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Cinema Cubano: entre Arte e Revolução

De chanchadas musicais a produções independentes, entenda como a Revolução Cubana estendeu seus tentáculos para a produção cultural e mudou o cinema produzido na ilha
Por Bernardo Medeiros (bernardo10medeiros@usp.br)

Há 30 anos, o cinema cubano furou a bolha do país pela primeira vez. Morango e Chocolate (Fresa y Chocolate, 1993) estreou em 1994 nos Estados Unidos, e em 1995 foi a primeira e única obra cubana até hoje a ser indicada ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira. Produzido por Tomás Gutiérrez Alea, o longa também estreou em 1994 no Brasil, após conquistar as principais premiações no Festival de Gramado. Expoente do audiovisual cubano, Alea e seus filmes representam o refinamento máximo do cinema feito na ilha, e representam uma síntese do que ele se tornou.

Indicado ao Oscar em 1995, Morango e Chocolate recebeu um total de 25 premiações e duas indicações em festivais de cinema ao redor do mundo [Imagem: Reprodução/IMDb]

Antes dominada por multinacionais do entretenimento, a produção cultural da nação insular era controlada de perto pelos Estados Unidos. No entanto, após a Revolução Cubana, em 1959, o governo começou a investir em peso na produção local, com a construção de uma vanguarda cinematográfica basicamente do zero. Além da nacionalização das multinacionais que operavam na ilha, o novo poder revolucionário instituiu políticas e criou institutos, incrementando o aporte produtivo e qualificando novos cineastas. Assim, começa a era de ouro do cinema cubano, com produções diversas, originais e independentes.                        

A quantidade e a qualidade dos filmes começaram a cair com o fim gradual da União Soviética e a imposição de novas políticas culturais pelo governo pós-revolucionário. Cuba entrou em uma decadência econômica, que moldou os filmes produzidos a partir da necessidade de financiamento privado e estrangeiro. Atualmente, embora a influência da Revolução ainda seja relevante no cinema local, vê-se a chegada de novas produções com outros olhos. Ainda há a busca por um cinema cada vez mais autoral e “imperfeito”, que foge dos incentivos públicos, mas se sustenta com capital privado. Novos temas e formas de se fazer cinema se apresentam, sem esquecer o legado que carregam, mas soltando algumas de suas bagagens para inovar no presente.

Os cineastas da Sierra Maestra

Entre a expansão do cinema em uma escala internacional, a partir dos anos 1940, e a explosão da Revolução em Cuba, a ilha recebia apenas filmes internacionais, em sua maioria produzidos nos Estados Unidos. Empresas como MGM e Warner Bros dominavam as salas de cinema, não apenas em Cuba, como em toda a América Latina.

As raras gravações e produções locais eram direcionadas para longas de circulação no mercado externo, que reforçavam estereótipos e fantasias da cultura cubana. Essas produções que tentavam mostrar Cuba caíam no fetichismo cultural:  uma imagem exagerada da cultura local. O professor e pesquisador Sebastião Costa, especialista em literatura e cinema latino-americanos, em entrevista ao Cinéfilos, explica: “A produção cubana antes da Revolução era vinculada a uma nacionalidade idílica, à ideia do ‘bom-selvagem’.” 

Esse tipo de produção era marcada pelo momento político do período. Sob a então presidência de Theodore Roosevelt, os Estados Unidos promoveram uma política de “boa-vizinhança”,  um incentivo a um clima de colaboração entre os dois hemisférios americanos por meio de uma aproximação cultural.  No Brasil, por exemplo, Vargas colaborou com o governo estadunidense, especialmente após a entrada na guerra, promovendo a criação de figuras como o Zé-Carioca, que representavam o país de uma maneira amigável e palatável, embora estereotipada.

