Jornalismo Júnior

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O rastro deixado pela violência

Como os altos índices de violência afetam a saúde mental da sociedade brasileira   Por Beatriz Gomes (beatrizgomesf9@gmail.com) Todos os dias, ao ligarmos a televisão, rádio, internet ou qualquer outro meio de comunicação somos expostos a diversas notícias que relatam a ocorrência de homicídios, assassinatos, roubos, furtos e outros diversos crimes na nossa cidade, país …

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Como os altos índices de violência afetam a saúde mental da sociedade brasileira

 

Por Beatriz Gomes (beatrizgomesf9@gmail.com)

Todos os dias, ao ligarmos a televisão, rádio, internet ou qualquer outro meio de comunicação somos expostos a diversas notícias que relatam a ocorrência de homicídios, assassinatos, roubos, furtos e outros diversos crimes na nossa cidade, país ou até mesmo no nosso próprio bairro. A violência urbana acaba por se tornar um dos diversos fatores cotidianos dos mais de 207 milhões de brasileiros. Praticamente todos os cidadãos já conhecem alguém que foi vítima de algum desses tipos de violência. Segundo a ONU, o Brasil possui 19 das 50 cidades mais violentas do mundo.

Ao pensarmos em violência urbana geralmente vem as nossas cabeças aquilo que vemos nos meios de comunicação: assaltos, roubos, furtos, assassinatos, homicídios, entre outros. A verdade é que a violência é um campo que possui diversas variâncias e não há um único fator que a determina. Para Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, a violência pode ser descrita como “Uma forma de ação social. Ela pode ser praticada por uma ou mais pessoas, contra uma ou mais pessoas. Então, não é necessário que você tenha muitas pessoas para você falar em violência. Ela implica num tipo de ação em que um ou umas pessoas utilizando de meios — armas, ameaças, por exemplo — procura impor a sua vontade contra a vontade de terceiros.”

Além desses fatores, o ato violento acaba por agredir valores fundamentais, como o direito à vida, dignidade, patrimônio pessoal, seus valores pessoais como cidadão de uma nacionalidade entre outros. A violência também não pode ser reduzida a um único conceito, mas é necessário analisar de quais formas ela ocorreu, analisando a modalidade de ação, quem são as vítimas e os agressores, quais objetos foram utilizados durante a ação (arma branca, arma de fogo, ameaças), pensar no contexto social, na estrutura normativa vigente na sociedade, observar como as instituições de segurança pública estão lidando com essas questões de violência, apoio às vítimas, punição as ocorrências, sistema penitenciário etc.

Adorno relata que a definição de violência também “depende dos valores preservados e cultivados numa sociedade num momento dado da sua história, ela depende dos meios que são utilizados e ele, em geral, envolve o uso de uma força que desmobiliza ou enfraquece a possibilidade de uma reação dos outros”. Todos esses diversos elementos são fatores importantes para poder se entender um pouco da temática.

Apesar desse fator ser presente diariamente na vida da maioria dos cidadãos, podemos pensar que o que afeta e gera o aumento dos índices de crescimento da violência no Brasil é a forte desigualdade social que temos instaurada em nossa sociedade. Associamos violência diretamente com a desigualdade social. Mas não temos estudos que nos digam que há uma relação direta entre ambos. Sabemos que em sociedades menos igualitárias e polarizadas há menos proteção e leis para a maioria da população que não consegue acessar o conhecimento e por isso acabam por fragilizar essa demanda da sociedade. O que podemos afirmar, segundo Adorno, é que “nós temos mais garantias que em sociedades mais igualitárias, os direitos vão estar melhores distribuídos o que significa que problemas relacionados a carência de direitos deverão ocorrer com menos frequência e menor impacto e gravidade.”

 

Violência e suas vítimas

Nesse contexto de violência urbana, diversas pessoas foram e são vítimas, Jéssica Bernardo foi uma delas. No início de 2016, enquanto tomava banho para ir à faculdade, ouviu um barulho estranho vindo de fora da sua casa, mas como estava no banho não conseguiu identificar com propriedade a origem do ruído. Mesmo assim, ela decidiu colocar a toalha e assim que ia sair do box, um dos assaltantes abriu a porta do banheiro e a levou para um quarto onde sua mãe e irmã já estavam ajoelhadas.

