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Crônica | Para Todo Sempre

Poderosa empresária, ela tem o hábito de passar dias inteiros no cinema, mas nenhuma sessão havia sido como aquela
Por Rachel M. Mendes (rachelmmendes@usp.br)

Em 15 anos como empresária, fiz de costume reservar dias para o predileto dentre meus descansos: passar o máximo de horas possíveis no cinema, assistindo quantos filmes estiverem disponíveis. Chego à sala ainda pela manhã, ciente de que teria de visitar a sede da empresa em que trabalho quando o repouso chegasse ao fim.

Caro leitor, as poltronas clamavam meu nome em sua infinitude de veludo vermelho. O aroma amanteigado da pipoca parecia me envolver em sonho. Nada, leitor, nada parecia atividade de relaxamento mais aprazível. 

E, então, as luzes se apagam e há somente o eterno universo das telonas. O primeiro filme começava. Os pilares em mármore emergiam na decoração do templo sublime. Postura reta, coroa de ouro adornada em louros, feição altiva: o imperador debruçava os braços heroicos sobre a varanda ornamentada. Ah! A milhas e milhas ouviam o som! O povo bradava em glória, urrava em triunfo, celebrando a majestade armada da vitória de mais uma guerra travada. 

Em juras eternas de vinho, glória e poder, cantarolavam declarações da grandiosidade de seu império. Haveria de durar para todo o sempre! Sobreviveria à corrosão das chuvas. Em esnobação contínua do fogo, ignorar infinito de forças humanas em ascensão. Sorriria em zomba da ameaça dos anos. Gladiaria e conquistaria o tempo devorador em eterno silêncio diante da canção das eras. Duraria para sempre. Para todo sempre.

Filmes sobre gladiadores no Império Romano foram muito populares entre os anos 1950 e 1960, de acordo com Screen Rant [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

As imagens na tela mudavam e outro longa-metragem se iniciava. Ornamentos em ouro elevavam o palácio a uma beleza sobre-humana. O manto escarlate mergulhava nas costas do monarca, como se prestasse reverência à coroa dourada. Na sala do trono, nobres curvavam-se em risos e pompas de glória ao adorado líder. As carnes vistosas sobre a mesa espalhavam o perfume de especiarias indianas pelos aposentos.

A pompa e o riso e a glória. E as especiarias e a coroa e os ornamentos. Festejavam na suntuosa varanda do palácio. Servidos pela noite e pela natureza festiva, contemplando a visão distante de ruínas do antigo império. Em juras eternas de vinho, poder e violinos. Quão majestosa a glória que detinham em suas mãos! Postura reta, coroa de ouro, feição altiva: o rei comemorava, exibindo seu cetro eterno, incrustado em joias.

E cantavam, em honra e renome cantavam. Haveria de durar para todo o sempre! Sobreviveria à corrosão das chuvas. Em esnobação contínua do fogo, ignorar infinito de forças humanas em ascensão. Sorriria em zomba da ameaça dos anos. Conquistaria e tornaria em colônia o tempo devorador em eterno silêncio diante da canção das eras. Duraria para sempre. Para todo sempre.

O Palácio de Versalhes é considerado o símbolo do Absolutismo na França e foi cenário do filme de Sofia Coppola, Maria Antonieta (Marie Antoinette, 2006) [Imagem: Wikimedia Commons]

Uma nova trilha sonora invade a sala. Créditos iniciais tomam o telão por mais uma vez. Estacas de madeira erguiam-se, arranhando a vastidão do próprio céu. Governando o seu centro, uma lâmina poderosa o suficiente para decapitar inimigos cintilava. Na guilhotina, cabeças nobres encontravam o fim de seus dias. Feição altiva, coroa de revolução, postura reta: ele era o grandioso, ah, o máximo, ah, o detentor da lei. Posicionava-se como o espectador frio da vingança coletiva. Na promessa de seu semblante, cativava os olhares do povo estupefato e cantante. Entoavam uma cantiga fervorosa, declarando glória.

Bradavam vitória, bradavam transformação. Bradavam revolta, bradavam revolução. Em juras eternas de vinho, sangue e poder. Haveria de durar para todo o sempre! Sobreviveria à corrosão das chuvas. Em esnobação contínua do fogo, ignorar infinito de forças humanas em ascensão. Sorriria em zomba da ameaça dos anos. Tomaria e decapitaria o tempo devorador em eterno silêncio diante da canção das eras. Duraria para sempre. Para todo sempre.

Os Miseráveis (Les Miserábles, 2012) é considerado o mais famoso filme sobre a Revolução Francesa [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

Em 15 anos mantendo o mesmo costume de descanso cinematográfico, aquela era a primeira vez em que exibiam, sequencialmente, apenas filmes históricos. Filmes longos, aproximadamente três horas cada. Uma sessão tripla. Uma sessão histórica. Tripla e histórica. E histórica e tripla. 

Caro leitor, minha mente se via agora atada à contemplação. “Para todo sempre”. Ah, jamais o foi! Um império triunfava e então era esquecido, soterrado pela altivez de um outro. Ah, e esse outro? Em vaidade declarava sua majestade infinda, que haveria até enfim deixar de haver. Sofria o desgaste da corrosão das chuvas. Em derrota contínua do fogo, inevitar infinito de forças humanas em ascensão. Zombado pela consumada ameaça dos anos. Vencido pelo tempo devorador. Em canto ininterrupto da canção das eras. Em um ciclo sem fim de orgulho e queda. Na promessa frágil do envaidecido para sempre, “para todo sempre”.

O relógio marcava oito horas da noite quando saí do shopping naquela sexta-feira. O mês de julho me recebia com ventos álgidos, dançando entre as luzes da Avenida Paulista. Ah, e as luzes! Em volta da estação Trianon-Masp, cintilam as mais enervantes luzes em painéis publicitários.

O Shopping Cidade São Paulo, em frente à estação Trianon-Masp, possui um Cinemark [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

Arranha-céus envidraçados soerguem-se do asfalto. Enfeitando a graça moderna de graciosa modernidade, automóveis desfilam pelas ruas de São Paulo. Brincos de ouro, feição poderosa e postura reta: em passadas firmes, retorno calma e confiantemente à sede de minha empresa. Ao âmago tecnológico de adornos digitais e telas movidas por inteligência artificial, o vai-e-vem humano se expressa em urro de conquista passada e glória futura, ao entoar a promessa da ciência veloz e a vida de méritos. 

Produz melodia de progresso. De futuro. De glória. Em juras eternas de vinho, avanço e poder. Há de durar para todo o sempre! Sobreviverá à corrosão das chuvas. Em esnobação contínua do fogo, ignorar infinito de forças humanas em ascensão. Sorrirá em zomba da ameaça dos anos. Superará e remediará o tempo devorador em eterno silêncio diante da canção das eras. Durará para sempre. Para todo sempre.

*Imagem de capa: Reprodução/Wikimedia Commons

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