Por Mariana Gonçalves (mariana.vick.goncalves@gmail.com)
Faz quatro meses desde que militantes do coletivo Luta do Transporte no Extremo Sul decidiram bater de frente, pela primeira vez, com o prefeito Fernando Haddad, ex-professor na pós-graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). O protesto fora marcado para acontecer na própria universidade, onde, no dia – era 27 de abril –, Haddad ministraria aula sobre “direito à cidade”. Cerca de quarenta pessoas, residentes da região de Parelheiros – sobretudo dos bairros de Marsilac, Barragem, Jusa e Bosque do Sol –, ocuparam a sala de aula e levantaram cartaz com os dizeres: “Haddad, como é que pode? Nosso bairro não tem transporte”. Apesar do desconforto do professor e de estudantes, o coletivo, que reivindicava a implantação de três linhas de ônibus de caráter rural, atingiu seu objetivo: dada a pressão, Haddad assinou documento em que se comprometia a comparecer à reunião onde se discutiriam as possibilidades de implantá-las.
O coletivo Luta do Transporte no Extremo Sul surgiu em agosto de 2013, em meio às manifestações que ocorriam contra o recente aumento de vinte centavos nas passagens de ônibus em São Paulo. Segundo ativistas do Movimento Passe Livre (MPL), em entrevista ao Roda Viva, a tarifa paulistana era a mais cara do mundo àquela altura. Luize Tavares, membro da Luta, conversou com a reportagem sobre o movimento. Ela dá alguns de seus princípios: independência, horizontalidade e – diferente de anti-partidarismo, ressalta – apartidarismo. “É um coletivo autônomo. Acreditamos que são as pessoas diretamente envolvidas na luta as responsáveis pelas escolhas do movimento. Não dependemos de organizações externas, de oportunismo politiqueiro ou de financiamento”. Sem sede, líder ou recursos financeiros , os membros do coletivo, quando empreendem ações que demandam dinheiro, são auxiliados por sindicatos e pessoas autônomas. “Há muitas que apoiam”.
Parelheiros e Marsilac são os dois últimos distritos do Extremo Sul de São Paulo, localizados a cerca de cinquenta quilômetros do centro da cidade. Estão sob administração da Subprefeitura de Parelheiros. A população que reivindica novas linhas, localizadas nos bairros mais afastados dos distritos, tem baixo poder aquisitivo – em 2000, segundo dados do Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS), Parelheiros e Marsilac compunham, sobretudo, os grupos 5 e 6 de vulnerabilidade, que indicavam as piores condições socioeconômicas existentes na capital –, não podendo, parte dela, contar com transporte particular. Em lugares como Barragem, Jusa e Bosque do Sol, onde as linhas de ônibus mais próximas costumam estar a oito, dez quilômetros de distância, os moradores têm de andar por horas a pé se tiverem de ir ao supermercado, ao pronto-socorro ou ao trabalho. A reivindicação por linhas de ônibus, com a criação da Luta do Transporte no Extremo Sul, vem desde o ano passado, marcada pela criação de linhas populares temporárias e por manifestações na Prefeitura em abril de 2014 e na Subprefeitura local em março deste ano.
A título de exemplo, Luize conta a história de uma conhecida que conseguiu um emprego na Avenida Paulista, onde deveria estar às sete da manhã. Moradora de Ponte Seca, bairro do Marsilac, sua rotina mudou drasticamente: para ir ao trabalho, saía da casa às duas e meia. Eram sete quilômetros de distância entre a Ponte Seca e o ponto mais próximo. Andando a pé, chegava lá por volta das quatro da manhã, quando saía o primeiro ônibus do dia. “E ela conta que, mesmo assim, chegava atrasada”, relata. Na volta para casa, percorrendo o mesmo caminho, só conseguia dormir à meia-noite. Luize diz que a moça, que muito precisava, insistiu no novo emprego por 45 dias; mas, no fim das contas – dormindo mal, comendo pouco e, além disso, mexendo diariamente com produtos químicos –, começou a apresentar sinais de depressão. Atualmente, já em melhor estado, ela diz que quer voltar a estudar, mas não tem condições de fazê-lo.
Entre o centro e a serra do Mar, o direito à cidade
O prefeito Fernando Haddad, em entrevista à rádio Jovem Pan, ainda à época do protesto, afirmou que a falta de linhas de ônibus no Extremo Sul não era um problema econômico ou de custo elevado. “O problema é realmente o conflito entre o social e o ambiental”.
Faz um ano desde que a Prefeitura pensa em fazer de Parelheiros um polo de ecoturismo na cidade. A região, que faz parte do sistema da serra do Mar, abriga áreas da Mata Atlântica e nascentes que alimentam as represas Billings e Guarapiranga, além de Capivari-Monos e Bororé-Colônia, importantes áreas de proteção ambiental (APAs). Localizadas na primeira delas, existem, aliás, duas aldeias indígenas: Pyau (Krucutu) e Tenondé Porã (Morro da Saudade). Silvana Maria Zioni, professora na Universidade Federal do ABC (UFABC) e ex-funcionária da SPTrans, é categórica: “O acesso a essa área deve ser cuidadoso. O interesse público maior que se tem sobre o lugar é o de conservação ambiental”. A Mata Atlântica, hoje reduzida a 7,84% de sua área original, é uma das regiões mais ricas do mundo em biodiversidade e responsável pela regulação do clima, da temperatura, da umidade e das chuvas de cidades como São Paulo. Por sua vez, as represas Billings e Guarapiranga, também afetadas pelo desorganizado crescimento paulistano, abastecem, em média, 4,9 milhões de pessoas nas Zonas Sul e Sudoeste da capital e 1,2 milhão em Diadema, São Bernardo do Campo e Santo André. Os dados são da Sabesp.