Um dos assaltantes pediu para ela se ajoelhar e pouco depois a levou para um quarto com roupas jogadas para todos os lados. Lá, ela se deparou com seu pai, também ajoelhado. Os assaltantes ordenaram que ela procurasse dinheiro no quarto e levaram seu pai para outro cômodo junto de sua mãe e irmã. Eles pareciam estar bem alterados, a todo momento gritavam com ela e sua família.

Após algum tempo, eles avistaram uma viatura descendo a rua; era a  polícia se aproximando. Os bandidos ficaram desesperados procurando formas de sair daquele local — apesar da tentativa de fuga, eles acabaram sendo presos. Segundo Jéssica, “a gente sabe que você pode ser assaltado em qualquer lugar, mas você nunca imagina que você vai ser assaltado na sua residência. Ser assaltado na sua casa é ter o seu porto seguro quebrado.” Hoje, ela percebe o impacto desse episódio na sua vida. Mudou-se do bairro onde aconteceu o assalto e agora mora em um apartamento. Também passou a dormir com o celular próximo da sua cama, caso precisasse avisar alguém sobre uma movimentação estranha, resumindo, ela deixou de lado diversas tarefas que fazia antes.

Após o ocorrido, ela viu a necessidade de conversar com um profissional, porque não estava mais conseguindo viver normalmente, a vida social começou a ser um problema.  Ela considera que a terapia foi e continua sendo essencial para aprender a lidar com as situações cotidianas, enxergar a partir de outras perspectivas. A terapia também a ajudou em sua relação com seu trabalho, já que Jéssica é estagiária num noticiário televisivo e sua função consiste, frequentemente, em ligar para delegacias e obter informações acerca da violência na cidade de São Paulo. Jéssica afirma que não adquiriu nenhum distúrbio psicológico após o evento, no entanto, o mesmo não ocorreu com Viviane.

A história de Viviane Amorim, mesmo sendo um caso de violência urbana, se distingue bastante da história de Jéssica. Viviane é professora municipal do estado de São Paulo e trabalha no período da tarde. Mas, no dia do acontecimento, excepcionalmente, ela saiu de casa por volta das 6h20 da manhã, para fazer hora-extra. O percurso duraria cerca de 40 minutos. No dia 10 de fevereiro deste ano, “nunca vou me esquecer”, chegando próximo a rua de acesso a uma avenida, Viviane percebeu que um carro em alta velocidade vinha em sua direção. Como o farol daquele carro estava ligado, ela pensou que eles estavam pedindo caminho para ultrapassá-la. A rua em que estava possuía vegetação ao redor, não tinha asfalto e havia muitos buracos. Com o seu nervosismo, seu carro acabou entrando em um desses buracos e “morreu”.

Nisso, percebeu que um veículo parou ao seu lado e logo viu duas pessoas descendo do carro, apontando armas para a sua cabeça, gritando e falando diversas palavras de baixo-calão para ela. Um dos indivíduos tentou abrir a porta do lado que ela estava e gritou “desce ou morre”; o outro entrou pela porta do passageiro e a agrediu com a arma, deu socos em seu rosto. Ela desceu do carro e os bandidos continuaram a agredi-la.

Após as agressões, eles decidiram entrar no carro e ao tentar ligar o veículo não conseguiram, pois o carro possuía “segredo” — espécie de ferramenta anti-furto. Os assaltantes ficaram extremamente irritados e a todo momento falavam “vamos apagar essa puta”. Em determinado momento, eles se afastaram do carro,  e Viviane, em uma atitude desesperada, entrou no veículo e o ligou, acelerando o máximo possível. “Nem imaginei se iam atirar”, disse. Seguiu em alta velocidade pela rodovia, enquanto os bandidos a perseguiam no automóvel que estavam anteriormente. Nesse dia ela foi multada duas vezes, mesmo assim conseguiu chegar até a escola onde trabalhava, “não sei como consegui dirigir”. Na escola, teve que pedir auxílio de um parente para buscá-la, pois estava sem condições de voltar para casa.

