O Japão é repleto de referências culturais famosas, que vão desde os mangás e animações japonesas, tão difundidos mundo afora, até a estética arquitetônica e tradições que datam de longínquos milênios. É entre tais tradições que se encontram as danças japonesas, que marcaram a divulgação e os eventos culturais da Olimpíada de Tóquio 2020.
As danças tradicionais são muito antigas e, por isso, se ramificaram ao longo do tempo e dos períodos históricos do país. Vão desde danças populares performadas nas ruas até grandes produções artísticas, com movimentos precisos e cheios de significados, com maquiagens, personagens e figurinos detalhados.
As danças japonesas possuem relevante valor social tanto no próprio país quanto no Brasil, que abriga a maior comunidade nipônica fora do Japão. E é pelo esforço de preservar valores culturais que as danças tradicionais se encontram vivas até hoje, e manifestam-se desde os maiores centros urbanos até pequenas comunidades no interior do país, com portas abertas para quem quiser adentrar o mundo da cultura japonesa além do senso comum.
As diferentes manifestações na dança
A dança esteve presente durante toda a história da humanidade como forma de expressão e na cultura japonesa não seria diferente. Daniel Aleixo, dançarino da Companhia Fujima de Dança Kabuki, com sede na cidade de São Paulo, e graduando em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), elenca os três tipos de danças japonesas tradicionais: o Odori, o Buyo e o Mai. As três palavras, em japonês, possuem o significado de dança, só que em diferentes contextos, ou seja, dependem da situação em que são apresentados.
O Buyo, também conhecido como Nihon-Buyo ou Ryukyu-Buyo, “significa dança, no sentido de algo preparado para uma cena”, conta Daniel. A cena a que o dançarino se refere vem do teatro, neste caso o Kabuki, onde o Buyo é dançado. “Já o Odori é dança no sentido de algo popular. Ele resgata festividades populares ou folclóricas. O Odori seria, fazendo uma comparação, a quadrilha de festa junina. O Buyo seria o balé clássico. Então o Odori vem de um lugar mais popular, das festividades de rua, onde qualquer pessoa pode dançar, e o Buyo é algo feito como uma dança cênica”, compara.
Daniel também explica sobre a existência do Mai, “que seria uma dança mais ritualística, de sacerdócio, de religiosidade. Também está presente no teatro Nô, por exemplo, que é um teatro de corte, mais antigo que o Kabuki”.
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Kabuki: o teatro-dança
O estilo de teatro e dança japonesa chamado Kabuki combina música com movimentos de dança precisos, vestes trabalhadas e gestos mímicos que criam uma imersão junto à plateia. Seus ideogramas significam canto (ka), dança (bu) e habilidade (ki) e podem ser traduzidos como “a arte de cantar e dançar”.
Satie Hideshima, dançarina de Kabuki desde os cinco anos de idade e descendente de dançarina japonesa, herdou desde a história do Kabuki até os movimentos da dança. Ela conta que o surgimento do Kabuki data do ano de 1603, no período Edo, quando a dançarina e atriz Izumo No Okuni apresentou em Kyoto a dança Kabuki pela primeira vez para a corte imperial do shogun (comandante militar) Tokugawa Ieyasu. Após esse evento, a dança se tornou popular rapidamente.
O Kabuki chegou a ser banido no Japão no século 19 e Daniel adiciona que, até 1868, “a arte do Kabuki em si, e seus artistas eram vistos como sujos, algo moralmente proibido, e não faziam parte da pirâmide social do Japão da época”. Apenas naquele ano, quase duas décadas após seu banimento, a arte foi considerada oficial, após representantes do governo dos Estados Unidos assistirem a uma apresentação de Kabuki junto com o primeiro-ministro japonês e apreciarem a performance.
Apesar de o estilo de dança ter sido criado por uma mulher, a performance do Kabuki por mulheres foi proibida pelo shogunato em 1629, pela sua disposição erótica e sugestiva, e passou a ser executada somente por homens, que interpretavam todos os tipos de personagens. Satie comenta que até hoje o Kabuki é predominantemente masculino e que a mulher participa na elaboração das coreografias. “A coreógrafa geralmente era uma mulher. Mesmo sendo proibidas, quem sabia as coreografias eram as mulheres. Então quando você as proíbe de dançar, os homens continuam treinando com elas, mesmo que elas não apareçam”, destaca.
Satie acrescenta que isso não significa que as mulheres não dancem hoje em dia. No Brasil, o Kabuki é atualmente dançado por mulheres, mas quando performado em seu país de origem, na língua oficial, o comum é ver homens atuando.
A tradição nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020
O vídeo promocional da Olimpíada de Tóquio 2020, lançado em 2017 e intitulado Tokyo Gorin Ondo, mostra uma performance de Odori. A escolha do governo japonês em expor a dança tradicional por meio do vídeo, com remake da música original lançada nos Jogos Olímpicos realizados em Tóquio em 1964, é comentada por Daniel: “Levar o Odori [para o público] é levar algo que é acessível, uma identidade tradicional. Então a escolha é mais pela acessibilidade e representação”.
O Odori, por também possuir uma característica mais inclusiva e festiva, cria identificação tanto com as diferentes gerações do país quanto com pessoas de outras nacionalidades que assistem ao vídeo.
