Sabia que um dos maiores polos de produção cinematográfica no Brasil fica em Pernambuco? Ao longo das últimas duas décadas, o estado vem construindo uma estrutura consistente em que o fazer cinema — independente e criativo — tornou-se possível.
Ainda que o audiovisual no país passe por um período de crises e paralisia do setor no principal órgão de fomento, Pernambuco talvez possa ainda respirar em função do amparo do governo local. E seu cinema segue nadando contra a corrente.
Fora da rota do sudeste, produções de realizadores pernambucanos têm sido reconhecidas nacional e internacionalmente. Festivais como Cannes, Berlim, Veneza, Sundance, Brasília e Gramado têm abraçado o olhar descentralizado de filmes que mostram um Brasil além do Rio ou São Paulo. E a pluralidade de temáticas, estilos, gêneros e realizadores é enorme.
Desde a ficção científica, com misto de aventura e suspense histórico no aclamado Bacurau (2019), dirigido por Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, a documentários como Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar (2018), de Marcelo Gomes, sobre a vida no agreste, reveladora de relações trabalhistas em um país tão desigual.
Um misto de diferentes gerações, com realizadores talentosos, como Cláudio Assis, Adelina Pontual, Hilton Lacerda, Marília Pinheiro, Marcelo Pedroso, Gabriel Mascaro e tantos outros, têm inscrito novos olhares sobre o país.
“Milagres não se explicam”
Se “milagres não se explicam”, como diz o diretor pernambucano Marcelo Gomes, os conglomerados de políticas públicas de incentivo ao audiovisual e a tradição cultural do estado podem sinalizar alguns contextos que levaram Pernambuco a esse protagonismo. A começar pelo fato de essa região, ao longo de toda a sua história, ter construído uma forte tradição cultural artística e recebido as mais diversas influências, nacionais e internacionais, pelas conformações históricas da região.
O caldeirão cultural do estado sempre foi muito denso e a própria tradição cinematográfica ganha destaque já na década de 1920 com o ciclo do cinema mudo, chamado Ciclo de Recife, quando cerca de 13 longas foram produzidos.
A década de 1970 também se destaca pela produção de filmes em Super-8mm (formato cinematográfico lançado nos anos 1960) e havia também uma produção considerável de curtas-metragens. Mas esses foram ciclos que tiveram início e fim, e não marcaram uma produção consistente no estado.
Longas-metragens não eram tão comuns. Por quase vinte anos, sua produção ficou estagnada e a retomada se deu só em 1996, com o lançamento de Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas. Essa obra, historicamente situada em um período de retorno de produções nacionais, marca uma descentralização da produção cinematográfica no país e dá fôlego ao cinema contemporâneo de Pernambuco.
Aquele era um momento de digitalização das câmeras, o que abria caminhos de possibilidades para o cinema independente. Também despontava naquela época um movimento cultural forte em Pernambuco, o Manguebeat — encabeçado pela banda Nação Zumbi, na voz de Chico Science — importante para a afirmação das possibilidades de criação no estado.
“Existiam várias pessoas, como o Cláudio Assis, eu, Adelina Pontual, Hilton Lacerda, querendo fazer cinema, e todos nós trabalhamos no Baile Perfumado, em uma função ou outra. O Baile foi assim: o primeiro filme longa-metragem de todos”, conta o diretor Marcelo Gomes em entrevista ao Cinéfilos.
A produção coletiva era uma característica do cinema feito em Pernambuco naquela época, o que a pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Amanda Mansur, nomeia de “brodagem” (junção das palavras “brother” e “camaradagem”), já que muitos dos realizadores eram amigos e participavam juntos das produções.
“A gente sempre estava unido porque era a única forma de vencer. Era o mundo inteiro contra nós”, relembra Marcelo, sobre a década de 1990, tempos em que fazer cinema em Pernambuco, fora do eixo Rio-SP, era quase impossível.
Essa era a primeira geração de cineastas pernambucanos que viria marcada pela cultura do cineclubismo, fugindo dos filmes mainstream e com muita vontade de fazer cinema. Mesmo em um contexto de políticas públicas incipientes e ainda em fase embrionária.
“Nossa preocupação era se a gente seria um novo ciclo que estava surgindo, mas que acabaria. O bacana foi isso: pelo contrário, essa produção cinematográfica só foi aumentando e surgiram novas e outras gerações. Muita gente jovem fazendo cinema”, comenta o diretor.
Depois de Baile Perfumado (1997), vários longas começaram a ser produzidos, a exemplo de Amarelo Manga (2003) e Baixio das Bestas (2007), de Cláudio Assis, Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes e Deserto Feliz (2008), de Paulo Caldas. Em 2010, vários filmes estavam, inclusive, sendo produzidos ao mesmo tempo no estado, fato inédito desde o Ciclo de Recife de 1920, com destaque para O Som ao Redor (2013), de Kleber Mendonça Filho. Era uma efervescência exponencial depois de um período de produções limitadas.
A entrada das produções audiovisuais de Pernambuco nos circuitos internacionais aconteceu logo em 2000, com O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas, de Paulo Caldas e Marcelo Luna, exibido na mostra Novos Territórios do Festival de Veneza. Desde então elas não pararam de circular mundo afora.
Cinema fomentado por políticas públicas
O período de retomada do cinema pernambucano aconteceu, não por acaso, no momento histórico de institucionalização do audiovisual no Brasil. A Agência Nacional do Cinema (Ancine) foi criada em 2001 e havia esforços de melhoramento dos editais nacionais, para que eles atingissem de forma mais equitativa as produções regionais e pudessem estruturar os mercados locais.
