No último sábado (01), a cobertura esportiva do final de semana deu lugar a mais uma polêmica de Neymar Jr. Um boletim de ocorrência foi registrado acusando o jogador de estupro. Segundo o Uol, que teve acesso ao documento, o caso ocorreu em Paris, depois que a mulher em questão foi ao encontro do jogador, com quem mantinha conversas há alguns meses. De acordo com a reportagem, Neymar teria chegado ao hotel bêbado e agressivo, e forçado a relação. O exame de corpo de delito mostrou hematomas e sinais de estresse pós-traumático. Segundo o jogador, a relação foi consensual e a denúncia é uma tentativa de extorsão.
Em seu instagram, ele se defendeu com um vídeo em que expõe prints de conversas com a denunciante. A última mensagem é de 16 de maio, um dia depois da data em que o abuso teria ocorrido. Além da acusação por estupro, o jogador será investigado também pela divulgação de imagens íntimas – que configura crime – expostas em sua rede social. Mas o técnico Tite, conhecido por cobrar disciplina e uma boa conduta de seus jogadores – diz não poder julgar as acusações até o momento. Enquanto isso, ele seguirá com a camisa 10 da seleção, colhendo os louros de ser um craque.
Mas Neymar não é o primeiro atleta a se envolver em um caso de violência contra a mulher. O meio esportivo está repleto deles e, na maioria das vezes, o assunto não recebe a atenção devida. Grandes nomes da bola têm em seu histórico acusações, e até condenações, por estupro, agressão e ameaças. Seus feitos em campo, no entanto, costumam ofuscar as atitudes fora dele, que são esquecidas e colocadas em segundo plano. Não nesse texto do Arquibancada.
“Cristiano Ronaldo mostrou o seu grande profissionalismo e dedicação nos últimos meses, o que é muito apreciado por todos na Juventus, e os fatos incriminatórios que remontam a quase dez anos não mudam essa opinião”
Veiculada em seu twitter oficial, a declaração da Juventus em resposta à repercussão da acusação de estupro respondida por seu principal jogador sintetiza em poucas palavras uma mentalidade ainda muito difundida no meio esportivo: a de que a excelência profissional de seus ídolos sobrepõe-se às várias formas de agressão contra a mulher praticadas por eles.
Cinco vezes melhor do mundo, a imagem do português é quase irretocável – a arrogância é uma das poucas motivadoras de críticas, e ainda assim justificada por seu bom desempenho em campo. Um gênio da bola e um nome para ficar na história. Mas o reconhecimento de Ronaldo esconde um passado sombrio.
Em abril de 2017, o jornal alemão Der Spiegel veiculou uma reportagem em que acusava Cristiano Ronaldo de estuprar uma ex-modelo norte-americana no ano de 2009. Na ocasião, o jogador de 24 anos acabara de trocar o Manchester United pelo Real Madrid e era uma promessa em ascensão. O caso foi abafado em 2010 com um acordo extra-judicial em que Ronaldo ofereceu 375 mil dólares para que a mulher permanecesse em silêncio. Sete anos depois, a denúncia contra um dos maiores jogadores do mundo não teve a repercussão esperada e o caso caiu no esquecimento. O Der Spiegel, entretanto, não desistiu de sua investigação e, em setembro de 2018, trouxe a história de volta com uma reportagem detalhada, incluindo uma entrevista com Kathryn Mayorga – a vítima – descrevendo em detalhes a agressão.
Com novos indícios surgindo, a polícia de Las Vegas reabriu o inquérito, baseando-se também na tentativa de Mayorga de anular o acordo, que afirmou ter concordado em assinar apenas por temer por sua vida e a de seus familiares, já que Ronaldo é uma pessoa influente. O jogador negou as acusações, e alegou ter tido uma relação consensual com a mulher. O jornal inglês The Sun, no entanto ,com acesso aos documentos legais do processo, relata que Ronaldo assumiu a sua equipe jurídica que Mayorga pediu para que ele parasse e disse “não” repetidas vezes durante a relação, o que caracterizaria estupro e vai ao encontro das declarações da própria vítima. Ainda segundo o jornal, o jogador tem também outra acusação de violação sexual no currículo: o caso é de 2005 e teria acontecido em Londres. Na época, ele chegou a ser detido pela polícia inglesa, mas saiu sob fiança e a investigação não foi adiante.
