Por Caio Nascimento (caiovn.usp@gmail.com)
Joaquina C.* distraía-se com um livro nas mãos. Com 16 anos, ela resguarda marcas de seu passado: vestígios de corte nos pulsos e sinais de piercings no rosto desenham a adolescência rebelde da garota. “Eu andava com gente errada. Quando fiz treze anos comecei a me afastar da minha família e cortava meu corpo para descontar em mim mesma uma raiva sem sentido. Me auto sabotava bastante”, lembra ela. Depois de um ano e três meses na Fundação Casa Chiquinha Gonzaga, a jovem se arrepende do crime que cometeu. Hoje, ela convive com 14 garotas no Programa de Atendimento Materno Infantil (PAMI) — único espaço físico do país que abriga mães e gestantes adolescentes que infligiram a lei. Joaquina C. diz que o tempo na unidade a ensinou a conviver com regras e a tolerar mais o próximo. Quando sair da Fundação, pretende consertar o erro. “Quero arrumar um emprego, cuidar do meu filho e prestar a Etec.” A menina sonha em trabalhar com idiomas. Amante da cultura oriental, ela tem facilidade em aprender japonês e deseja passar isso para o seu filho, de apenas um ano.
Apesar da esperança que carrega consigo, Joaquina C. se incomoda com certos problemas da unidade. Segundo ela, por conta dos cortes de gastos na Fundação Casa, os berços das crianças estão velhos e perigosos. “Não coloco meu filho para dormir aqui, tenho medo”, conta a adolescente.
Além do PAMI, a unidade Chiquinha Gonzaga é formada por outros dois espaços que acomodam as demais jovens. O branco surrado de algumas paredes, as janelas altas e enxutas, as celas e as portas de segurança nos dormitórios compõem um ambiente de precaução e segurança que coincide com as prisões adultas em algumas instalações.
De acordo com a coordenadora da Pastoral do Menor, Sueli Camargo, as estruturas da maioria das unidades de internação da Fundação Casa ainda não são ideais e mantêm características de presídios. “As salas são pequenas, a ventilação é pouca e a iluminação pior ainda. Ambientes assim não são propícios para a ressocialização”, afirma ela.
As garotas são obrigadas a tratar os funcionários como senhor e senhora e muitas não estão na série escolar que corresponde às suas idades. Joaquina H. é uma dessas adolescentes.
Com dezesseis anos, ela está na 8ª série da escola e foi detida pela Polícia Militar por vender drogas. “Eu vendia maconha e cocaína para ajudar minha família, aí parei de ir para a escola e com o tempo comecei a comprar pino para mim cheirar. Fumava, cheirava e vendia pó o dia todo”, lembra. A jovem, de sorriso fácil e sotaque arrastado, está na fundação há dez meses e diz que se sentia importante vendendo droga. “Ia gente de todo tipo me procurar na quebrada. Os moleque da escola, uns boy que vinham usar o bagulho longe de casa… e eu era a referência desses nóia, mas não quero mais isso para minha vida não. Vou terminar meus estudos e mostrar para mim mesma que sou capaz de mudar”.
A menina recordou que seus pais brigavam bastante e que ela evitava falar algo em casa com medo de receber punições. “Quando eu ia vender droga, eu pelo menos era importante para alguma coisa. O traficante ia com a minha cara e os moleques me desejavam”, diz Joaquina H. Quando sair da Chiquinha Gonzaga, ela pretende cursar Psicologia ou Estética e seguir uma vida dentro da lei. De acordo com o diretor da unidade, Ezeilton Rodrigues de Santana, essas relações familiares conturbadas recebem auxílio de assistentes sociais da instituição.
A quantidade de meninas detidas por tráfico de drogas chama atenção em São Paulo quando comparado com outros estados do país, conforme mostra o gráfico do Relatório Nacional “Dos espaços e Direitos”, do Conselho Nacional de Justiça em parceria com a Universidade Católica de Pernambuco.
Esse documento nacional aponta também outras situações de envolvimento com o tráfico, como o relato de uma adolescente que cumpre medida socioeducativa na Fundação Casa de Pernambuco:
“Eu tava na escola, aí eu fui num influência de amizade: ‘bora, Dudinha, pra praça, fumar maconha’, aí eu ia; não pensava no meu futuro na minha frente e ia mimbora pá praça, aí ficava fumando maconha; chegava só no outro dia em casa; minha mãe preocupada comigo. Aí nisso eu fuiii na influência e largando o estudo, largando o estudo, aí parei na sétima série, aí fui mimbora ficar cum minhas amizades, pensando que minhas amizades era melhor que os meus estudos, aí quebrei a cara! Aí hoje eu tô pagando por um erro que eu fiz lá fora”. (Relatório “Dos Espaços e Direitos”, página 36)
Outro dado importante é a tensão familiar vivida por essas garotas. De acordo com o relatório, muitas adolescentes relatam violência doméstica dos pais para com as mães, assim como acontecia na família de Joaquina H. “Meu pai e minha mãe não se bicavam. Era pancada atrás de pancada e se eu me metesse eu levava também. Era mais fácil ficar na rua do que ficar vendo aquilo. Foi onde conheci a droga”, conta a menina.
