Por Lucas Lignon (lucas.lignon@usp.br)
O filme Dias Perfeitos (Perfect Days, 2023) contrasta a área urbana mais populosa do mundo – Tóquio – com a vida calma e simples de Hirayama, protagonista que trabalha na limpeza de banheiros públicos. Desconectada dos intensos fluxos digitais, materiais e financeiros da capital japonesa, a rotina sistêmica de Hirayama convida o espectador a refletir sobre o que de fato faz um dia ser perfeito.
Acordar de madrugada sem despertador, regar as plantas, arrumar-se, dirigir sua van, ouvir cassetes de rock clássico e, então, realizar cuidadosamente seu trabalho. Essa é a rotina de Hirayama que se repete ao longo da produção cinematográfica. A valorização de pequenos detalhes analógicos, como a observação da natureza, a revelação de filmes fotográficos, a apreciação da música e da literatura, mostra que tempo pode ser vivido em compassos menos acelerados. No desenrolar da narrativa, essa tranquilidade – que pode soar tediosa – é pano de fundo para tramas que resgatam o passado do protagonista.
O drama é dirigido por Wim Wenders, a partir do roteiro que escreveu com o produtor japonês Takuma Takasaki. Hirayama é interpretado por Koji Yakusho, que ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes por seu papel. Dias Perfeitos também concorre ao Oscar de Melhor Filme Internacional pelo Japão.
Tokyo Toilet Project
A ideia do filme, gravado inteiramente no Japão, gira em torno do The Tokyo Toilet Project (Projeto de Banheiros em Tóquio). A convite do produtor Takuma Takasaki, Win Wenders visitou os banheiros públicos construídos durante a pandemia da Covid-19 nos bairros movimentados de Tóquio. A partir desse encontro, o projeto nipo-alemão passou de de um ensaio fotográfico para uma possível série de curtas metragens e, finalmente, se concretizou no longa Dias Perfeitos.
Os banheiros em questão não são quaisquer. A organização sem fins lucrativos Nippon Foundation convidou arquitetos e designers renomados para projetar 17 banheiros públicos que ressignificassem a percepção negativa da população sobre esses estabelecimentos. Soluções criativas com o estilo japonês, que misturam o passado e o presente arquitetônico do país, foram projetadas – e inclusive chamaram a atenção do diretor alemão.
“Just a perfect day”
O primeiro verso de Perfect Day (1972), canção de Lou Reed que faz parte da trilha sonora do longa, resume a abordagem narrativa sobre a rotina de Hirayama: apenas um dia perfeito. Longe do caótico e saturado plano das novas tecnologias, o protagonista aproveita cada instante que vive com música de fita cassete, fotografia, literatura e seu trabalho nos banheiros públicos.
À medida que a trama se aprofunda, choques entre gerações e estilos de vida levam o público a se questionar sobre o que faz para um dia – ou uma vida – ser marcante. O cenário escolhido para essa história não podia ser melhor. O Japão é marcado por contrastes na arquitetura, danças, tradições e tecnologias. Em meio a uma cidade tão agitada, Hirayama conseguiu se manter desconectado.
“O mundo é feito de vários mundos. Alguns são conectados, e outros não.”
Hirayama, protagonista do filme, para sua sobrinha
O maior destaque do filme é a atuação de Koji Yakusho, interpretando Hirayama. Nos primeiros 30 minutos, praticamente não ouvimos sua voz, mas muitos sentimentos e informações são transmitidos. A percepção gentil da produção, associada com a sutileza do que vai além do verbal, comunicam uma carga subjetiva e humana única do cotidiano.
As repetições do filme conferem um ritmo lento entre uma noite de sono do protagonista e outra. Mesmo assim, o drama consegue se aprofundar no passado de Hirayama sem uma linearidade explícita. A qualidade técnica e expressividade não-verbal dos atores permite com que temas atuais, como a aceleração da vida, a dignidade do trabalho, a desigualdade social e as relações familiares sejam interligados. Em uma visão geral, é uma produção que nos desconecta por duas horas e nos faz pensar sobre o mundo conectado.
Confira o trailer:
*Imagem de capa: Divulgação/O2 Play Filmes