Foi com a proposta de representar a cultura do Japão que a estudante Karoline Takahashi, junto a outras colegas da comunidade local japonesa, apresentaram na Associação Cultural e Esportiva Nipo-Brasileira de Guaíra, SP, em 2019, a coreografia de Gorin Ondo. A associação, conhecida pelo nome de sua sede, Kai-Kan, surgiu em 1959 como ponto de confraternização entre os imigrantes japoneses que se instalavam na cidade. Guaíra, assim como outros municípios do interior do estado de São Paulo, recebeu uma grande quantidade de imigrantes vindos do Japão. “Eu nasci no Japão e morei lá até meus 11 anos. Nunca tive muito contato com as danças tradicionais de lá, tive mais quando cheguei a Guaíra, porque as danças japonesas que são ‘famosas’ aqui no Brasil são danças típicas porém velhas já. São danças que são apresentadas só nos eventos tradicionais lá no Japão”, diz Karoline.
Trajando uma yukata, versão mais simples e barata do kimono tradicional, a qual trouxe do Japão, Karoline apresentou o Odori no palco do 8º Kouhaku, um festival de karaokê que acontece no Shogatsu, o ano novo tradicional japonês. De acordo com a própria natureza popular do Odori, foi fácil para ela aprender e memorizar os passos para a apresentação. “Peguei a coreografia oficial quando saiu no YouTube e a aprendi em casa, então passei para as meninas”.
Sob a nomenclatura de Bon Odori, o Odori costuma ser encenado no festival Bon ou Obon, que acontece no verão japonês, no mês de julho ou agosto. O objetivo da festa é receber as almas dos ancestrais que, segundo as tradições e lendas, retornam aos seus lares nesse período. O festival dura alguns dias e é comum que cidadãos japoneses retornem às suas cidades natais para participar das celebrações. O Bon Odori, portanto, representa a confraternização entre comunidades locais e suas famílias em torno da homenagem a seus ancestrais e, por isso, é considerado o ponto mais importante do festival. Nele, participantes juntam-se em uma roda ou linha de passos sincronizados e dançam ao som de músicas variadas, muitas vezes compostas pelos batuques do taiko, os tambores tradicionais japoneses.
Para a comunidade nipo-brasileira, a prática do Bon Odori é igualmente importante para o convívio entre descendentes e a manutenção da cultura. “A maioria dos descendentes ou brasileiros que participam dos eventos do Kai-Kan sabe dançar o Bon Odori. Muita gente sabe porque foi passado de geração em geração”, afirma Karoline.
O Bon Odori pelas gerações
Enquanto companhias de dança mantêm a tradição viva por meio de cursos e aulas, a exemplo da dançarina Satie Hideshima, as famílias também são responsáveis pela transmissão ao longo das gerações. Nair Uemura, filha de imigrantes japoneses, mora em Guaíra há mais de 50 anos. Ela nasceu em Marília, mas acompanhando seus pais no trabalho na lavoura, já morou em várias cidades. Foi em São Paulo que conheceu Takeshi Uemura, imigrante que veio sozinho do Japão aos 27 anos. Eles se casaram e, como à época Takeshi era funcionário da empresa algodoeira Brazcot, com filial em Guaíra, o casal se mudou para a cidade.
Depois de se estabelecerem, ela e o marido começaram a se envolver com as atividades da Associação Cultural e Esportiva Nipo-Brasileira de Guaíra. Ele, além de ter presidido a associação, também era membro assíduo das atividades culturais, desde gateball, jogo de taco muito comum no Japão, ao karaokê e ao Undokai, gincana tradicional com vários jogos e competições. Foi no Fujinkai, o departamento de senhoras do Kai-Kan, que Nair começou a praticar o Bon Odori: “Quando somos crianças aprendemos a dança das crianças, depois vai mudando. Esse tipo de dança [o Bon Odori] a gente dança em festas, convidando a todos que queiram dançar. Mesmo que um não saiba, ele vai olhando e fazendo”. Nair explica que cada música tem uma coreografia e que qualquer um pode participar, mesmo que não faça parte da comunidade nipônica.
Com cinco filhos, 11 netos e dois bisnetos, muitos deles igualmente engajados nas atividades e confraternizações do Kai-Kan, Nair afirma ser importante manter associações como essa, uma vez que são poucos os cidadãos japoneses da primeira geração de imigrantes, chamados de issei, ainda vivos na cidade. “Nós não podemos deixar morrer a cultura japonesa. Nós somos descendentes, quer dizer, nós não somos nascidos lá. Já está na quarta geração, mas associações desse tipo, o Kai-Kan aqui, servem para mostrar para os descendentes e também não deixar morrer a cultura japonesa”.
A exemplo do marido de Nair, que veio para terras brasileiras para tentar uma nova vida, os imigrantes tiveram que lidar com dificuldades de um país desconhecido, com poucas semelhanças culturais. O Bon Odori, quando praticado entre as comunidades nipo-brasileiras, não só fortalece os laços e os costumes, mas também celebra os ancestrais vindos do Japão. Afinal, é como destaca Nair: “Foram corajosos, né? Era tudo diferente, língua, alimentação. Sofreram muito. Por isso eu falo para os jovens de hoje: se todos estamos bem, devemos aos imigrantes, aos nossos antepassados, aos esforços deles, que vieram trabalhando, formando suas famílias”.