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Observatório | Giovanni Quintella Bezerra: o caso do anestesista que estuprou uma parturiente

Denúncia de estupro durante parto escancara a vulnerabilidade de gestantes no atendimento médico e a importância da enfermagem dentro dos hospitais

Na madrugada do último dia 11, segunda-feira, Giovanni Quintella Bezerra, anestesista de 32 anos, foi preso em flagrante após ter sido filmado estuprando uma mulher durante sua cesariana pela equipe de enfermagem do Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.

Médico formado pelo Centro Universitário de Volta Redonda (UniFOA), atuava há 4 anos na área. Além de anestesista, Giovanni Bezerra também consta como médico mastologista e ginecologista/ obstetra. Desde 2018 é sócio com seu pai, também médico, de uma clínica no bairro de Vila Isabel, na zona norte do Rio de Janeiro.

Giovanni Quintella Bezerra, flagrado em estupro no parto
Giovanni Quintella Bezerra. [Imagem: reprodução/ Instagram]

Além de prestar serviços em outros dez locais, o anestesista trabalhava há cerca de dois meses no Hospital da Mulher Heloneida Studart e há um mês começaram as desconfianças sobre seu comportamento. A equipe de enfermagem notava que existia uma movimentação estranha de Giovanni durante as cirurgias e, no domingo (10), decidiram gravá-lo para tirar as dúvidas.

Usando um celular escondido em um dos armários presentes na sala cirúrgica, a equipe conseguiu flagrar o médico anestesista colocando o pênis na boca de uma mulher grávida enquanto os obstetras terminavam seu parto. Depois disso, o anestesista usa a mesma gaze para limpar a mulher e a si mesmo. O vídeo dura cerca de uma hora e meia. O estupro começou 50 segundos após o marido sair da sala de cirurgia com o recém-nascido, a pedido do anestesista, e durou cerca de nove minutos. A vítima foi anestesiada sete vezes.

No dia 11, Bárbara Lomba, titular da Delegacia de Atendimento à Mulher de São João de Meriti, decretou a prisão em flagrante do anestesista. Dois dias depois, a juíza Rachel Assad da Cunha, da 1º Vara Criminal da Regional de Madureira, Estado do Rio de Janeiro, transformou o pedido em prisão preventiva.

Levado inicialmente para o presídio de Benfica, Giovanni Quintella Bezerra foi transferido para o presídio Pedrolino Werling de Oliveira, mais conhecido como Bangú 8, no Complexo de Gericinó, na zona oeste do Rio. Por reclamações de outros presidiários, ele está isolado.

Desde terça-feira (12), ele está impedido de exercer a medicina no país, após decisão do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj). Em nota, o Cremerj afirmou que “a medida [suspensão provisória] é um recurso para proteger a população e garantir a boa prática médica”.

Foi aberto, também, um processo ético-profissional que decidirá se o registro do anestesista será cassado definitivamente ou não. “Firmamos um compromisso com a sociedade de celeridade no que fosse possível e essa suspensão provisória é uma resposta. A situação é estarrecedora. Em mais de 40 anos de profissão, não vi nada parecido. E o nosso comprometimento não acaba aqui. Temos outras etapas pela frente e também vamos agir com a celeridade que o caso exige”, afirma, em nota, o então presidente do Cremerj, Clovis Bersot Munhoz.

Clovis Bersot Munhoz
Clovis Bersot Munhoz. [Imagem: reprodução/ Cremerj]

Nesta sexta-feira (22), Munhoz foi indiciado pela Polícia Civil após uma técnica de enfermagem denunciá-lo por proferir palavras de cunho sexual. O presidente do Conselho decidiu se afastar do cargo que assumiu em fevereiro deste ano.

 

Modus Operandi

O vídeo e a série de 19 depoimentos coletados, incluindo o de Giovanni, revelaram que o anestesista seguia um modus operandi para os estupros: anestesiava as pacientes – o que é feito apenas em casos específicos no processo do parto –; pedia para os maridos ou acompanhantes saírem da sala e levantava o campo, barreira de tecido normalmente usada em cirurgias, de forma a cobrir o rosto da paciente e a parte inferior de seu corpo.

Essa separação é habitual e utilizada nos procedimentos a fim de separar o anestesista, que fica encarregado de coletar dados durante a cirurgia, dos médicos. Porém, enfermeiras da equipe responsável pela denúncia relataram que o criminoso utilizava dois campos, o que impossibilitava a visão de outros na sala do que ocorria com a paciente.