Essas mudanças foram sentidas também em outros estados, além de Pernambuco. Mas esta região acabou se destacando pela construção de políticas de incentivo ao audiovisual muito consistentes, importantes para a continuidade das produções independentes. O exemplo mais claro é o edital do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura, o Funcultura.
Ele surge em 2002, mas ganha em 2007 uma linha específica para o audiovisual, tornando-se o primeiro edital estadual voltado para o setor. Em 2013, foi estabelecido um montante mínimo anual para o fundo, no valor de R$33,5 milhões, divididos em R$11,5 milhões para o setor audiovisual e R$22 milhões para as demais áreas.
O diretor Marcelo Gomes conta que Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), cogitado para representar o Brasil no Oscar de melhor filme estrangeiro em 2007, usou deste incentivo, ainda em 2003, para ser finalizado. “É um dos primeiros editais que existiam a nível estadual no Brasil, por pressão da classe cinematográfica em Pernambuco”, destaca.
A estruturação da política cultural no estado começa a ser utilizada pelas produtoras pernambucanas tanto a nível municipal quanto estadual. Em 2009, é criado o curso de Audiovisual da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), nesse contexto de desenvolvimento de uma cadeia produtiva que gerasse trabalho e renda para o estado.
Como explica Mannuela Costa, produtora e professora do curso de Cinema da UFPE e integrante do Conselho Consultivo do Audiovisual do estado, com a necessidade de institucionalização, as produtoras passam a se organizar melhor para concorrer ao edital, o que aumentava a circulação das produções. Segundo ela, esse edital específico para o audiovisual de 2007 é até incipiente quando comparado à sua versão atual, mas foi importante para dar fôlego à produção naquele momento.
Característica marcante desta política foi o seu processo de elaboração. A partir da pressão da classe artística cinematográfica e também de uma certa “tendência dos governos pernambucanos a darem incentivo à cultura”, como conta a professora, o edital foi construído a partir de um diálogo com os realizadores e as entidades representativas sobre quais seriam os melhores critérios para julgar o audiovisual, setor que não se sustenta naturalmente.
Além disso, em 2014, Pernambuco foi o primeiro estado do Brasil a sancionar a Lei do Audiovisual, de 15.307/14. Uma política imune às trocas de gestão que disciplina a promoção, o fomento (via Funcultura) e o incentivo ao audiovisual e cria o Conselho Consultivo do Audiovisual de Pernambuco. Este último, composto por várias entidades representativas do setor, tem o objetivo de garantir pluralidade no entendimento das pautas, ainda que não de forma deliberativa.
Para Mannuela Costa, essa lei não foi necessariamente o auge da trajetória do cinema feito em Pernambuco porque, ao mesmo tempo, “garantiu e estagnou” a produção: “Como é lei, muitas vezes o governo se atém ao mínimo que ele pode investir”. Ela acredita que talvez o ápice tenha sido quando houve, em 2014, a implementação de arranjos regionais associados ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), incentivo de âmbito nacional criado em 2008. Isso possibilitou a realização de produções que tinham maior capacidade de empregabilidade e de criação artística.
Em 2015, primeiro ano desse alinhamento com o FSA, o investimento na produção audiovisual de Pernambuco sofreu um incremento gigantesco, passando de R$11,5 milhões para R$20 milhões. Os repasses deste fundo, advindos da Ancine e fundamental para a complementaridade dos recursos para as produções, têm sofrido atrasos em 2018 e 2019, o que prejudica o avanço de projetos e fragiliza a cadeia. “Se não fosse o estado [de Pernambuco], a gente não teria nem perspectiva, a pouca perspectiva que temos hoje”, conta Mannuela.
“Aprendemos a fazer de uma forma possível”
O “novo cinema pernambucano”, que tem em comum a origem geográfica de seus realizadores, talvez seja tão diversificado que dispense essa classificação. Esteticamente, são muitas formas diferentes de fazer cinema. Cada ser cineasta parte de inquietações diferentes para contar suas histórias, que vão desde cinemas intimistas, de aventura, ficção, até documentários.
O ponto de convergência talvez seja esse: fazer bons filmes a partir dos recursos, equipe e cenários disponíveis naquela realidade e que ainda assim dão retorno institucional para o estado e país. A grande maioria das produções de longas, por exemplo, são do tipo Baixo Orçamento, com valor máximo de R$1,3 milhões.
Mannuela Costa compara o cinema produzido no estado com o trabalho do mestre de maracatu, no interior. Um lavrador que produz pelos seus meios, a partir da interação local e de um senso de comunidade: “Aprendemos a fazer desta forma”.
“Também temos [esse senso de comunidade] aqui na capital. Conseguimos entender que o interior também produz cinema. Então existe esta troca. Inclusive, as entidades representativas, muitas vezes sediadas na região metropolitana, na capital, conseguem entender que é preciso descentralizar os recursos e a formação”, diz.
Para o diretor Marcelo Gomes, o cinema que floresce em Pernambuco é fruto da resistência: “Para nós é muito difícil fazer. Tão difícil que foram só as pessoas que realmente queriam fazer cinema — como uma necessidade urgente, primordial, porque tinham algo a dizer — que continuaram nessa luta. Outros abandonam. ´Por isso nosso cinema ficou com tanta garra. Com tanto desejo de existir. E sempre resistindo, construindo nossa guerrilha cinematográfica”.
O diretor, que recentemente finalizou as gravações de “Paloma”, seu próximo longa a ser lançado em 2021, defende não fazer um “cinema pernambucano”, rótulo que para ele não existe: “Eu faço cinema. E cinema. Dentro dele coloco meu sotaque, minha origem e tradição cultural, a cor e a luz do meu lugar. Acho que sou um pernambucano fazendo cinema. Foi fundamental para mim afirmar e reafirmar isso”.