Apesar de as preocupações de Haddad, de Silvana e da população local se voltarem, em primeiro lugar, à preservação do meio ambiente, Luize afirma que os impedimentos à implantação das linhas de ônibus reivindicadas são, pelo contrário, de ordem política. Antes de os membros do coletivo terem ido à Universidade de São Paulo (USP), eles já haviam conseguido autorização técnica da SPTrans, da APA, da Secretaria do Verde e Meio Ambiente e da Subprefeitura de Parelheiros para implantá-las. “Os moradores falam isso: a gente não quer destruir o meio ambiente. Hoje em dia, existem muitas técnicas [sustentáveis] que podem ser aplicadas no transporte”, diz Luize. Segundo ela, não há argumento que a Prefeitura possa dar para não aprovar a criação de novas linhas de ônibus. A professora Silvana, mesmo com ressalvas, também confirma que, se são de caráter rural, os ônibus não oferecem problema. Mas por que, então, um problema de ordem política?
Além de ser membro da Luta do Transporte no Extremo Sul, Luize integra o Movimento Passe Livre (MPL). Ela conta que há outros militantes que compõem ambos os coletivos. Entre eles, a relação é de solidariedade. E as ideias, as mesmas: “É política [a questão] porque sempre tem que se avaliar: qual é o lucro disso? O que cada parte vai ganhar com isso? Pensam muito mais em lucro, no capital, do que no bem-estar do usuário do transporte”.
À parte os méritos da gestão de Haddad, que tem se destacado pela contribuição à mobilidade urbana em São Paulo – a expansão de faixas exclusivas para ônibus e a criação de ciclovias nas ruas são dois exemplos –, os gestores do transporte na cidade, segundo a militante, ainda tomam decisões prejudiciais aos usuários. Em se tratando dos ônibus municipais, administrados por empresas concessionárias, seu lucro é obtido por passageiro transportado. Consequência disso são a superlotação do transporte e a ausência de itinerários suficientes na periferia – onde se formam, além da Luta do Transporte no Extremo Sul, outros coletivos (Luta do Transporte em São Mateus, Luta do Transporte na M’Boi Mirim, Noroeste em Movimento) com propostas semelhantes. Luize diz que a resistência à implantação de linhas nos bairros mais afastados de Parelheiros e Marsilac sempre existiu por medo de haver prejuízo. “Será que compensaria para eles [os empresários] colocar ônibus numa região muito afastada da cidade, onde não moram trocentas pessoas para girar a catraca? Você ia gastar com combustível, manutenção, salário de motorista”.
Em contrapartida, surge o problema do direito à cidade. Ela suspeita de que haja no Extremo Sul quem não conheça o centro de São Paulo. “Como a gente pode falar que a educação é pública, que a saúde é pública, se você não tem uma linha de ônibus perto da sua casa que te permita chegar às escolas e aos hospitais? (…) Muitas pessoas acham que Parelheiros não faz parte da cidade, que Marsilac não faz parte da cidade. E faz parte, entende? Mas eles não têm mobilidade urbana”. Pelo mesmo motivo, as linhas reivindicadas pelo coletivo deveriam ser implantadas sem que houvesse cobrança de tarifa. Carente de recursos, a população do Extremo Sul continuaria sem acesso ao transporte se pagar fosse necessário. “Não adianta colocar ônibus se a linha for tarifada. Não vai ter adesão”.
E agora?
Requisitados para entrevista, a Prefeitura de São Paulo, a Subprefeitura de Parelheiros e a Secretaria do Verde e Meio Ambiente não quiseram se manifestar sobre o caso. No entanto, a Secretaria Municipal de Transportes, no último mês de julho, enviou nota à J.Press. O texto pode ser conferido em notícia publicada na página do Portal da Prefeitura, de onde foi copiado. Ali se narra reunião feita em 23 de maio, na sede da Subprefeitura de Parelheiros, onde Haddad e representantes de Marsilac, Barragem e Bosque do Sol discutiram a implantação de linhas de ônibus com tarifa zero nos bairros, além de obras e melhorias nas vias dali. Ao final do encontro, foi decidido que a Prefeitura agendaria uma reunião com a CETESB (Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental) antes de dar início a uma reforma na Ponte do Mambu e à implantação de linhas experimentais em Marsilac e em Barragem. Luize conta que, três meses depois, a reunião ainda não foi feita.
Quanto a Bosque do Sol, que pertence à área urbana, não era necessário autorização da CETESB para implantar a linha de ônibus. A SPTrans pretendia fazê-lo imediatamente. Segundo Luize, no entanto, embora ali haja uma linha nova em funcionamento, ela não corresponde ao que fora acordado: em vez de seguir até o Terminal Varginha, ou até o Grajaú, rumo ao centro da cidade, construiu-se uma linha que faz o sentido oposto, acabando no Terminal Parelheiros. Além disso, ela alega que os carros são poucos e os horários, restritos: os ônibus rodam das cinco da manhã às dezessete horas. Quem chega mais tarde do trabalho continua andando a pé.
Em postagens recentes no Facebook, o coletivo Luta do Transporte no Extremo Sul vem manifestando indignação ante os descumprimentos da Prefeitura. Foi comunicado que, em breve, eles voltarão às ruas.