Zé-Carioca, personagem da Disney, se tornou um dos símbolos da nacionalidade durante a Era Vargas. A sua estreia nas telonas foi no filme Alô, Amigos (Saludos Amigos, 1942) [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

Antes do advento da Revolução, o cinema em Cuba existia, mas ele não tinha uma produção tão ampla. Em entrevista ao Cinéfilos, Alexandre Guilhão, especialista e pesquisador em cinema latino-americano, e criador da Cinemateca Histórica, elucida acerca da filmografia cubana anterior à Revolução: “Tinha alguns realizadores importantes, como o Enrique Díaz Quesada, o Ramón Díaz, Miguel Santos, mas nenhum deles conseguiu uma produção numerosa.” Ele adiciona: “E a gente tem outro problema que é o problema da preservação, dos filmes antes da Revolução nenhum é completamente preservado.”

De fato, embora não tão numeroso, existia uma vanguarda dentro do próprio país que aproveitou os ares de mudança para promover uma nova forma de se fazer arte. Esse espaço não era concedido pelo governo ditatorial de Fulgêncio Batista, que apenas se interessava pelo cinema estrangeiro. Prova disso foi o projeto de um média-metragem conduzido por Julio García Espinosa, que futuramente se tornou diretor de uma das principais instituições de cinema da América Latina.

O filme, Él Megano (1955), foi censurado e perseguido, mas pode ser considerado a primeira manifestação e precursora do novo cinema cubano que começou a se realizar após a Revolução. O filme foi financiado pelo Partido Socialista Popular (PSP), principal partido de esquerda da época. 

Perseguido e censurado, Él Megano contou com a participação de cineastas que posteriormente se tornaram os principais nomes do cinema cubano, como Gutiérrez Alea e Alfredo Guevara [Imagem: Reprodução/IMDb]

Em 1º de janeiro de 1959, a Revolução, iniciada seis anos antes, finalmente triunfou. Com a instituição do novo governo revolucionário, uma série de mudanças começou a ser feita na ilha, alinhada ao plano socialista e suportada pela União Soviética. O que os guerrilheiros da Sierra Maestra planejavam era uma mudança completa na funcionalidade do país.

A primeira instituição cultural a ser criada, apenas três meses após o triunfo revolucionário, foi o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica, o ICAIC ,instituto que existe até hoje e continua sendo o principal órgão regulador e fomentador do audiovisual na ilha. Sebastião notou a importância do Instituto: “O ICAIC foi a primeira instituição cultural criada pela Revolução. Talvez seja, no período, a principal instituição de cinema latino-americano.”

Foi o órgão que aglomerou, idealizou e permitiu que toda a logística da cadeia cinematográfica fosse concentrada em um único instituto. Como depois aconteceu com a Embrafilme, o INCAA, o IMCINE. “Eles nacionalizaram a exibição, a distribuição e a produção. O ICAIC teve um papel central na divulgação dessa nova mentalidade de que Cuba estava plasmando o panorama político latinoamericano durante a guerra fria.”

O Instituto foi idealizado como uma forma de incentivar a produção de documentários e cinejornais para popularizar e propagar o novo governo, como remarca Sebastião: “O ICAIC teve um papel muito relevante no cinema latinoamericano de ficção, mas sobretudo no cinema latinoamericano documental e noticiário”. No entanto, inicialmente o plano tomou outros rumos.

Cuba Libre: a produção nos anos 60

Pela falta de profissionais cubanos na indústria cinematográfica, exatamente pelo abandono em que o setor se encontrava durante o domínio norte-americano, o instituto convidou cineastas europeus para integrar o quadro profissional. Isso consequentemente tornou-se um antro do vanguardismo, contando com cineastas do Nouvelle Vague, do Realismo Socialista e, principalmente, do Neorrealismo Italiano.

A influência do cinema experimental modificou os rumos da produção, que se transformou em independente e criativa. Ao Cinéfilos, Mariana Villaça, professora de história e especialista em políticas culturais do governo cubano, destaca:  “ao receber cineastas estrangeiros de distintas formações e orientações políticas, o Instituto desenvolveu produções artísticas que em diversos momentos se distanciaram das diretrizes da política cultural governamental formal”.