O episódio foi tão traumático para ela que ficou muito mal e seus familiares pediram que ela se consultasse com algum profissional, algo que ela nunca havia feito até aquele momento de sua vida. “Buscar um acompanhamento foi extremamente humilhante”, pontua. Na sua primeira consulta, com um médico, ele acabou a afastando do trabalho por 15 dias. Mesmo assim, ela acreditou que logo voltaria a realizar suas tarefas cotidianas normalmente; mas, com o passar do tempo, idas às delegacias, reconhecimento dos ladrões e encontrando outras vítimas, ela percebeu a gravidade da situação, “a ficha caiu”.

A partir daquele momento, ela não queria mais sair de casa, atender o telefone, nem sequer falar com alguém, adquiriu diversos medos como ficar sozinha e em ambientes escuros. Seus familiares perceberam a piora da situação e pediram que ela se consultasse com um psicólogo, que logo a encaminhou para um psiquiatra. Ela conta que o encaminhamento foi algo muito assustador, “nesse momento eu surtei. Me imaginei sendo internada.”

No dia seguinte, Viviane decidiu ir conversar com a psiquiatra que a diagnosticou com agorafobia medo de lugares abertos e situações que tenham aglomeração de pessoas. Ao longo do tratamento foi também diagnosticada com fobia social e síndrome do pânico. Viviane continua fazendo tratamento com o psicólogo, psiquiatra e fazendo o uso de remédios.

Apesar do tratamento, ela considera que a “rua é sinônimo de violência”. Só consegue sair de casa com o uso de medicamentos. Não consegue fazer tarefas que antes do ocorrido eram coisas corriqueiras no seu dia-a-dia, até mesmo o ato de ligar a televisão a faz mal por visualizar cenas parecidas com as que ela já passou. A relação com seu filho também sofreu alterações, ela não consegue frequentar shoppings, parques e lugares com um grande contingente de pessoas devido a agorafobia.

 

Mídias como reforçadores da violência

Adorno considera que as mídias podem produzir e reproduzir o medo nos cidadãos, mas também discorre que elas podem, a partir desse contexto violento que vivenciamos, propor um debate entre especialistas, meios de comunicação e sociedade para entender como tudo isso desenvolve e afeta uma população. “A mídia é um campo de disputas que pode ter tanto esse efeito de produzir essa sensação de medo e perigo, como pode produzir uma sensação de que os fatos estão acontecendo e alguém pelo menos falando”, afirma. Para ele, a mídia pode ser um meio que, devido a ampla divulgação de notícias sobre a violência, pode gerar medo em uma população, mas também pode ser um modo de as pessoas terem acesso à essas informações e tentar entender, com a ajuda de especialistas, o porquê desse cenário de violências estar ocorrendo e, na maioria das vezes, possuir altos índices.

Marcelo Neumann, docente de psicologia da Universidade Mackenzie, considera que a “Ideologia do medo a partir da mídia, são reforçadores”. A mídia, segundo ele, pode ajudar a reforçar a sensação de medo em uma sociedade, além de trazer à tona lembranças na cabeça daqueles que já passaram por uma situação traumática. Neumann nos relata que a visualização de determinadas situações mostradas nos meios midiáticos por pessoas neurotípicas já é algo que afeta bastante: “Imagine uma pessoa fragilizada pelo trauma da violência que ela sofreu. Então para ela é muito difícil, muito complicado. Não existe outro remédio se você não tratar disso.”

Para o especialista, é de extrema importância que as vítimas de qualquer violência procurem um especialista para conversar sobre a ocasião. Não podemos dizer que toda violência urbana irá causar distúrbios psicológicos porque isso depende de vários fatores como, por exemplo, situações traumáticas ocorridas anteriormente com a vítima mas que não tinha causado um “gatilho” — momento que a pessoa começa a se dar conta de tudo que passou e se sente mal ao lembrar da ocasião. Por isso a necessidade de se falar com uma autoridade no assunto, que poderá entender profundamente a situação de cada pessoa.

Marcelo ainda relata que “você vai encontrar pessoas que ficam não conseguem sair dessa situação, bem como pessoas que conseguem”, reforçando a ideia que poder falar com um especialista é a melhor opção nessas situações.

 

 

*Imagem: Júlia Vieira/Comunicação Visual – Jornalismo Júnior

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