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Feridas escondidas pelo gelo: o impacto na saúde mental de atletas de patinação

Como a cobrança e a pressão psicológica podem afetar a carreira de um atleta de patinação artística, ao causar lesões e transtornos emocionais

Com figurinos coloridos e esteticamente agradáveis, saltos e movimentos graciosos, o mundo da patinação artística é uma verdadeira arte. Quem contempla uma apresentação é tocado pela habilidade dos atletas na execução dos movimentos com tanta leveza. Muitos começam neste meio como um hobby, mas, com o passar do tempo, decidem seguir a carreira profissional. 

Esse foi o caso de Maysa Veiga, campeã brasileira de inline sênior, que decidiu fazer a patinação artística com apenas oito anos. Ela conta que começou com a sua irmã mais velha, após fazer uma aula experimental. 

A atleta pratica o esporte há quase onze anos e disse que, no início, levava a patinação como um hobby. Para ela, era apenas mais um esporte dentre outros que fazia, como o balé e a ginástica rítmica, mas quando ganhou maior desenvoltura e habilidade, entrou para o meio competitivo. Com isso, seus treinos passaram a acontecer com mais frequência, duas vezes na semana, em vez de apenas uma. 

Mesmo com maiores responsabilidades, ela ainda via a patinação como uma forma de diversão. No entanto, isso mudou quando entrou na adolescência, pois já estava em uma categoria alta e deveria escolher entre seguir a carreira profissional ou fazer faculdade. 

Essa etapa da adolescência, entre os quinze e dezenove anos, é o auge da carreira de um atleta de patinação artística. Por isso, existem muitos atletas de alta performance com apenas quinze anos. Um dos efeitos disso é a exposição a uma carga psicológica elevada, pois esses atletas são cobrados como se fossem adultos, sem estarem preparados para lidar com esse peso. 

Kamila Valieva, patinadora russa, emociona-se após apresentação nas Olimpíadas de Pequim em meio ao caso de doping. [Imagem: Reprodução/Twitter]

Estar em um nível mais elevado requer maiores responsabilidades e treinos mais rigorosos. Há a pressão familiar, midiática e da própria equipe de treinamento para que o atleta corresponda às expectativas impostas sobre ele. Em relação a isso, Maysa revela um pouco de sua experiência. “A partir do momento que tem investimento, as pessoas já criam uma expectativa, o que  gera uma pressão grande em cima da gente. Meus pais são os maiores investidores da minha carreira. Então, eles acabam querendo ver quais rendimentos o dinheiro deles está dando.”

A pressão e a cobrança por resultados podem resultar em treinamentos abusivos, algo que não é raro no meio esportivo. Em entrevista, a psicóloga Gabriele Waack, que trabalha com atletas, reforça os malefícios do alto peso emocional colocado sobre os patinadores, ao afirmar que “isso pode causar uma ansiedade elevadíssima, um estresse muito grande, às vezes, o atleta pode até perder a vontade de praticar aquele esporte por conta de toda essa pressão que tá sofrendo”.

A pressão e os traumas sofridos por atletas de alta performance 

A ginasta profissional Simone Biles decidiu fazer uma pausa em sua carreira para se dedicar a si e cuidar de sua saúde mental. Após ter tido uma crise psicológica nas Olimpíadas de Tóquio, a atleta aproveitou a pandemia para dar um tempo às competições. O depoimento da ginasta abriu as portas para maiores discussões sobre saúde mental no meio esportivo. Em 2018, Simone também denunciou Larry Nassar, ex-médico da seleção norte-americana de ginástica artística, por cometer abusos físicos e sexuais contra atletas, muitas delas menores de idade, inclusive Simone. O caso foi transformado em um documentário da Netflix, chamado “Atleta A”. 

Simone Biles nos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro. A ginasta ganhou medalha de ouro na disputa por equipes. [Imagem: Secretaria Especial do Esporte/Flickr]

Casos de abusos não são exclusivos à ginástica rítmica. Encorajada pelo documentário, Jessica Shuran Yu, ex-patinadora artística, falou sobre os abusos que sofreu quando treinava na China. Quando não alcançava resultados satisfatórios, seu treinador utilizava-se da violência física e verbal como forma de punição. Além disso, Jessica era obrigada a treinar, mesmo que estivesse com lesões, e sofria ataques psicológicos constantes. O abuso impactou a saúde da patinadora, que se aposentou devido a um distúrbio neurológico. 