Não se trata de um caso isolado: outras mulheres suspeitam terem sofrido estupro no parto e relatam voltar das cirurgias com rosto e pescoço sujos, além de terem recebido anestesia em excesso. Outras duas  vítimas também atendidas por Giovanni relataram que seus  acompanhantes não puderam acompanhá-las na sala de parto por ordem do anestesista. Uma delas, Thamires Souza Reis da Silva, 23, saiu do parto com cascas brancas em seu rosto, percebidas pela família. Outra, que não quis se identificar, diz que o próprio estuprador introduziu a sonda para coleta de urina, procedimento não contemplado em sua função.

 

Violência Obstétrica

O crime configura também violência obstétrica, já que desrespeita leis de proteção à gestante e envolve ações sem o consentimento ou conhecimento da vítima. Para o ginecologista e obstetra Luiz Fernando Bellintani, “tem paciente que deseja passar por todas as dores do parto. Às vezes é melhor o médico aplicar a anestesia, mas sempre explicando o que ocorre e como ocorre. Tem que explicar tudo durante o pré-natal”.

Não há lei federal no país que proteja a mulher contra violência obstétrica. Porém, oito estados, mais o Distrito Federal, possuem leis que tratam desse tipo de violência. São eles: Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rondônia e Tocantins.

Segundo pesquisa de 2021 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 56.098 mulheres foram estupradas, incluindo estupro de vulnerável. “A violência obstétrica pode ser evitada sempre”, completa o médico.

 

Problemas com o  Hospital

O Hospital da Mulher Heloneida Studart é especializado em gestantes e bebês de médio e alto risco. O primeiro de toda a rede estadual, tornou-se referência nesse tipo de atendimento. Em 2 de abril, recebeu o certificado “Amigo da Criança”, conferido pelo Ministério da Saúde e o Unicef. Para tal, é necessária qualificação de 100% dos funcionários.

De acordo com o site do hospital, ele “adota a cultura do parto humanizado — conjunto de ações que visam atender as necessidades das gestantes, incluindo desde a presença de um acompanhante de sua confiança durante o parto até aspectos fisiológicos, psicossociais e sociais”. Além disso, conta com o serviço SOS Mulher, que acolhe vítimas de violência. 

A Defensoria Pública do Rio de Janeiro, porém, apontou diversas irregularidades no hospital e pede que a instituição reforce seus protocolos, as políticas de humanização e a capacitação da equipe médica da unidade. Esse relatório será enviado para a Secretaria do Estado de Saúde, que administra o hospital.

Uma das pacientes da madrugada do dia 11, mesma data em que Giovanni foi preso em flagrante por estupro de vulnerável, quer processar o hospital por negligência, já que havia suspeita sobre a conduta do anestesista há algum tempo. Ela foi atendida antes da mulher que aparece no vídeo.

Para Ruth Rodrigues, advogada especialista em violência obstétrica, em entrevista para o Observatório, “o hospital foi negligente nesse sentido. Ele tem que ter os protocolos de segurança dos pacientes e não seguiu esse protocolo. O hospital pode, sim, ser processado, porque ele tem o dever de garantir a segurança do paciente de acordo com a RDC nº36 / 2013, está previsto pela Anvisa.”

 

Estupro de Vulnerável

O caso foi classificado como estupro de vulnerável. Como explica a advogada, “muitas vezes [essa classificação] acontece justamente em momentos em que a vítima está em uma situação de vulnerabilidade, em que ela não consegue oferecer resistência”. Ainda aponta que “o tipo penal de estupro de vulnerável que está no 217-A do código penal estabelece justamente isso: quando a vitima não tem condições de oferecer resistência ou de mostrar que não queria aquele ato.” Com a Lei nº 12.015 de 7 de agosto de 2009, estupro passou a ser considerado todo ato libidinoso, não precisando haver conjunção carnal. A pena de reclusão é de 8 a 15 anos e é considerado crime hediondo, ou seja, inafiançável.

 

Como proceder após estupro

Em caso de estupro, é recomendado ir ao hospital durante um período máximo de 72 horas. “O que se pode fazer, além de todos os cuidados do ponto de vista de investigação criminal, é oferecer com maior antecipação a medicação que possa funcionar como uma pílula do dia seguinte” explica Bellintani. “Nós temos um período limitado e é o máximo que podemos fazer a distância, quando mais rapidamente a medicação for administrada, mais alta a chance do insucesso de uma gravidez”, completa o médico.

O coquetel antirretroviral precisa ser administrado dentro deste período de tempo. A partir da Lei nº 12. 845, de 1º de agosto de 2013, não é necessário provar que o estupro aconteceu para ter atendimento médico profilático. Outra opção é recorrer às delegacias, principalmente as especializadas.

