista começou a indagá-lo a respeito da comunicação, sua área de pesquisa. A conversa foi tomando proporções maiores que, provavelmente, nenhum dos dois estava esperando. Chegando perto do destino, o motorista falou que nunca tinha pensado sobre o assunto daquela maneira.

 Para Deodato, a comunicação teria acontecido nesse episódio, por exemplo, porque ela pressupõe uma mudança de valores e atitudes e tem a característica de ser imprevisível e incontrolável. Em uma outra situação, na qual um passageiro entra no carro e tem com o motorista apenas conversas do tipo “quer que siga o GPS?” ou “como o clima mudou rápido” não acontece a comunicação, apenas uma mera troca de sinais. 

 

Estou encerrando a corrida, obrigado, boa noite 

Essa é uma discussão que possui um recorte social específico: não são todas as classes sociais que têm acesso a aplicativos de transporte, parte-se de um critério econômico. Certamente, com a democratização desse tipo de serviço (ou a própria redução da desigualdade, mas esse é outro texto, outra discussão) teria-se uma gama muito maior e mais variada de histórias do que as aqui retratadas.

Sempre que se opta por utilizar um desses aplicativos, abre-se mão do uso do transporte coletivo e, consequentemente, das diversas histórias que também podem sair daí. Histórias essas que igualmente tratam de pessoas com sentimentos e preocupações confinadas em um espaço por alguns minutos. Acho que essa ressalva é necessária, mas, de qualquer forma, não invalida as questões levantadas. 

Nós, como sociedade, temo-nos tornado mais impessoais com o decorrer dos anos. Algumas dessas histórias são representantes das exceções: ainda há a compaixão de se entender alguém que está começando e a simplicidade de parar e comer um cachorro-quente em meio a uma adversidade. São coisas que nos fazem humanos e – bons – presentes da aleatoriedade. 

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