A pandemia da Covid-19 exigiu que se estabelecesse o ensino à distância, o que trouxe muitas dificuldades ao ensino e à aprendizagem, limitados às telas e ao ambiente virtual. A educação física, naturalmente, sofre com essas limitações: as atividades, antes praticadas coletivamente, tiveram de ser adaptadas. E, para além das escolas, as práticas esportivas e o esporte, no geral também têm sido limitadas pela necessidade do isolamento social. O impacto que isso pode trazer para a saúde física e mental das crianças e dos jovens nos faz pensar na importância da educação física e da própria prática esportiva.
No que consiste o esporte?
O esporte é um fenômeno cultural que se expressa em diferentes dimensões, desde a prática esportiva, que pode ocorrer com diferentes finalidades e em diversos contextos, à indústria esportiva, por exemplo. Paula Korsakas, doutoranda no Laboratório de Estudos e Pesquisa em Pedagogia do Esporte na Unicamp, explica que o esporte, como direito social e bem cultural, tem natureza educacional: “A prática esportiva sempre será educativa por promover o acesso, a apropriação e preservação da cultura esportiva de um povo. E é a partir desse caráter educativo – pensando a educação como transmissão de hábitos, costumes e práticas de um grupo social –, que a prática esportiva promove o desenvolvimento humano”.
Korsakas destaca que o esporte contribui para desenvolvimento de crianças, jovens ou adultos enquanto experiência que possibilita o desenvolvimento da consciência e linguagem corporal. Além disso, a pesquisadora afirma que “uma experiência esportiva positiva, saudável do ponto de vista físico e psicológico, afeta positivamente a autoestima, a autoconfiança e a socialização. Assim, contribui para uma relação positiva com o próprio corpo e favorece a adoção de um estilo de vida ativo e saudável”.
O esporte é direito assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sancionado em 1990, que reforça a importância da cooperação entre a educação e áreas como a saúde, a cultura, o lazer e o esporte – que estão relacionados também ao próprio direito à liberdade. Segundo o ECA, as crianças e adolescentes devem ser protegidos e assistidos pelo Estado, pela família e pela sociedade, tendo seus direitos básicos garantidos.
Esporte, educação física e a BNCC
A importância de práticas esportivas para a educação e o desenvolvimento de crianças e jovens também pode ser observada a partir da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A BNCC é referência obrigatória para a elaboração dos currículos escolares e propostas pedagógicas para os ensinos infantil, fundamental e médio no Brasil, incluindo a educação física entre as disciplinas obrigatórias de ensino.
Para a BNCC, a educação física é um componente curricular da área das Linguagens, cuja finalidade é “possibilitar aos estudantes participar de práticas de linguagem diversificadas, que lhes permitam ampliar suas capacidades expressivas em manifestações artísticas, corporais e linguísticas”. O documento afirma que é por meio das diferentes práticas de linguagem que as pessoas se constituem como sujeitos sociais, a partir de interações (consigo mesmas e com os outros) que envolvem conhecimentos, atitudes e valores culturais, morais e éticos.
A educação física, na BNCC, “tematiza as práticas corporais em suas diversas formas de codificação e significação social, entendidas como manifestações das possibilidades expressivas dos sujeitos, produzidas por diversos grupos sociais no decorrer da história”. Essa disciplina permite o acesso de crianças e jovens a um universo que compreende saberes corporais, experiências estéticas, emocionais, lúdicas e agonistas, que não se restringem à racionalidade típica dos saberes científicos, comumente abordados em outras disciplinas escolares. A BNCC indica três elementos fundamentais comuns às práticas corporais: o movimento corporal como elemento essencial; a organização interna, pautada por uma lógica específica; e o produto cultural vinculado com o lazer e a saúde.
O esporte e a educação no cenário brasileiro
Apesar da importância que as práticas esportivas têm diante da educação – importância confirmada por referências como o ECA e a BNCC –, a qualidade do ensino-aprendizagem na disciplina de educação física pode ser comprometida pelos altos índices de desigualdade social no país. De acordo com o Censo Escolar de 2019, apenas 31,4% das escolas municipais brasileiras de ensino fundamental apresentavam quadra de esportes (coberta ou descoberta), contra quase 60% das escolas particulares. Analisando o ensino médio, este tipo de recurso é mais presente: há quadras em 72,9% das escolas municipais e em 83,7% das escolas particulares. A presença e qualidade de infraestrutura determinam as possibilidades de atividades e práticas esportivas a serem realizadas na educação física, no contexto do ensino presencial, e, portanto, é importante que Estado e sociedade estejam comprometidos com essa questão, já que está relacionada com a própria garantia dos direitos à educação e ao esporte.
Diante desse tipo de deficiência, surgem ações comunitárias e projetos esportivos que procuram promover o acesso à prática esportiva como um direito. Para Korsakas, estes projetos são importantes para reforçar a ideia de que toda criança e adolescente, independentemente da sua condição socioeconômica, tem direito de praticar esporte em condições dignas. Entretanto, a pesquisadora afirma que é necessário reconhecer que estes projetos têm alcance limitado: “Para garantir o acesso ao direito ao esporte, é necessária a implantação de políticas públicas que considerem as diferentes barreiras enfrentadas pelos diversos públicos” – ou seja, estas devem ser formuladas levando em consideração as desigualdades sociais, raciais e de gênero, além das pessoas com deficiência (PCD).
Por enquanto, o direito ao esporte não está plenamente efetivado no Brasil – talvez, isto seja reflexo de uma desvalorização do esporte nacional, que podemos enxergar prática e simbolicamente na recente extinção do Ministério do Esporte, como também no depoimento de Joanna Maranhão para o Arquibancada. Korsakas destaca que, infelizmente, “o esporte ainda é um privilégio, na medida em que tem sido transformado em produto no mundo contemporâneo capitalista. Praticar esporte custa dinheiro e está restrito às classes mais abastadas, e a maioria das crianças e adolescentes brasileiros têm sido privados desse direito pela falta de políticas públicas”.