A professora ainda aponta a influência dos “jovens cineastas, técnicos e artistas cubanos diversos, como desenhistas gráficos, músicos, poetas e artistas plásticos” muito dispostos à experimentação naquele clima revolucionário. Esses elementos propiciaram o surgimento de uma vasta experimentação na sétima arte.

 “O Instituto desenvolveu produções artísticas que em diversos momentos se distanciou da política cultural governamental formal, que previa uma arte essencialmente de propaganda.”

Mariana Villaça

Com a formação do ICAIC e da nova linha de produção cinematográfica, o cinema cubano começou a produzir com todo o vapor. Durante a década de 1960, viu-se a renovação do neorrealismo por meio da estética do subdesenvolvimento latino-americano. Filmes como Memórias do Subdesenvolvimento (Memorias del Subdesarrollo, 1968) A Morte de um Burocrata (La Muerte de un burócrata, 1966), ambos de Gutiérrez Alea, e Aventuras de Juan Quin Quin (Las aventuras de Juan Quin Quin, 1967) de García Espinosa, são marcos desse período. As principais características são do chamado “cinema de autor”, tendência possibilitada pela independência que o ICAIC trazia para a produção dos filmes. O cinema de autor permite que o diretor de uma obra tenha total controle sobre a sua produção, imprimindo através dessa toda a sua singularidade. 

As obras também contam com muitos trechos documentais, em que a ficção se mistura com a realidade. Esse traço é próprio do neorrealismo, importado do Centro Sperimentale di Cinematografia, escola em Roma onde os principais nomes do cinema cubano se formaram antes da Revolução. Essa influência marca grande parte das produções do período, contando com outras características próprias a esse movimento, como a gravação com atores amadores, em espaços públicos ao invés de estúdios e com um roteiro parcialmente improvisado.

Aos poucos, o cinema local se apropriou dessa estética, transformando-a em um movimento próprio, que também integrou características de outras vanguardas europeias e do Cinema Novo. O conjunto da obra, não apenas em Cuba, criou um repertório para o que posteriormente se definiu como o “Nuevo Cine Latinoamericano” — o Novo Cinema Latinoamericano.

Memórias do Subdesenvolvimento foi o primeiro filme do cinema cubano pós-revolucionário a estrear nos Estados Unidos [Imagem: Reproduçãp/IMDb]

As obras são diversas tematicamente. Enquanto produziam um conteúdo mais documental e didático, com os fins políticos da Revolução, também realizavam-se críticas ao novo governo. As obras do período que se tornaram sucessos à época e que hoje são mais relevantes costumam ironizar o regime. 

Em A Morte de um Burocrata, Juanchín (Salvador Wood), o sobrinho de um trabalhador cubano, tenta desenterrar o tio para recuperar um documento essencial que foi sepultado junto ao cadáver. Juanchín precisa enfrentar a burocracia do governo para conseguir recuperar o cadáver do tio, resgatar o seu documento e enterrá-lo novamente. A crítica à burocracia excessiva no, então, novo governo é evidente.

Já em Memórias do Subdesenvolvimento, Sérgio Corrieri se posta no alto da sua residência, observando distanciado a série de mudanças que ocorre no seu país. Ele observa os pais e a mulher fugindo do país, as rápidas revoluções que ocorrem na ilha e o escalonamento das tensões entre os EUA e Cuba. Mesmo assim, ele permanece na ilha. 

Ambos os clássicos de Gutiérrez Alea demonstram a posição que essa geração de cineastas, conhecidos como primeira geração do ICAIC, tomou: a crítica ao governo junto à defesa da Revolução e do país. É como destaca Alexandre: “O cinema cubano tinha uma defesa da Revolução, mas não de forma propagandística”. Ele ainda ressalta que a crítica total ao movimento seria uma grande hipocrisia, uma vez que os principais realizadores desse cinema eram nomes ligados diretamente às agitações revolucionárias. Gutiérrez, por exemplo, lutou diretamente contra as forças legalistas.