Segundo Ivan Bezerra dos Santos, da Pastoral do Menor, muitas jovens carregam históricos familiares turbulentos, e a Fundação Casa não é preparada para lidar com esse fato. “Cada unidade de internação tem seus técnicos que mediam a relação da família com a adolescente, mas não de uma forma adequada. Não há uma assistência social pós-internação”, aponta. De acordo com a Pastoral, essa deficiência dificulta a ressocialização da jovem. “A adolescente sai da Fundação e volta a viver em meio a mesma realidade que vivia, sem amparo nenhum”, diz Ivan.
Em muitos casos, as adolescentes apreendidas não são os primeiros membros da família detidos por infringir a lei, como aponta o relatório pelo diálogo de um pesquisador do trabalho com uma adolescente pernambucana em medida socioeducativa:
– Eu tava fazendo curso de gesso. Aí mainha foi e mandou eu levar o almoço do meu irmão. Aí eu fui levar. Aí meu irmão foi preso no dia. Aí eu comecei a esculhambar os policial e eu tava de rolo com o amigo do meu pai. Eu conheci ele quando eu tava indo visitar o meu pai no presídio
– ah, seu pai estava preso?
– meu pai tá preso ainda
– […] e teu rolo vem te visitar?
– ele tá preso também
– tua filhinha, tem quantos anos?
– tem dois anos e dois meses
– ela está com o pai ou com alguém da sua família?
– o pai dela tá preso no Aníbal Bruno [Presídio pernambucano eleito como o pior do país].
Violência e desamparo
A jovem Joaquina K., de 16 anos, também vivia em um ambiente familiar turbulento. A garota assassinou um parente a facadas e hoje cumpre medida socioeducativa na Chiquinha Gonzaga há mais de um ano. “Quero sair daqui, arrumar um emprego, terminar o ensino médio e voltar a ouvir os conselhos da minha mãe. Quando errei, esqueci que ela era minha melhor amiga”, diz a adolescente.
De acordo com Ezeilton Rodrigues, homicídios não são tolerados pelas meninas, sobretudo quando se tratam de familiares. O diretor da unidade explica isso se lembrando da indignação delas quando uma das adolescentes desenhou um pênis na parede por onde os parentes passam para visitá-las. “Elas prezam muito pela família e casos assim geram conflitos que podem levar à violência entre elas”, contou. “Lidamos com meninas infratoras; meninas que já cometeram homicídios. Por isso temos que ter um controle muito grande para resguardar a integridade de cada uma”.
Apesar de prezarem pelo respeito à família, Ezeilton disse que apenas 20 das 144 adolescentes da Fundação Casa Chiquinha Gonzaga recebem visita de parentes. “Nas unidades de meninos, a aceitação da família é maior do que nas de meninas”, apontou o diretor.
Esse desamparo se acentua com a falta de compromisso da sociedade para com a adolescente em conflito com a Lei, como aponta Sueli Camargo. Para a coordenadora da Pastoral do Menor, a população rejeita a jovem infratora e não a acolhe. “A sociedade deveria condenar a infração, e não a adolescente. Ao condenar o infrator e marginalizá-lo, você está sentenciando uma pessoa humana”, dispara.
A homoafetividade dentro da fundação
Com uma fala truncada, cabelos curtos, bermuda sobre os joelhos e uma tatuagem com o nome dos pais, Joaquina M., de 15 anos, está internada na Fundação há três meses. Estudante da 7ª série, a menina se dedica aos cursos de circo e informática dentro da unidade. Quando sair da Chiquinha Gonzaga, ela deseja trabalhar e ajudar a mãe. Joaquina M. é homossexual e afirma já ter se relacionado com outras garotas dentro da unidade, mas hoje evita. “Para mim é normal eu ficar com outra mina, mas aqui dentro dizem que devo manter o respeito e que não estamos aqui para isso. Se eu ficar com alguma menina, eu posso ser punida”, explicou ela. A punição a que Joaquina M. se refere diz respeito à avaliação disciplinar composta por servidores da área pedagógica, da saúde e da segurança que orientam as jovens no cumprimento das medidas socioeducativas.
Segundo o diretor da unidade, essa proibição é para evitar possíveis brigas por ciúme e reclamações das famílias das garotas. “Não são todos os pais que aceitam a homoafetividade. Uma moça homossexual do curso de artesanato cortou o cabelo bem curtinho e a mãe ficou brava com a gente. Ela disse que entregou para gente uma menina e está recebendo um menino que gosta garotas”, relatou Ezeilton.
Para o vigilante responsável por um dos espaços, que não se identificou, a Fundação Casa não é lugar para namorar: “Não somos homofóbicos, mas existem maneiras e maneiras. Nós não deixamos que a relação se dê de um modo muito íntimo”.
Em todo o Brasil, o relatório do Conselho Nacional de Justiça aponta que as questões específicas da mulher são tratadas a partir de um pensamento patriarcal:
“Parece que a mesma lógica patriarcal se reproduz no âmbito das adolescentes de sexo feminino, especialmente não se observando questões específicas relativas à sexualidade, (envolvendo educação sexual, políticas preventivas de gravidez e doenças sexualmente transmissíveis, visitas íntimas) às questões de homoafetividade, entre outras questões específicas da mulher”. (Relatório “Dos Espaços e Direitos”, página 10)
Questionada sobre a criação de programas de combate à homofobia, a Fundação Casa alegou que não há projetos de conscientização que abordem essa temática com as adolescentes. Para o diretor do Chiquinha Gonzaga, isso não cabe ao centro de atendimento ao menor. “Não é nossa função tratar disso com os pais, nossa assistência é só à adolescente”, disse.
*Todos os nomes das adolescentes na reportagem são fictícios para preservar as suas identidades.