Construída a partir de documentos e testemunhos de sobreviventes disponíveis, Detroit em Rebelião (Detroit, 2017) atenta para os 50 anos do motim que, em cinco dias, apresentou um saldo de 43 pessoas mortas – das quais 33 negras -, 1.189 feridos e cerca de 2 mil edifícios destruídos. Dirigido pela cineasta norte-americana Kathryn Bigelow, vencedora do Oscar por Guerra ao Terror (The Hurt Locker, 2008) e indicada por A Hora Mais Escura (Zero Dark Thirty, 2012), o longa expressa a precipitação de insustentáveis tensões interraciais, o preconceito institucionalizado e a segregação étnico-social na cidade-título.
A obra desponta com uma breve animação que introduz e sintetiza a trajetória da população afro-americana desde o período de migração massiva dos campos de algodão do Sul para os centros industriais do Norte, até as tensões raciais da década de 60 contra a truculência policial nos EUA. Para tanto, os recursos sonoros enriquecem o percurso traçado na abertura: dos ruídos emitidos por grilos, abelhas e corvos nos campos de algodão, passando pelo tilintar dos sinos e do barulho das máquinas no meio industrial aos sons da sirene policial e das chamas de fogo, que ilustram a ebulição das tensões raciais em Detroit.
O episódio que precipitou os cincos dias do motim, em julho de 1967, foi uma incursão policial dirigida por um grupo de oficiais majoritariamente brancos em um bar sem licença – conhecido como “Blind pig” –, impulsionando a fúria dos moradores locais, que começam a arremessar tijolos sobre as janelas das lojas, saquear estabelecimentos e provocar incêndios como resposta. Para a exposição desse cenário, o filme conjuga a dramatização entre os atores com o uso de imagens de arquivo.
É no Motel Algiers, porém, onde se encontra o grande recorte do conflito pela obra. Civis negros e duas mulheres brancas de Ohio são emparedados pela polícia no ambiente e enfrentam horas de violência e tortura físico-emocional. A câmera destaca o medo e o estado de humilhação imposto às personagens, expressos no olhar, nos rostos cheios de sangue e suor e nos gemidos de dor diante dos golpes de três policiais locais – Krauss (Will Poulter) é o principal deles, sustentando um olhar frio e calculista durante todo o longa.
O som dos tiros é estrondoso, assim como a expressão de crueldade e as manifestações de racismo dos agressores. Algumas das cenas combinam a exterioridade do racismo com o machismo, chegando ao ponto dos policiais perguntarem às mulheres brancas – Julie (Hannah Murray) e Karen (Kaitlyn Dever) – se elas não se sentiam envergonhadas por se envolverem com afroamericanos.
Melvin Dismukes, interpretado por John Boyega, é o único guarda de segurança negro presente no estabelecimento. Cumprindo a missão de proteger uma loja de mantimentos próxima ao local, ele tenta ser amigável aos policiais, deparando-se, entretanto, com as atrocidades lideradas por aqueles.
A maioria das personagens são superficialmente desenvolvidas pela obra, mas há um destaque especial de dois integrantes da banda de jovens negros The Dramatics. Larry (Algee Smith) e Fred (Jacobe Latimore) refugiaram-se no Motel Algiers depois de terem sido impedidos de realizar uma apresentação musical por conta dos tumultos na cidade. Com sua voz, Larry cria uma espécie de dimensão de escape e redenção à atmosfera de violência do filme, cantando trechos das músicas “If You Haven’t Got Love” e “All Because Of You”.
Em seu desenrolar, o longa denuncia o “virar das costas” para o negro, expresso de múltiplas maneiras. Observa-se em determinado momento, por exemplo, um pequeno grupo de policiais que se aproximam do motel e, deparando-se com o cenário de alarmante violência contra os direitos civis que lá se estabelecia, decidem fingir que nada viram e partir – consideram melhor evitar problemas que envolvam os direitos civis dos negros.
Como um retrato significante de um momento sangrento da história norte-americana e de uma marca identitária da cidade de Detroit, a narrativa conversa com questões que ainda permanecem em voga na América de hoje – o racismo, a violência urbana e o modus operandi da polícia perpetuam o paradigma truculento do negro como um corpo sem identidade.
Detroit em Rebelião estreia em 12 de outubro. Confira o trailer!
por Camila Mazzotto
camila.mazzotto@usp.br