Os atletas são muito cobrados e sofrem pressão excessiva porque há muito dinheiro envolvido na carreira de um profissional de elite. Os patrocinadores desejam lucrar em cima do talento de atletas jovens e de alto nível. Maysa concorda que esse incentivo é uma das coisas que pode desencadear em um treinamento abusivo. “Eu vejo que tem muito isso mesmo, a pressão muito grande dos técnicos. Acho que por eles terem um incentivo muito grande nos esportes, eles têm muito patrocinadores e muito apoio do governo. Daí essas pessoas acabam cobrando o resultado. Então, eles ficam tipo: ‘Ah, não dá para se machucar, tá? Se está machucado vai treinar mesmo assim’, o que não é saudável para o atleta.” Ela enfatiza essa ocorrência, principalmente, na patinação do gelo. 

Jessica Shuran Yu revelou que os abusos começaram quando ela tinha onze anos. [Imagem: Reprodução/Twitter]

Relação entre o esporte e distúrbios alimentares

A patinação artística é um esporte que envolve estética e aparência. Muitos atletas acreditam que, além de julgar sua apresentação e técnica, os jurados também avaliam o fator estético, como peso, aparência e figurino. Alguns treinadores reforçam a ideia de que para patinar é necessário ter um corpo magro e cobram a perda de peso. Por essas razões, distúrbios alimentares acabam sendo comuns no esporte. 

A psicóloga Gabriele Waack diz que “se você tem um peso menor, vai ser mais fácil para fazer as coisas dependendo do formato do corpo. A rotação será mais fácil ou mais difícil, então sim tem uma ligação”. Apesar disso, a patinação artística não requer um tipo de corpo específico, mas a busca para alcançar o “corpo ideal” acaba desencadeando transtornos alimentares em muitas patinadoras. 

Um estudo, dirigido por pesquisadores de três faculdades dos Estados Unidos, analisou a ocorrência de transtornos alimentares na patinação artística. Com a participação de 272 atletas, entre 12 e 25 anos, revelou que 13% das participantes apresentaram indícios de distúrbios alimentares. 

Outra pesquisa, publicada no International Journal of Sport Psychology, analisou o desenvolvimento de transtornos alimentares em patinadoras. Dentre as 41 participantes, 92.7% afirmaram que a pressão para perder peso está relacionada à patinação artística. Além disso, todas elas adotaram algum tipo de medida para evitar o ganho de peso a fim de manter o “corpo ideal” para o esporte.

Ao falar sobre a questão da imagem corporal na patinação artística, Maysa Veiga afirma que várias meninas acabam por usar substâncias, como doping, para não acumular líquido e retardar a puberdade, a fim de manter o corpo retinho. A patinadora russa Alina Zagitova admitiu ter adotado comportamentos bulímicos para não ganhar peso antes das competições. Nas Olimpíadas de Inverno de 2018, em PyeongChang, Zagitova, que na época tinha apenas dezesseis anos, relatou que fazia uma rígida restrição de líquido e marcava seu peso constantemente. A realização de tais dietas prejudicam o corpo e deixam o atleta mais suscetível a lesões.

Yulia Lipnitskaya também teve problemas parecidos, que levaram ao fim de sua carreira, com apenas 19 anos. A patinadora passou a ter dificuldades para lidar com as transformações corporais provocadas pela puberdade. Em 2014, nos Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi, Yulia conquistou uma medalha de ouro em nome da Rússia, aos 15 anos, tornando-se a patinadora mais jovem a obter o título sob as regras modernas. 

Antes de encantar o mundo em Sochi, Yulia ganhou o título do Campeonato Europeu de Patinação Artística de 2014. [Imagem: Reprodução/Twitter]

Apesar da vitória, para a atleta era difícil se satisfazer com seus resultados. Movida pelo perfeccionismo e a vontade de controlar as mudanças corporais, Lipnitskaya chegou a fazer dietas que consistiam somente na ingestão de nutrientes em pó. Como consequência, a russa terminou sua carreira precocemente devido à anorexia. Os discursos a favor do corpo fino e magro, que promovem métodos nocivos para perda de peso,  desconsideram que para realização de múltiplos saltos é necessário possuir grande força e resistência,  e isso não será possível se o atleta estiver em má condições alimentares.

O envelhecimento e o fim de carreira 

Aproximar-se da aposentadoria também é algo que pode ser muito difícil psicologicamente para um atleta de patinação artística. Em relação a isso, Gabriele Waack afirma que “a idade acaba pesando em algum momento, então, tem atletas que não sentem tanto, mas tem outros que acham que precisam dar o seu melhor porque estão no fim da carreira. Muitas vezes, as lesões também acontecem nesse momento do atleta se forçar, se forçar… e se lesionar. Gera uma pressão porque a pessoa não vai mais poder competir no nível em que competiu até então. E isso é muito frustrante”.

