Por Carolina Ziemer (carolziemer@usp.br) e Heloisa Falaschi (heloisafalaschi@usp.br)
A semana da música, comemorada entre os dias 16 a 22 de Novembro, é um período de valorização e celebração dessa forma de arte. No cinema, o gênero musical se originou a partir do teatro, que antes mesmo da possibilidade de se captar vídeos, já misturava música, dança e atuação nos palcos. Desde os anos 1940, musicais hollywoodianos se tornaram cada vez mais presentes na cultura ocidental.
As comemorações da data terminam no considerado Dia da Música, data estabelecida durante o período da ditadura de Getúlio Vargas. O governo usou a música como ferramenta para centralização do poder brasileiro, buscando generalizar a política e cultura nacional. Apesar da data ter sido oficializada em um contexto conturbado, é possível utilizá-la para valorizar todas vias e formas musicais.
A diversidade de uso da música também pode ser amplamente percebida no cinema. Nos filmes do gênero musical, elas ganham protagonismo e passam a ser um elemento central da narrativa e ambientação. Em entrevista ao Cinéfilos, Duda Larson, compositor, designer de som para audiovisual e professor no Centro Universitário Belas Artes nessas áreas, cita que os formatos de filmes musicais de Hollywood trazem à tona a ideia de escape da realidade.

Esse aspecto auxiliou na construção de um estereótipo que relaciona os filmes musicais como narrativas infantilizadas e que não refletem injustiças sociais. Apesar do imaginário criado, musicais já foram, e continuam sendo, usados como ferramentas políticas.
A música como mensagem
Segundo Duda Larson, “a música é uma ferramenta poderosa para engajar emocionalmente as pessoas, e especialmente grupos de pessoas”. No cinema isso é refletido para evocar diferentes sentimentos e facilitar a imersão dos espectadores na história. Duda também salienta que a música pode ser o que liga pessoas a identificar e ser empático com questões sociais e políticas.
A adaptação musical mais recente da história de Victor Hugo, Os Miseráveis (Les Misérables, 2012), destaca o sentimento de desamparo e a injustiça vividas em uma sociedade marcada pela desigualdade social e pobreza extrema. No filme, a canção I Dreamed A Dream, marca o momento de reflexão e maior sofrimento de Fantine (Anne Hathaway). A performance toca ainda mais o público pelo teor melancólico da canção.
“As músicas devem funcionar enquanto obras autônomas enquanto ao mesmo tempo estão ligadas dramaticamente à narrativa.”
Duda Larson
Além da carga poética e deprimente presente em I Dreamed A Dream, a melodia e harmonia musical comunicam sentimentos e o contexto em que a obra está inserida. A sequência de conjuntos de notas tocadas ao mesmo tempo — conhecido como acorde —, caminho que notas individuais percorrem e velocidade escolhida na composição são essenciais para a ligação entre a música e a cena em que ela se apresenta.
Acordes compõem a harmonia da música e podem aprofundar ainda mais o sentimento evocado com ela. Basicamente, existem acordes maiores e acordes menores, a estrutura das notas que os formam é o que diferencia eles. A diferença entre acordes e menores está em apenas uma nota. Em relação aos acordes menores, acordes maiores possuem uma de suas notas “mais aguda”.
O artigo DÓ, RÉ, MI, FÁ Sons e Sentidos: A Leitura Musical e uma Análise da Relação entre Letra/Música e Acordes Maiores e Menores, aponta a convenção de relacionar acordes maiores com a alegria e acordes menores com a tristeza. Musicais utilizam desse envolvimento musical para criar narrativas dentro em uma canção.
Os autores do estudo apontam que “a leitura musical é uma forma de leitura que não se limita em decifrar de notas, acordes e símbolos musicais; é uma leitura que envolve a compreensão dos elementos que compõem a música, bem como as sensações que são provocadas a partir dos sons ouvidos, que despertam significados”.

No caso de Os Miseráveis a música muitas vezes está presente em diálogos, mas também existem os musicais que inserem suas “cantorias” de forma mais discreta e original. La La Land: Cantando Estações (La La Land, 2019) é um exemplo de musical que intercala desde diálogos falados, até a apresentação de músicas em apresentações e cenas dedicadas especialmente para a trilha instrumental do filme, onde a dança protagoniza os movimentos.

Crítica social, reflexo da política e representatividade
A maioria dos musicais estão inseridos em cenários de tensão sócio-política e, por isso, a música vira ferramenta de denúncia de injustiças e desigualdades. A música é apresentada como fio condutor da narrativa, sendo uma forma de expressão cultural que reflete as crenças, valores, tradições e identidades de um determinado grupo social. Além de demonstrar a emoção em sua forma mais pura, ela comunica ideias políticas de forma impactante e serve como um reflexo da época em que estão os personagens.
Os compositores dessas obras, juntamente com seus roteiristas, são os que ditam a perspectiva da narrativa a ser contada. A partir de um cenário histórico político-social, o autor determina o caminho a seguir de acordo com o enredo que deseja contar. Afinal, são suas vivências e experiências que moldam as criações.
Cabaret (1972)
Essa força discursiva aparece de forma explícita em Cabaret (1972), ambientado na Berlim pré-nazista. O Kit Kat Klub funciona como refúgio, resistência e metáfora, dado que enquanto a sociedade alemã se deteriora diante da ascensão fascista, o cabaré se torna um espaço para questionar normas, explorar identidades de gênero e desafiar o moralismo que prepara o terreno para Hitler.

