– Que horas é o voo? – questionou a mãe, lavando a última xícara para o desjejum da família.
– Onze e… – John tenta alcançar a passagem do outro lado da repleta mesa do café
– Onze e meia – completou a irmã mais nova, com um ar de zoação – Qual é o fuso do Zimbabwe mesmo?
– Em primeiro lugar, é Quênia. O Zimbabwe fica mais pra baixo – John intercalou a resposta com uma mordida no pão com salsicha e ovos mexidos – E em segundo lugar, são só duas horas pra frente. Contando com as quase 9 horas de vôo…
– E por que eles te mandariam pro Quênia? Tá faltando notícia em Londres? – Interrompeu o irmão ainda mais novo.
– Não… É que… Quantas matérias você já leu sobre a tecnologia no Quênia? – devolveu John, entre uma risada.
– Ele tem dez anos… – disse a mãe, interrompendo a conversa.
– Eu sei, não é esse o ponto…
– O que tem no Quênia? – perguntou a irmã, franzindo a cara.
– Futebol, Ugali (que é tipo um mingau, uma mistura de farinha de milho branco e água), o Monte Quênia (que dá nome pro país), a Lupita Nyong’o nasceu lá, eles têm ótimos corredores…
– Tá… – interrompeu a irmã, impaciente.
– Corredores eu digo… – continuou John, ignorando a interrupção – pessoas que correm, 73% da população deles mora em áreas rurais, eles têm 11% das espécies de pássaros no mundo…
– Tá, eu já entendi…
– E, aparentemente, tecnologia… Vários investidores internacionais tão indo pra lá, Google, IBM… então… é isso.
– E você vai chegar lá e vai fazer o que? – insistiu a irmã, inquisitiva.
– Ele vai entrevistar um professor, querida… senta pra tomar o café – respondeu a mãe, colocando as xícaras na mesa.
– Isso, ele é da Universidade de Nairobi, a capital do país. Doutor em ciência política, com especialização em tecnologia.
– Qual que é o nome dele mesmo, querido?
– Samuel…. Mugi? Acho que é isso, Dr. Samuel Mugi – com a resposta, John levantou da mesa do café – E se a entrevista tiver acabado, eu vou escovar os dentes.
“Microsoft, Nokia, Huawei e…. Qual é essa última empresa que você citou?”, questionou o Dr. coçando a barba, pensativo. “IBM”, respondeu John enquanto terminava de anotar algo em seu caderno.
“Os investidores internacionais são sim importantes, financiamento é sim importante. Mas a visão do povo queniano, as tentativas de olhar os problemas reais das pessoas e resolver com o que temos na mão, mesmo com as limitações, são nosso diferencial.”
“Treze anos atrás, lá em 2007, surgiu aqui no país um serviço chamado M-Pesa, ele permitia (e permite, ainda é super popular) que as pessoas mexessem com dinheiro e fizessem transações a partir dos modelos mais simples de celular”, o Dr. Mugi deu um gole no copo d’água em cima da mesa antes de continuar.
“O resultado foi uma revolução: Hoje, 73% dos quenianos acima de 15 anos têm uma conta em um serviço de dinheiro virtual. Isso são dados da ‘We Are Social’, de 2020, depois eu te passo. Nesse quesito, nós somos referência.”
Na extensa sala de aula, reservada para a entrevista, John sentou-se na primeira fileira. Enquanto anotava uma coisa ou outra num caderninho, seus olhos volta-e-meia iam parar no smartphone, que gravava a conversa. Seria seu apoio para a transcrição quando voltasse para Londres.
“Em 2010, surgiu o M-Farm, que liga fazendeiros diretamente aos vendedores de hortaliças. Ele indica as tendências de preço do mercado e aumentou o lucro principalmente dos pequenos vendedores, que antes tinham dificuldade em achar seu sustento com o que plantavam, justamente pela falta de informação. Tudo isso com um SMS, com um celular básico. Meu pai vende batatas e eu posso te confirmar que ajudou muito”, ele concluiu com um sorriso e mais um gole d’água.
“Voltando um pouco mais, em 2008 o país viveu uma crise enorme de violência pós-eleições. Foram tempos muito críticos e o que nós fizemos com isso? Um aplicativo que mapeia violência. Se você presenciasse um foco de violência na sua rua ou no seu bairro, era só enviar um SMS e isso era registrado num mapa dentro de um blog, no Blogspot. A Ushahidi, esse aplicativo, foi uma iniciativa tão importante que hoje contempla mais de 150 países e é uma referência em tecnologia.”