Os “anos grises” do cine imperfeito

Em 1970, foi publicado o texto “Por un Cine Imperfecto”, de Juan Carlos Tabío. O manifesto lutava a favor de um cinema totalmente cubano,  contra a imposição de tendências hegemônicas, seja com filmes puramente comerciais ou com filmes oficialistas. “Os cineastas incorporaram a órbita do cinema de autor europeu, que alguns dos diretores estudaram antes na Escola Experimental de Roma e levaram essa ideia para Cuba.” diz o professor Sebastião, dando mais destaque para o manifesto:  “Mas eles rapidamente perceberam que sequer esse modelo de produção era possível. Então você tem aquele grande manifesto do Julio Garcia Espinosa, que estabelece justamente isso: devemos nos descolonizar, mas mais do que isso, devemos procurar uma gramática própria concordante com a realidade socioeconômica da região”.

A necessidade de impor essa ideia foi em um novo cenário das políticas culturais de Cuba. Mais organizado e politicamente alinhado, o governo central focou mais na distribuição e produção de um material propagandístico, mais próximo do realismo soviético, que serviu como ferramenta de doutrinação no leste europeu. 

Para os cineastas independentes, a regra ficou muito clara: o combate ao cinema governista. “Hoje em dia, o cinema perfeito é quase sempre cinema reacionário. A maior tentação que o cinema cubano enfrenta neste momento é precisamente a de se transformar em um cinema perfeito.” Escreveu Julio Garcia em seu manifesto, dando a palavra de ordem, que segue repercutindo na produção atual.

Cartaz do filme As Aventuras de Juan Quin Quin, a principal obra do cubano Julio García Espinosa, que comandou a chefia dos principais órgãos de cinema em Cuba entre 1970 e 1991 [Imagem: Reprodução/IMDb]

A mudança de paradigma, que tornou o cinema mais próximo daquele idealizado no começo do regime, desagradou os cineastas e o próprio ICAIC, que a esse ponto já tinha ganho uma independência relativa do governo. Mariana destaca essa instabilidade, nomeando o período apropriadamente: “com a fundação do Partido Comunista de Cuba e no contexto dos chamados ‘anos grises’”— período considerado os “anos de chumbo” no âmbito cultural e que abarca, segundo alguns autores, os anos de 1971 a 1976, ou, segundo outros, a década inteira —, “as tensões entre o ICAIC e o governo chegariam a momentos de grande impasse, que resultaram na proibição ou em corte de filmes, na expulsão de cineastas, e até na ameaça de dissolução do Instituto”.

O choque foi ainda maior quando o Ministério da Cultura foi criado, em 1976. Após muitos embates, os cineastas conseguem criar uma secretaria especial de cinema, e a cadeira-chefe é dada a Julio Garcia. Mesmo assim, a produção do período foi muito marcada e controlada, como diz Alexandre: “A maioria dos filmes dos anos 70 é filmes mais oficialistas, uma produção mais controlada.”

“Hoje em dia, o cinema perfeito é quase sempre cinema reacionário. A maior tentação que o cinema cubano enfrenta neste momento é precisamente a de se transformar em um cinema perfeito.”

Trecho do manifesto Por un Cine Imperfecto, de Julio García Espinosa

Os anos das vacas magras

A partir dos anos 1980, Cuba começou a se distanciar do bloco soviético, prevendo a sua futura decadência. O distanciamento fez com que menos verba entrasse nos cofres do país, que baseava sua economia fortemente nos auxílios fornecidos pelo bloco em ruínas. O governo começou a cortar verbas, e o cinema foi um dos setores afetados. Ocorreu uma queda no número de financiamentos estatais, e as produções voltaram a ser mais críticas ao regime à medida que a crise econômica se intensificava e os custos para a produção das obras aumentavam. 