Meses depois da reabertura do processo, nada mais se fala sobre o caso, e o astro português segue com a carreira e imagem inabaladas, estampando matérias com seus feitos pelo novo clube. António Costas, primeiro ministro de Portugal, assim como a Juventus, minimizou as acusações e declarou seu apoio ao jogador: “Está provado que Ronaldo tem sido um extraordinário profissional, desportista e futebolista, que tem honrado Portugal”, mostrando quais são as prioridades do meio esportivo.
Mas CR7 não é o único a ter casos de agressão colocados em segundo plano. No final de 2017, Robinho foi condenado na Itália pelo estupro coletivo de uma garota albanesa em uma boate de Milão. O caso aconteceu em 2013, quando atuava pelo Milan. De acordo com a sentença, o abuso foi cometido junto a outros cinco brasileiros que embriagaram a jovem até que esta ficasse inconsciente e não pudesse resistir ao ato. Na época da condenação, o jogador defendia o Atlético-MG, que soltou uma nota afirmando não se pronunciar por tratar-se de uma questão pessoal do atleta.
A declaração do clube escancara um cenário problemático no futebol: se uma condenação por estupro não é motivo suficiente para gerar repúdio e afetar uma carreira de sucesso, como é possível que paguem por seus atos? Poderiam os craques fazer o que quiserem e ainda assim manter o status de ídolos? Ao que parece, a resposta é um doloroso e sonoro “sim”.
Praticamente inatingíveis, jogadores são alçados diariamente ao patamar de estrelas, protegidos por uma redoma de reconhecimento e idolatria que torna acusações graves em meros detalhes se comparadas aos seus feitos em campo. Outro exemplo famoso é o do goleiro Bruno, ex-Flamengo, que matou e sumiu com o corpo da ex-namorada – Eliza Samudio – e depois de condenado, preso, e liberado em regime semi-aberto, recebeu propostas para atuar em nove clubes e foi tietado por fãs no estádio.
Tais casos mostram que, mesmo com condenações jurídicas, a opinião pública em relação a astros do esporte dificilmente sofre grandes abalos. A lista conta ainda com o cultuado Maradona, flagrado em vídeo agredindo a tapas a namorada Rocío Oliva; Vampeta, acusado pela mulher de espancá-la em 2014 e Dudu – do Palmeiras – que cumpriu serviços comunitários por agressão à esposa e à sogra em 2013 e hoje é símbolo das conquistas alviverdes. Quem também tem sentença no currículo é o técnico Cuca. Atualmente no comando do São Paulo, o ex-jogador foi condenado – junto a outros companheiros de equipe – pelo estupro de uma garota de 14 anos na Suíça, quando ainda atuava pelo grêmio. O caso é pouco falado na mídia, e muitos torcedores nem sequer ouviram falar na condenação.
Mas tal situação não se restringe ao futebol. Em 2003, o então ídolo do basquete norte-americano Kobe Bryant foi preso pelo estupro de uma funcionária de 19 anos em um hotel no Colorado. A investigação, no entanto, foi suspensa. A vítima decidiu não seguir com a queixa e o jogador logo foi solto. Algum tempo depois, ele foi a público com um estranho pedido de desculpas: “Apesar de realmente acreditar que o nosso encontro foi consensual, eu agora reconheço que ela não viu o incidente da mesma forma que eu. Eu agora entendo que ela sente que não consentiu com esse encontro”, disse ele relativizando a ideia de consentimento.