A profissional de psicologia também comenta sobre as angústias que acompanham esse processo: “Você vai chegando nessa idade próxima da aposentadoria e fica: Ah, eu me dediquei tanto para isso e agora eu preciso parar. O que eu vou fazer da minha vida? É o que muitos atletas devem pensar, principalmente aqueles que estiverem inseridos no esporte como sua atividade principal. Então, é um momento que gera muita ansiedade, muito estresse, muitas dúvidas e muitas inseguranças”.

Nessa mesma linha, Maysa Veiga declara que uma das questões mais difíceis na patinação de rodas é a pressão psicológica causada pelo envelhecimento. “A  carreira de uma pessoa normal de patinação artística, geralmente,  acaba com os 24 anos. Quando a pessoa começa a envelhecer gera uma pressão maior. Ela pensa: não tô melhorando ou tá vindo uma pessoa mais nova que é melhor do que eu. Eu tenho diversas amigas e treinadoras que odeiam o próprio aniversário.”

As polêmicas envolvendo Eteri Tutberidze e seus treinamentos rígidos

Quem é Eteri Tutberidze? Para alguns, a treinadora russa de patinação no gelo é sinônimo de triunfo e liderança, já para outros, a técnica representa um histórico de abusos na modalidade. A russa era o peão por trás da vitória de Yulia Lipnitskaya em Sochi, que trouxe visibilidade para a treinadora. 

Desde então, Eteri é conhecida por formar garotas com carreiras de curta duração, mas capazes de realizar saltos complexos, o que coloca a Rússia em destaque na patinação artística. Alina Zagitova também foi pupila da treinadora, na escola de patinação Sambo 70, que concentra as melhores atletas de patinação artística do mundo.

No entanto, os métodos utilizados por Eteri são controversos e considerados por muitos como abusivos. Apesar disso, ela foi condecorada com a Ordem de Honra, em 2018, por Putin.  As patinadoras da treinadora são conhecidas pelos saltos quádruplos, o movimento mais difícil de ser realizado. Para isso, elas treinam aproximadamente 12 horas por dia e se submetem a restrições alimentares, a fim de evitar o ganho de peso, ficando muito leves. Apesar de se mostrar eficiente, essa tática leva a lesões a longo prazo.

Eteri Tutberidze recebendo a Ordem de Honra em 2018. Dois anos depois, em 2020, a russa recebeu o prêmio de melhor treinadora pela União Internacional de Patinação (ISU). [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

Evgenia Medvedeva, ex-pupila de Eteri, conquistou duas medalhas de prata nas Olimpíadas de Inverno em 2018. Durante seu treinamento, a atleta mantinha dietas rigorosas e era encorajada a retardar a puberdade. A patinadora não pôde mais competir, aos 20 anos, devido a uma lesão crônica na coluna, possivelmente agravada pelos treinamentos rígidos em Moscou. Atualmente, ela já não consegue realizar a maioria dos saltos, pois sua lesão não permite que ela vire a coluna para a esquerda.

Eteri Tutberidze com Alina Zagitova (esquerda) e Evgenia Medvedeva (direita) nos Jogos Olímpicos de PyeongChang. [Imagem: Reprodução/Twitter]

Elizabet Tursynbaeva, medalhista de prata no Campeonato de Patinação Artística nos Quatro Continentes (4CC) em 2019, parou de competir aos dezenove anos por conta de lesões crônicas na coluna, aposentando-se aos 21 anos por questões de saúde. Entrando para a lista de atletas com uma carreira curta, Alena Kanysheva iniciou a patinação artística sob o treinamento de Eteri aos treze anos e teve sua carreira interrompida por uma lesão crônica na coluna, aposentando-se com 16 anos. 

O brilho das garotas de Eteri é rápido e doloroso. Os métodos utilizados pela treinadora fazem com que seja praticamente impossível manter uma carreira até os 20 anos de idade. Apesar de conquistarem inúmeros títulos e medalhas, as atletas se encontram psicologicamente e fisicamente abaladas ao final, com vários problemas de saúde. 

Caso de doping de Kamila Valieva nas Olimpíadas de Inverno em Pequim

Kamila Valieva, patinadora russa de 16 anos, uma das grandes estrelas da modalidade, treinada por Eteri Tutberidze, envolveu-se em um grande escândalo de doping, após testar positivo para trimetazidina, no dia 8 de fevereiro. A russa já havia iniciado a competição nas Olimpíadas de Pequim, inclusive conquistado a medalha de ouro na prova coletiva, ao fazer um salto quádruplo. Ela se tornou a primeira mulher a realizar o movimento nos Jogos Olímpicos.

