O Sesc Pompeia promoveu o Closebilidades, programação do Projeto Legítima Diferença. As atividades consistiram em um conjunto de encontros gratuitos cujo objetivo foi evidenciar e discutir os estereótipos, os preconceitos e as relações sociais focadas na equação que relaciona mídia, LGBTQI, negritude e juventude. O Sala33 esteve em dois desses dias para registrar o evento, durante o fim do mês de maio.
Os artigos trataram sobre afetividade e solidão dos indivíduos negros e LGBTQIA+. Todos os assentos e áreas ao redor de um palco ainda vazio estavam ocupados por públicos de características físicas diversas. A atividade teve início com a performance da artista visual Piê Carvalho, vulgo Bruxa travesti.
Performance Pretifica
“Como é existir sendo preta?”
O áudio poesia ecoa das caixas de som na área dedicada à execução do evento e surpreende a plateia. O palco continua vazio. Ainda faltavam alguns minutos para o horário previsto pela programação, fato que contribuiu para a surpresa causada.
“Como é não se encontrar preta?
Como é estar preta?
Como é viver sendo preta?”
Neste ponto, o público já havia encontrado a performer na entrada do evento no sentido oposto ao palco. Estática. Na primeira análise, já é perceptível a alegoria ao tema através das vestimentas da artista, fato que, somado à narração acústica, acrescenta força à performance por meio de críticas sutis, mas contundentes. Dado o tema, por que haveria de ser diferente? Afinal, a brutalidade é um dos aspectos principais das diversas violências vividas por esses indivíduos.
“Embranquece tua voz teu corpo
Roteiriza a hipersexualização”
O pano branco que encobre seu corpo e olhos denuncia os padrões racistas, impostos pela sociedade, expondo como ela enxerga o mundo e a si mesma. Os movimentos da artista são leves e vagarosos e, seguindo esse padrão, há interação com uma moldura presente no espaço. Ela desloca o objeto à frente do rosto e, após alguns instantes, a moldura é ressignificada e transforma-se em espelho. Piê Carvalho se olha ao mesmo tempo em que parece olhar para toda a plateia, fato que fomenta a duplicidade de sentidos. O eu lírico não só tenta se encaixar, ele também julga todos nos mesmos padrões.

Corpo preto preto preto preto preto
Que não se enquadra, que veste, transveste e mata”
O espelho incorpora-se à performance. A artista dança com o objeto enquanto contorce o seu corpo, de forma incomoda, de maneira incomum. A agonia é nítida. Nesse ponto, passos são dados em direção ao espaço entre as fileiras das cadeiras nas quais está a plateia. O espelho pesa, é difícil carregá-lo. A performer aloca sua “cruz” em suas costas para locomovê-la até o palco, fazendo alusão à caminhada de Cristo.

Ao chegar ao palco, há mais momentos de contemplação e silêncio, seguidos por agonia. A sutileza abre espaço para movimentos violentos e grosseiros. O eu lírico tenta se livrar das vestes brancas. Aquela que cobria os olhos é a primeira a ser removida, porém, as que lhe cobrem o corpo são retiradas apenas depois de uma verdadeira batalha. É evidenciada a desconstrução do olhar e o subsequente processo de autoaceitação. A sinceridade estabelecida em cada cena é o grande atrativo da performance. Porém, a cena se arrasta um pouco mais do que deveria pois muito tempo é usado para transmitir a mesma mensagem.
“Enfrenta teorias, desmente bíblias vazias, transita a redescoberta, e silencia
Abandonada
em suas próprias inseguranças
Pede a mão e quebra-lhe o dedo.”
Após esse momento, esperava-se a catarse, afinal, enfim ocorre a aceitação. Entretanto não é o que acontece. O eu lírico não é apenas negro mas, também, LGBTQ+. Gay preto, lésbica preta, trans preta. Duas invisibilidades em um corpo só. A somatória de violências advindas do pertencimento às duas minorias coloca a artista novamente em um não-lugar. Em uma posição solitária, na qual as violências partem até das comunidades que deveriam acolhê-la. Nesse ponto, há novamente uma aproximação com a figura de Jesus, já que ambos foram crucificados por aqueles que deveriam estar ao seu lado. Assim, carregam mais semelhanças do que diferenças. O timing do auge da cena foi perfeito. As relações com a divindade cristã foram sendo estabelecidas durante a performance de modo sutil. Tão sutil que poderiam passar despercebidas aos mais desatentos, recompensando a parcela do público mais envolvida na apresentação.

Debate sobre afetividade e solidão
Logo após a performance da Bruxa Travesti, teve início o debate sobre afetividade e solidão no meio LGBTQ. A pauta foi intermediada pela graduanda em Ciências Sociais e dona do canal Afros e afins, Nataly Neri, e trabalhada pelo jornalista, pesquisador, mestre em Estudos Linguísticos e proprietário do canal Muro pequeno”, Murilo Araújo e pela pesquisadora, ciberativista e criadora do canal Sapatão Amiga e do podcast LesboSapiência, Ana Claudino.

O proprietário do canal Muro Pequeno ainda aborda estudo responsável por iniciar uma das crises que impactaram a sua própria auto estima. A pesquisa indicava que indivíduos como ele, homens negros e gays, por serem constantemente desprezados, submetem-se a situações sexuais não seguras para obter “migalhas afetivas”.
Já Ana Claudino relata sobre as dificuldades de desprender-se das imposições sociais, o que ela denomina de “o homem cis hétero e branco que habita cada um de nós“, e como esse processo é importante para o rompimento dos estereótipos que fomentam preconceitos até nos próprios coletivos identitários. Revela como precisa ser didática para se relacionar com as comunidades a qual pertence e como não se sente totalmente acolhida em nenhuma delas.
Por fim, a mestre em estudos linguísticos destaca que não existe hierarquia entre opressões, as minorias devem trabalhar em conjunto, pois todas as violências estão intrinsecamente relacionadas entre si. O aprofundamento nesta questão é recorrente apenas em ambientes mais restritos ou acadêmicos, o que torna a fala ainda mais importante.
Durante o debate, a plateia sentiu-se contemplada em diversos momentos. Porém, a discussão fugiu da proposta do dia em alguns momentos, fato que gerou incômodo. Um exemplo é o momento em que Murilo expõe e explica que ser cristão é o aspecto da sua vivência mais estereotipado. Apesar das ressalvas feitas pelo convidado, a declaração é polêmica tendo em vista o tema do evento.
Após o debate, o grupo de rap Quebrada Queer finalizou o dia animando o público com músicas de empoderamento, militância e resistência. Apesar do curto show ter sido incrível, as letras não dialogavam com o tema. As músicas marcavam uma resistência externa ao meio LGBTQ+, já o tema da noite estava mais relacionado às contradições dentro da própria comunidade.
Festa Amem

O cantor Biel Lima abriu a noite com canções românticas e calmas, proporcionando momentos de trocas de carinho entre o público. Abraços e beijos preencheram o espaço endossado pelo ritmo de soul music mesclado com MPB na voz de Biel. O som do violão adicionava ainda mais intimismo à apresentação.