O caso voltou à tona no início de 2018, quando o ex-atleta foi indicado ao Oscar com o curta animado “Dear Basketball”. Em meio ao movimento Mee Too – que denuncia casos de assédio em Hollywood – a indicação de Bryant gerou polêmica por seu histórico, mas a acusação não ganha destaque em sua biografia marcada por conquistas. O mesmo acontece com Mike Tyson. Considerado um dos maiores pugilistas de todos os tempos, o boxeador foi condenado à 6 anos de prisão pelo estupro de Desiree Washington. Cumpriu metade da pena e foi liberado em 1995, sendo até hoje idolatrado pelos feitos dentro dos rings.
A situação torna-se ainda mais problemática se comparada a casos como o do ex-jogador da NFL Colin Kaepernick. O então quarterback do San Francisco 49ers ganhou a atenção da mídia em 2016, por se recusar a prestar homenagem ao hino nacional americano antes dos jogos. A atitude do jogador era um protesto contra a violência policial cometida com a população negra do país, e gerou uma reação negativa por parte dos conservadores norte-americanos. Por conta disso, Kaepernick não conseguiu um contrato para a temporada de 2017, e segue até hoje sem um time.
Também na NFL, no final de 2018, o site TMZ divulgou imagens do então running back do Kansas City Chiefs, Kareem Hunt, agredindo uma mulher. O vídeo mostra Hunt empurrando e chutando uma jovem de 19 anos após uma confusão em um hotel. A agressão aconteceu em fevereiro, mas só veio à público no final do ano. Em resposta, o Chiefs dispensou o jogador, e a liga o proibiu de assistir às partidas e treinos no curso das investigações.
Apesar disso, em fevereiro deste ano, ele assinou contrato com o Cleveland Browns para 2019, pouco tempo antes da NFL anunciar sua suspensão por oito partidas na temporada. Com isso, ele ficará de fora de metade da temporada e perderá US$303,5 mil de seu salário base, quase 50% do total. Mas ao contrário de Kaepernick, cujo único crime foi ajoelhar-se em protesto, seguirá dentro de campo, atuando pelos Browns e lucrando com o esporte.
O contraste entre a situação dos jogadores escancara a marginalização da violência contra a mulher no cenário esportivo: uma manifestação política marca facilmente a vida profissional de um jogador – ao ponto de deixá-lo de fora do esporte – enquanto condenações por estupro e violência doméstica são condecoradas com a continuidade da carreira dos agressores sem manchas em sua reputação. Um cenário difícil de engolir. Mas a mudança parece começar pelo público.
Um caso que acendeu as esperanças por mudanças foi o de Juninho, do Sport. Acusado de agressão contra a ex-namorada, o atleta – que estava emprestado para o Ceará – recebeu proposta do Corinthians, mas a torcida do alvinegro mobilizou-se nas redes sociais contra a sua contratação. O movimento surtiu efeito e o clube desistiu do reforço, que também não conseguiu voltar ao Ceará.
Em nota oficial, o Corinthians justificou a desistência com base na rejeição da torcida e reafirmou a importância da causa feminista: “Considerando as inúmeras manifestações de torcedoras e torcedores contrários à eventual contratação de Juninho, informamos que ele não fará parte de nosso quadro de funcionários. O momento exige que o congraçamento de mentes em torno da causa feminista se sobreponha a quaisquer outras considerações.”
Com a recusa do Corinthians, o jogador voltou para o Sport e segue sua carreira normalmente. Apesar disso, a mudança de posicionamento do clube paulista serviu para mostrar a responsabilidade dos torcedores. Não há esporte sem torcida, e opôr-se à cultura machista que domina esse meio e transforma gols e títulos em instrumento de opressão é essencial. Quem também precisa assumir seu papel na mudança é a mídia esportiva. Não é justo que títulos e artilharias valham mais do que o sofrimento de mulheres silenciadas enquanto seus algozes são exaltados nos jornais e aplaudidos nos estádios. Por agora, nossos campos, quadras, rings e arquibancadas, seguem manchados com sangue feminino.