 

O processo do caso

O processo está tramitando em sigilo para resguardar e preservar a imagem da vítima. A Delegacia de Atendimento à Mulher de São João de Meriti investiga seis casos de suspeita de estupro no parto, incluindo aquele registrado em vídeo. Outras 20 mulheres que foram atendidas por Giovanni no Hospital da Mãe de Mesquita, onde também atuava, estão sendo investigadas. Além dessas, suspeita-se que mais de 50 mulheres possam ter sofrido algum tipo de violência nas mãos do anestesista, classificado por Bárbara Lomba como um “criminoso em série”.

As gazes usadas para limpar a vítima, as ampolas de anestésico aplicadas e o celular que foi usado para gravar o vídeo incriminador foram enviados para o Instituto de Criminalística Carlos Éboli.     Por determinação do juiz Luís Gustavo Vasques, da 2º Vara Criminal do Município, a vítima que aparece no vídeo vai passar por acompanhamento psicológico. O Ministério Público do Rio de Janeiro também solicitou uma indenização acima de 10 salários mínimos pelos danos morais causados a ela.

Giovanni Quintella Bezerra, além desse crime, é réu em caso de denúncia de erro médico no Hospital de Irajá.

 

A situação da enfermagem no Brasil

A gravação feita pela equipe de enfermagem do Hospital da Mulher Heloneida Studart de Vilar dos Teles foi fundamental para a denúncia e prisão em flagrante de Bezerra. Nas redes sociais, é comum encontrar comentários chamando as técnicas de enfermagem e enfermeiras de “heroínas”.

O Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro (Coren-RJ), em nota, prestou apoio às profissionais: “O flagrante do crime só foi possível a partir da sensibilidade das profissionais de Enfermagem que desconfiaram da sedação excessiva em duas pacientes de cesáreas anteriores.” O Coren-RJ pediu para que a direção do hospital ofereça amparo jurídico à equipe, durante o julgamento.

Apesar do destaque dado à equipe de enfermagem neste caso, a realidade da categoria dentro dos hospitais está longe do ideal. O Brasil possui atualmente 2.540.715 profissionais, somando auxiliares, técnicos e enfermeiros, sendo 85% mulheres, segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). Rosimeire, técnica de enfermagem há 22 anos em hospitais da rede pública e privada, relatou ao Observatório as situações precárias de trabalho que vivenciou durante a sua carreira.

Atrasos recorrentes no pagamento, sobrecarga de trabalho, número insuficiente de profissionais por pacientes, o desrespeito e a ausência de um piso salarial estão entre as reclamações. Rosimeire comenta que é muito comum os  trabalhadores atuarem em mais de um hospital, para complementar a renda; o Cofen estima que cerca de 13,9% dos profissionais cumprem carga de 61 a 80 horas semanais, enquanto o ideal, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), seria de 30 horas semanais.

“Com a pandemia, a quantidade de pacientes aumentou, mas o quadro de funcionários se manteve. Não pode fechar a porta do pronto-socorro e muitos colegas adoeceram, estão com síndrome de burnout, síndrome do pânico, além dos que faleceram por conta da covid-19”, relatou Rosimeire.

No último dia 14, a Proposta de Emenda Constitucional 11/2022 foi aprovada no congresso nacional e aguarda sanção presidencial. A PEC, que originalmente era um Projeto de Lei, prevê o estabelecimento de um piso salarial para a categoria, que desde os anos 80 luta contra os baixos salários. Caso seja aprovada pelo presidente Bolsonaro, fica determinado os valores de R$ 4.750 para enfermeiros, R$ 3.325 para técnicos e R$ 2.375 para auxiliares e parteiras. “A enfermagem é muito desvalorizada, atualmente cada hospital paga o que quer para o funcionário. O Coren exige, por exemplo, no mínimo profissional de nível técnico para atuar em UTI pediátrica, mas na prática ele recebe como auxiliar”, afirmou Rosimeire em defesa da PEC.

A técnica de enfermagem também comenta sobre o desrespeito e a coerção muito comuns no dia a dia da profissão. “Já trabalhei em um hospital em que o assédio moral era constante, a médica responsável pelo setor desrespeitava o restante da equipe, sempre tomava a decisão final, passava por cima dos outros profissionais.”

Questionada acerca do procedimento comum em casos de erros e abusos médicos, Rosimeire escancara a disparidade de tratamento entre equipe de enfermagem e médicos. “Já presenciei um profissional de enfermagem levar advertência por má conduta, mas há um certo tabu em denunciar médicos, é uma classe muito unida e geralmente se acobertam. É difícil provar os assédios, os abusos, tem que tirar foto, filmar. Às vezes o profissional opta por sair ou é mandado embora, o hospital abafa o caso e não dá abertura para continuidade do processo. A corda sempre arrebenta pro lado mais fraco”, explicou a técnica de enfermagem.

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