Em 1991, a bandeira vermelha caiu e a tricolor russa foi hasteada. A decadência em Cuba é geral: crises na economia, no abastecimento de comida, na infraestrutura, na saúde, ou melhor, em todos os setores da sociedade, da qual o cinema não escapou. As raras produções do período foram auxiliadas por coproduções, geralmente com outros países, por investimentos próprios ou pela iniciativa privada, financiamento teoricamente ilegal, mas que começava a se viabilizar a partir de uma “vista grossa” do governo cubano. A saída encontrada foi produzir filmes cada vez mais comerciais, abrindo o diálogo com as tendências mundiais do cinema e, inclusive, com o cinema comercial.

A falta de recursos, que antes provinham do Estado, foi a principal marca do cinema que começava a ser produzido em Cuba, e persiste até hoje. As produções se tornaram mais independentes e tematicamente diversas, cobrindo desde invasões zumbis a pautas sociais. E, embora adotassem um tom mais agradável e palatável, elas traziam consigo ainda mais críticas. Até mesmo órgãos governamentais mudaram em consequência das novas demandas: “Também teve uma mudança no próprio ICAIC, nos anos 90 o próprio Instituto mudou para ser uma empresa que vai buscar lucro mais do que antes. Justamente pela necessidade de autofinanciamento. As obras que vão dar maior retorno financeiro começam a ser prioridades”, explica Alexandre.

Boris Yeltsin, ex-presidente russo, levanta a bandeira tricolor após a vitória da democracia ser oficialmente reconhecida no país, com o fim da União Soviética [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

É nesse período que Gutiérrez recebeu diversas premiações por Morango e Chocolate, tornando-se um destaque do cinema cubano que conseguiu transitar entre todos os períodos dessa cinematografia. Com ele surge um nome importante, Juan Carlos Tabío, que foi codiretor dos últimos dois sucessos do cineasta renomado: Morango e Chocolate e Guantanamera (1995). Tabio segue a tendência crítica de Gutiérrez, endossando a Revolução, mas não o governo, ao mesmo tempo que mantém o formato de produção que começa a se popularizar na década de 90, fundindo o cinema crítico e o comercial.

Em 2000, ele lança uma comédia satírica, A Lista de Espera (Lista de Espera, 2000), em que um grupo de transeuntes espera por um ônibus que nunca chega à estação. A partir dessa premissa, eles começam a construir uma própria sociedade no terminal rodoviário, tentando atrair novas pessoas e tornando aquele espaço o mais agradável possível. O filme, embora tenha esse tom de comédia narrativa e mesmo um romance enredado no roteiro, faz uma crítica à construção do regime pós-revolucionário de Cuba. Para Tabío, a reconstrução daquele ponto de ônibus representa a visão dele de como deveria ter sido construído o governo cubano após a Revolução.

¿Y ahora, camarada? 

O cenário de abandono financeiro dos anos 1990 persiste até hoje. Cuba continua inserida em um contexto de crise econômica, e o governo continua negligenciando setores da sociedade para fornecer a outros. No entanto, com a expansão das políticas econômicas na ilha, atribuindo uma maior permissividade econômica, os processos de financiamento alheios ao Estado se tornaram mais comuns.

Além disso, a entrada de empresas privadas e estrangeiras no país para a produção e distribuição de filmes foi permitida oficialmente, tendo em vista que o processo já ocorria “atrás das cortinas”. O resultado é um deslocamento que, gradualmente, levou a produção para o setor comercial, tendo a sua independência cerceada pelo mercado, de um lado, e pelos interesses políticos do ICAIC, do outro.