“O que eu quero dizer com isso, e dava para citar M-Shwari, iHub, iCow… e muitas outras startups, é que todos esses projetos vieram de mentes quenianas (quase todos, o M-Pesa é de criadores britânicos) que enxergaram problemas do dia a dia e encontraram soluções com a tecnologia disponível.”
Atento, John mordia a ponta da caneta enquanto uma pergunta lhe coçava a língua: “E você acha que o governo também vê as iniciativas nacionais dessa forma? Tem essa visão?”, perguntou pensativo. O Dr. Mugi franziu os lábios, apoiando as costas na mesa de madeira.
“Olha, sim e não. Acho que a gente vai chegar nessa parte mais pra frente… qual é a próxima pergunta?”
– A questão é que se a concorrência escreve, a gente tem que escrever também, não tem jeito. – John terminou a frase enquanto se concentrava em abotoar a manga da camisa.
– Então quer dizer que os grandes jornais tão enviando gente pro Quênia? – a irmã voltou a questionar.
– Não sei se tão enviando, mas tão escrevendo sobre. “Wired”, “Telegraph”, “Technologist”, todos têm textos nos últimos dois anos sobre o que tão chamando de Silicon Savannah, esse Vale do Silício no meio da savana africana.
– Estranho, eu nunca ouvi falar disso.
– É, mas vai poder saber tudo sobre quando ler a minha matéria – retrucou John, irônico – Se você der um Google, vai achar várias imagens de lá com grandes empresas… espaços de coworking, esses tech hubs que reunem startups etc.
– Bem diferente do que eu imaginaria do Quênia – opinou a mãe, entre uma mordida no café da manhã.
– Pois é… vamos ver – respondeu John, já com a camisa abotoada.
“Tá, essa pergunta é bem comum. Geralmente os jornalistas vêm atrás do ‘Vale do Silício africano’, um paraíso do investimento e da tecnologia, e eu sempre gosto de citar uma conversa que tive com o pesquisador Prince K. Guma, que é um candidato a PhD em Estudos Urbanos. Ele estuda a intersecção dos estudos urbanos africanos com a ciência, a tecnologia e a sociedade. Ele é daqui de Nairóbi mesmo”, o Dr. parou um instante, procurando o contato de Prince no celular. “Depois eu te passo o número dele…”
“‘A ideia aqui é que, ao retratar Nairobi como uma espécie de Vale do Silício em uma savana, é possível criar uma narrativa de uma cidade inteligente no Sul global, cuja inteligência é moldada em torno de instituições e atores globais e neoliberais, como Google, IBM, I-Hub, NaiLab e assim por diante. Mas, assim como grande parte da inovação tecnológica no Quênia, os retratos geralmente parecem distanciados da realidade’”, citou o Dr. Mugi, com a frase de Prince Guma sobre o assunto já muito bem decorada.
“O ponto é: ainda que exista inovação tecnológica, grandes empresas, startups e tudo mais aqui em Nairobi, também há pobreza, favelas, fome… E essas duas realidades coexistem”, disse, incisivo. Com a frase, ele contornou a mesa e decidiu rabiscar os números no quadro branco.
“De acordo com índices de 2020 do ‘World Poverty Clock’, o Quênia tem 17% de sua população vivendo em extrema pobreza. São mais de oito milhões de pessoas. Em países desenvolvidos, esse número chega a menos de 3%”, aos poucos o marcador em vermelho foi assinalando os números de desigualdade.
“Se analisarmos especificamente Nairóbi, um estudo baseado no censo de 2009 fala de uma diferença de 5% de população pobre em bairros mais abastados, como Kileleshwa e Kilimani, para 60% em bairros mais carentes, como Korogocho e Laini. Mesmo que os nomes das regiões não signifique muito para você, conseguimos ter uma ideia da disparidade entre diferentes cantos da cidade.”
“Agora, as favelas: em 2012, existiam aproximadamente 2,5 milhões de moradores de favelas em cerca de 200 assentamentos em Nairobi, representando 60% da população da cidade e ocupando apenas 6% da terra, de acordo com dados do Centro Africano de Pesquisa sobre População e Saúde (APHRC).”