Um dia após a vitória, a polêmica, quanto a um possível caso de doping, começou a surgir. O Comitê Olímpico Internacional (COI) determinou o adiamento do pódio. Apesar disso, Valieva conseguiu competir na categoria individual devido à análise da Corte Arbitral do Esporte (CAS), que permitiu a participação da patinadora por ela ser menor de idade. 

No entanto, a apresentação de Kamila na prova individual não ocorreu como o esperado. A atleta, que havia batido um recorde, caiu duas vezes na apresentação e acabou em quarto lugar. Ao sair do gelo, foi cobrada por sua treinadora, que questionou o motivo da patinadora ter parado de lutar. As acusações de doping e a pressão da mídia sobre a atleta podem ter sido os motivos para tal desempenho. Alvo de muitas críticas dos Estados Unidos e também na internet, a atleta tem de enfrentar uma grande carga psicológica. 

Kamila Valieva na prova individual durante as Olimpíadas em Pequim. As falhas na performance de Valieva a afastaram da possibilidade de conquistar outra medalha. Anna Shcherbakova, também treinada por Eteri Tutberidze, conquistou a medalha de ouro na prova. [Imagem: Reprodução/Twitter]

Após o episódio, a União Internacional de Patinação (ISU) passou a discutir a possibilidade de aumentar a idade mínima para competir, na categoria sênior, de 15 para 17 anos, a fim de proteger a integridade física e mental dos atletas. Gabriele acredita que essa mudança é necessária, levando em conta que já existe a divisão de categorias entre Júnior e Sênior.

“Como tem os jogos olímpicos juniores, faria mais sentido uma menina de 15 anos estar competindo com outras meninas da mesma idade do que com mulheres mais velhas, que possuem uma experiência maior dentro da patinação”, afirma a psicóloga.

No dia sete de junho, a ISU anunciou que aprovou a mudança de idade para competir, mas a alteração será feita de maneira gradual. A idade mínima subirá para 16 anos na temporada de 2023/24 e depois para 17 na temporada de 2024/25. Dessa forma, nos Jogos Olímpicos de 2026, que ocorrerão na Itália, atletas com menos de 17 anos não poderão mais participar das competições.

A decisão foi aprovada no 58° Congresso Ordinário da ISU, realizado em Phuket, na Tailândia. A maioria dos países votou a favor, acumulando 100 votos em prol da mudança. [Imagem: Reprodução/Twitter/ISU_Figure]

Consequências para a saúde dos atletas

Entre as consequências de treinos exaustivos e inapropriados, está a longa lista de atletas que se aposentaram precocemente devido a lesões e desenvolvimento de distúrbios alimentares. Já conhecemos alguns casos, como de Yulia Lipnitskaya e Evgenia Medvedeva, mas a lista aumenta a cada ano, visto que as patinadoras aposentadas são substituídas por atletas mais novas, que treinam rigorosamente para alcançar resultados inéditos.

Para além da aposentadoria precoce, os abusos no meio esportivo também resultam em consequências graves para o atleta. “Tem um seriado na Netflix, ‘Atleta A’, em que é possível ver o quanto isso traz efeitos negativos, até transtornos de ansiedade e depressão por conta do que aconteceu. Pode gerar vários tipos de coisas”, relata Gabriele.

O documentário expôs os casos de abusos cometidos por Larry Nassar. [Imagem: Divulgação/Netflix]

Além disso, a psicóloga enfatiza a importância do atendimento psicológico para atletas. “Se eles tiverem também um suporte psicológico emocional, que eu sei que muitos atletas ainda não tem, eles vão aprender a lidar melhor com isso do que aqueles que não têm esse suporte”, afirma a doutora.

Para ela, as lesões também afetam muitos patinadores, que podem acabar se machucando antes de uma competição, causando grande frustração. “Se um atleta não estiver bem preparado emocionalmente para isso, ele vai sentir muitos efeitos. Tem até casos de atletas que acabam desistindo do esporte por conta de lesões, porque não veem como continuar.”

Elizabet Tursynbaeva representa a situação de atletas que se aposentam dos esportes por conta de lesões. Após problemas crônicos constantes na coluna, a patinadora parou de competir. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

O debate acerca da saúde mental no meio esportivo está ganhando maior espaço nas mídias e sendo tratado com maior seriedade. A história de Simone Biles abriu as portas para a discussão da saúde mental do atleta, algo que não era muito abordado antes. A discussão da ISU acerca da mudança no limite de idade demonstra a preocupação com o emocional dos patinadores, evidenciando a importância de debater esse assunto para promover uma modalidade mais segura e saudável a todos.

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