A música se mistura com a ironia e o humor para satirizar a intolerância do governo autoritário. Em Money (Makes the World Go Round), há uma sátira ao materialismo que, em frente à realidade de dificuldade econômica alemã pós Primeira Guerra Mundial, destaca o contraste entre luxúria e miséria.
Já em Tomorrow Belongs to Me, a canção e a cena perturbadora revelam o jovem branco exibindo sua braçadeira vermelha com a suástica enquanto canta em público e, aos poucos, hipnotiza e convence a maioria do público a fazer o mesmo e o seguir em coro, demonstrando seu apoio ao regime.
Hair (1979)
Sete anos depois, Hair (1979) levaria essa combinação de música e política para outro contexto. Baseado no musical de 1967, o filme mergulha no coração do movimento hippie e nas tensões da Guerra do Vietnã. A jornada do jovem Claude Bukowski, recém-chegado a Nova York para se alistar, colide com um grupo de jovens idealistas que pregam paz, amor livre e recusa ao militarismo.
Em Hair, cada canção é uma forma de enfrentamento. Aquarius evoca a esperança de uma nova era espiritual, enquanto Let the Sunshine In transforma a dor em clamor coletivo pela interrupção da guerra. Ao mesmo tempo, o filme escancara o racismo estrutural e o conservadorismo que atravessavam a sociedade americana. A estética colorida e caótica dos personagens não é só visual: é política, manifesto, e ruptura.

Rent (2005)
Nos anos 2000, Rent – Os Boêmios (Rent, 2005) retoma o gesto político do musical, mas agora em uma Nova York marcada pela epidemia de AIDS e pela exclusão social. Acompanhando jovens artistas que enfrentam pobreza, discriminação, violência e o luto permanente de uma geração, o filme expõe as negligências do Estado diante de corpos marginalizados, sobretudo LGBTQIA+ e periféricos.

As canções do filme não são apenas expressão emocional, mas forma de documentação. Seasons of Love transforma uma estatística devastadora em memória afetiva, La Vie Bohème celebra a existência de quem resiste à invisibilidade, e o refrão No day but today sintetiza a urgência de viver quando o amanhã nunca é garantido. Rent reafirma a ideia de que a arte é, por si só, uma forma de resistência e, quando cantada em coletivo, ela se torna ainda mais poderosa.
Hamilton (2020)
Décadas depois, uma nova virada no gênero chegaou às telonas: Hamilton (2020), criação de Lin-Manuel Miranda, revisita a formação dos Estados Unidos com elenco negro e latino. A escolha estética já é política por si só, mas o musical vai além: usa hip-hop, R&B e rap, gêneros historicamente marginalizados, para reescrever o mito da fundação do país.
Ao apresentar Alexander Hamilton como um imigrante caribenho em ascensão, o filme discute pertencimento, xenofobia e desigualdade sob uma lente contemporânea. Mas é seu questionamento sobre a memória histórica que o torna revolucionário. A mensagem é clara: recontar o passado com outras vozes muda o presente.
Gênero que emociona e conscientiza
Apesar de serem usados para abordar temas políticos, os musicais não nasceram com o objetivo de conscientizar sobre questões dessa natureza. Para o professor Márcio Rodrigo, que dá aulas nas áreas de cinema, audiovisual, comunicação e publicidade na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), a leveza e a ideia de escape da realidade é intrínseca ao cinema musical.
“O musical sempre tem um fio condutor narrativo com a música e, ao mesmo tempo, coloca as pessoas nessa atmosfera de sonho diversão e até de um certo ‘delírio coletivo’.”
Márcio Rodrigo
O professor aponta que o escapismo e a leveza dos musicais estão conectados com o que o gênero se propõe. Para ele, Dançando no Escuro (Dancer in the Dark, 2000) é um exemplo de filme que vai na contramão de convenções musicais e explica que o filme critica a ausência de lógica muito presente no gênero.

Duda Larson também cita Dançando no Escuro como exemplo, mas para salientar a capacidade que musicais alcançam quando tem seu formato renovado. Pontua a importância do gênero não se manter preso a convenções ligadas a Broadway e a produções hollywoodianas dos anos 1940. Ele destaca que “músicas diferentes podem acabar criando formatos de musicais diferentes e interessantes” e conclui ao apontar a importância disso para a diferenciação entre as obras.
“Parece que a maioria dos musicais ficam musicalmente parecidos, mais ou menos como todas as animações da Disney tem o traço parecido. Gosto quando a música é interessante e ela acaba levando a estética do filme para lugares inusitados.”
Duda Larson
A ligação de filmes do gênero musical se mostra propícia quando alinhado com uma cultura popular mais próxima dos dias atuais. Desde o sucesso de bilheteria de La La Land, musicais se tornaram cada vez mais presentes nos cinemas, principalmente para adaptar obras já existentes.
A adaptação cinematográfica de Wicked, que dividiu a obra em dois filmes, mostrou calorosa recepção do público e da crítica. O filme é fiel a trilha e narrativas original, mas se mostra aberto para adequações que o tornem mais comercial, rentável e apropriado para a recepção do público, como a escolha da estrela pop Ariana Grande para viver a Glinda.
Apesar de ser um marco na cultura pop e, de primeira vista, soar escapista, o filme traça os perigos da pragmaticidade do bem contra o mal. A partir da apresentação de Elphaba e Glinda o filme incentiva o espectador a contestar governos autoritários e a mídia que compra apenas um lado.