17% em extrema pobreza. 8 milhões de pessoas. 5%. 60%. 2,5 milhões. Todos alinhados no quadro branco.
“Voltando ao Prince: ele diz que os planos urbanos nem sempre refletem o que está no terreno. Projetos tecnológicos não são o que muitas vezes acabam sendo implementados. Muitas coisas são frequentemente aprimoradas no processo de uso – principalmente porque Nairobi, por sua própria natureza, é uma cidade altamente heterogênea, fragmentada e variada. Nada é claro e, embora você tenha todas essas grandes empresas, centros de tecnologia e espaços de trabalho (você também possui as tecnologias e inovações conduzidas por empresas menores e por comunidades de baixo para cima), elas não refletem a real (ou completa) realidade de Nairobi’”.
“O resumo é: existe um Vale do Silício em Nairobi? Talvez até exista, nós já conversamos sobre todas as nossas iniciativas, a estrutura, o investimento estrangeiro… mas não dá para fingir que a cidade é só isso. E o mesmo serve para a pobreza, existe tecnologia, existe inventividade”, o Dr. Mugi tampou o marcador, olhando para a “cara de interrogação” de John, que certamente estava com algo na cabeça.
“Talvez eu deva dar uma olhada nos ‘retratos’ que têm sido utilizados nas outras revistas, os outros jornais, como você mesmo disse”, disse John, anotando algo em seu caderninho.
“É, talvez seja uma boa ideia.”
– Tá, e além disso tem a tecnópole, que se chama… Konza, é – John tentou lembrar do que havia pesquisado enquanto procurava alguma coisa na mesa de jantar, nas cadeiras, na cama, no banheiro – Vocês viram minhas chaves por aí?
– O que é uma tecnópole? – perguntou a irmã com a atenção dividida com o celular.
– Obrigado pela ajuda… – disse John enquanto vasculhava a casa, já estava arrumado, as chaves eram o que faltava – uma tecnópole é “uma cidade de escala mundial, alimentada por um setor próspero de tecnologias de informação e comunicação (ICT), ótima infraestrutura e sistemas de governança amigáveis aos negócios”.
À procura das chaves, John gritava do outro cômodo as respostas para a irmã.
– Que resposta… natural – respondeu irônica.
– Obrigado – devolveu John – copiei do site deles, de Konza. A ideia do governo é criar essa cidade hiper tecnológica do zero até 2030. Não sei muito bem para que vai servir, mas sei que é um projeto bilionário e que deve atrair…
– Investidores internacionais – disseram os dois sincronizados.
– É isso aí – disse John entre uma risada, vasculhando a última almofada do sofá – quase lá… achei!
John retornou orgulhoso para a cozinha pronto para dar um beijo de despedida na mãe.
– Você não tá esquecendo nada? – questionou a mãe, mais pela força do hábito.
– Chave OK, passagem OK, caderno OK, celular OK, carteira… carteira, falta carteira – respondeu John enquanto apalpava os bolsos – ahhhh, que droga! vocês não viram ela por aí?
“Konza faz parte do ‘Kenya Vision 2030’, um plano que vem desde 2008 e vai até 2030, com diversos projetos que visam transformar o Quênia em ‘um país globalmente competitivo e próspero, com alta qualidade de vida’. A construção da cidade é um projeto de custo multibilionário, chegando a 13 bilhões de dólares, entre capital estrangeiro, da iniciativa privada e do governo”, disse o Dr., enfim sentando-se numa cadeira.
“A ideia ainda não foi muito para frente, o terreno destinado para Konza só tem um prédio, que deveria ser a sede organizacional da cidade, de resto é só um grande descampado a 60 km de Nairobi. Mas, mesmo que o governo tenha tropeçado um pouco e os investidores tenham desanimado, ainda dá pra pensar na ideia, relacionando com a nossa conversa sobre tecnologia”, Mugi interrompeu a frase para um gole d’água.
“Dentro do que o senhor comentou sobre desigualdade social e tudo mais, esse investimento de bilhões se justifica? Não tem setores e pessoas que precisariam mais desse dinheiro?”, questionou John aproveitando a pausa.
“Sem dúvida, o governo poderia voltar mais esforços para resolver problemas como abastecimento de água, acesso à moradia, energia elétrica… mas como você mesmo lembrou, os investidores internacionais têm um papel importante. Nesse assunto, eu gosto de citar a Angela Pashayan, pesquisadora da área da ciência política e relações internacionais, com foco na África nos últimos anos, aluna de PhD na Howard University, em Washington.”