Mesmo com a relativa autonomia que foi conquistada ao longo do tempo, o Instituto continua censurando e perseguindo filmes que sejam contra a agenda governamental. Mariana descreve perfeitamente o cenário: “O cinema cubano sobrevive  basicamente de financiamentos externos, principalmente projetos em parceria com emissoras de televisão estrangeiras e recursos angariados com a submissão prévia de roteiros a  prêmios e festivais.” Já que não há mais recursos estatais para o subsídio dessa produção, como houve no passado. A professora adiciona: “A produção continua bastante interessante, sempre se equilibrando entre a crítica ao regime, a denúncia da precariedade da situação econômica  e alguma promessa de futuro para o país.”

A Mulher Selvagem (La Mujer Salvaje, 2023) é um dos filmes mais prestigiados de Alan Gonzalez, cineasta da nova geração. A obra desconstrói a imagem feminina, contrariando os clichês do realismo socialista [Imagem: Reprodução/IMDb]

As formas de abordar certos temas também mudaram. Diferente da perspectiva revolucionária, que ainda era mantida no início dos anos 2000 por Juan Carlos Tabío, existe uma mudança semântica, como cita o professor Sebastião: “Acho que tematicamente esses filmes são concordantes, mas semanticamente eles não são.” Ele acrescenta: “Antigamente a mulher no cinema cubano era vinculada ao trabalho, com a sua ascensão enquanto proletária, ou enquanto intelectual orgânica. Hoje em dia, não.”

Sebastião destaca o cineasta Alan Gonzalez, que é um grande retratista do feminismo no cinema cubano contemporâneo. “Ele opta por mulheres da periferia, por mulheres trans, por mulheres que têm problemas com a maternidade, com a sexualidade”. O professor comenta e finaliza: “É um momento bem específico, são as pautas levantadas pela sociedade hoje em dia”.

Fernando Perez, cineasta cubano conhecido por dirigir importantes obras contemporâneas como Suíte Havana (Suite Habana, 2003), Últimos Dias em Havana (Últimos Días en la Habana, 2016) e Madagascar (1995), aceitou comentar ao Cinéfilos sobre como vê o estado atual do cinema em Cuba. Para ele, o cinema cubano ainda não é independente, mas busca a sua independência: “O cinema cubano ainda não é predominantemente independente, mas aspira a sê-lo porque essa é a ambição de uma nova geração de cineastas que não esperam que a indústria faça filmes. As razões para sua falta de independência se devem aos recursos. Esses recursos também são limitados na produção institucional, que não tem sido muito abundante nos últimos anos”.

Ele ainda ressalta que essa independência não é simplesmente um caso material: “Mas o que define o cinema independente cubano não é uma questão quantitativa, mas sim qualitativa, resultado de uma evolução natural da nossa cinematografia. Por quê? Porque é, antes de tudo, uma atitude. Uma atitude que se reflete numa perspetiva menos comprometida, mais experimental e, portanto, mais livre nas suas propostas estéticas e temáticas.”

Ele ainda cita um manifesto recente, “Palavras do Cardume”, escrito por jovens cineastas em 2018, que reúne as propostas para um “novíssimo” e independente cinema cubano. Fernando finaliza com uma mensagem de esperança, após comentar sobre a dispersão desse “cardume” de realizadores cubanos, que agora se encontram espalhados pelo mundo: “Sempre pensei que toda crise gera mudança, e estou convencido de que o cardume se reagrupará de múltiplas maneiras inéditas, aleatórias, talvez impensáveis, mas inevitáveis ​​pela lei da vida, para dar vida ao cinema cubano de nossos tempos e dos tempos vindouros”.

Fernando Peréz é um dos expoentes do cinema cubano contemporâneo, tendo uma vasta filmografia a partir dos anos 2000 [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

“Nossos filmes, criados na Ilha e além, continuarão a falar e ressoar, mesmo que tentem nos silenciar. Eles falarão por si mesmos e serão nossas vozes, as vozes de muitos. Encontraremos novas palavras, novas frases, novas linguagens para compartilhar nossa mensagem. Mas nunca permaneceremos em silêncio.”

Trecho extraído do manifesto Palabras del Cardumen

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