“Ela lembra que ‘os governos precisam aceitar ofertas nas quais empresas estrangeiras desejam investir. Ninguém quer investir na pobreza porque não pode ganhar dinheiro com esse investimento’. Agora, ela também comenta que ‘ainda assim, acordos de bilhões de dólares como esses deveriam ter uma ressalva para obter aprovação do público, usando parte dele para fornecer água encanada e esgoto nas favelas. O mundo inteiro ficaria atrás desse modelo simplesmente porque é a coisa certa a fazer’. Talvez seja o que todos desejamos, mesmo que, na prática, não funcione bem assim.”
“Ainda assim, o governo investir na tecnologia do país faz muito sentido. É o que falamos das iniciativas lá no início, segundo um relatório de 2019 do ‘Enpact Data Lab’, em termos de eventos de tecnologia, número de startups e rentabilidade dessas empresas na hora da venda, o Quênia é líder na África e no Oriente Médio inteiro. Nairobi tem cerca de 600 startups, enquanto a média das cidades da região é de 100.”
“Como a Angela enfatiza, uma tecnópole traria smartphones mais baratos para a população pobre, afinal as pessoas precisam acessar a tecnologia para as corporações ganharem dinheiro com ela, os pobres dependem de smartphones para acessar as atividades do dia a dia: pagamento de contas, compras de alimentos, transferências para a família, pagamento de empréstimos etc.. Além de Konza trazer emprego para a população jovem do país, (cerca de 75% da população, segundo nosso Escritório Nacional de Estatística)”.
“Isso traria efeitos colaterais também, não? Com a automatização etc.”, questionou John coçando a cabeça.
“Claro, a Angela também fala disso: com a vinda em peso da inteligência artificial, existe uma perda de empregos, mas também existe uma mudança deles. A classe média ganha novas oportunidades, o que significa que os empregos que deixaram agora estão abertos para a classe baixa, fazendo com que todos subam um nível em termos de empregos disponíveis”.
“Além de fomentar o cenário da tecnologia e gerar empregos, tem mais algum fator importante para a construção de Konza?”, lançou John enquanto anotava.
“Criar um cartão de visitas desses para o mundo busca fomentar o mercado nacional como um todo, especialmente da região. Como a Angela diz, a tecnópole traz turistas e estrangeiros que precisam de serviços: transporte, roupas lavadas, alimentos cozidos, limpeza de casas, creches, assistentes pessoais e tudo mais que você possa imaginar.”
O Dr. Mugi deu uma pausa, tomou um gole d’água, coçou a barba e olhou para a lousa. Buscava uma maneira de resumir aquilo tudo, entre números, especialistas, índices, pesquisas…
“Como nós falamos, tudo isso é uma forma de investir em uma cenário tecnológico de startups e de iniciativas que já é muito bem sucedido e tem espaço para crescer. O ‘Kenya Vision’ anda de mãos dadas com isso. Mas é claro que isso também se baseia em escolhas. Eu gosto de citar um artigo* do Prince Guma que resume bem: ‘Em vez de aprimorar a realidade cotidiana da vida urbana, espera-se que Nairobi se reinvente como local de escolha para investidores e visitantes. Em outras palavras, espera-se que atinja grandes corporações e capital de investimento e atenda aos padrões e credenciamentos mais globais e externos’”, o Dr. Mugi terminou a frase enquanto balançava a cabeça, parecia meio distante.
“Mais alguma pergunta?”, questionou, virando-se para John de repente.
John foi pego de surpresa, mas respondeu honesto: “Muitas”.
Nota do autor:
O conto que você acaba de ler traz dois personagens fictícios: o jornalista inglês chamado “John” e o doutor em ciência política, com especialização em tecnologia, “Samuel Mugi”. No entanto, os índices citados, os especialistas (Prince K. Guma e Angela Pashayan, aos quais agradeço muito por terem aceitado conversar comigo) e a realidade retratada são verdadeiros, apenas foram entregues ao leitor de maneira diferente.
(*) o artigo citado é: “Guma, P. K., & Monstadt, J. (2020). Smart city making? The spread of ICT-driven plans and infrastructures in Nairobi. Urban Geography, 1–22.”.