Por Thais Navarro (thaisnavarro@usp.br)

Neuromancer (Wiliam Gibson, 1984) é um famoso clássico da ficção científica cyberpunk. Primeiro de uma trilogia (que vem seguido por Count Zero e Monalisa Overdrive), Neuromancer não é um livro fácil: repleto de digressões e termos criados ou renovados pelo autor, sua estrutura não linear e linguagem diferenciada podem assustar à primeira vista aqueles leitores que não estão acostumados a esse gênero da ficção científica. Ainda assim, Gibson conseguiu trazer originalidade à literatura de sua época, o que inclusive fez com que o livro recebesse três grandes prêmios da ficção cientifica: Nebula, Hugo e Philip K. Dick.
A história é centrada, basicamente, no protagonista Case, um “cowboy do cyberespaço”: uma espécie de hacker que era contratado e pago para invadir sistemas de segurança e inteligências artificiais das mais diversas. No livro, ele entra e opera no universo da matrix, uma realidade virtual onde ele pode participar fisicamente através da conexão de trodos em sua cabeça. Seu maior erro — que é o que dá início ao enredo do livro — foi trair um de seus contratantes ao roubá-lo. Por causa disso, ele sofreu consequências cerebrais e corporais que praticamente o impediram de ter o pleno acesso à matrix.
Após perder as esperanças de recuperar suas habilidades, pois passou por diversos centros médicos que o disseram que não havia possibilidade de recuperação, ele encontra o que pode ser a única saída no fim do túnel ao conhecer Molly. Molly é outra personagem icônica do livro, uma espécie de ninja de olhos espelhados e lâminas nas unhas que também é contratada para realizar serviços na matrix. Ela o leva a Armitage, que o faz passar por um procedimento cirúrgico que recupera boa parte das suas habilidades. No entanto, são deixados no seu corpo pacotes com toxinas que podem estourar se ele não fizer os serviços solicitados,fazendo-o voltar ao seu precário estado inicial. Por isso, em uma espécie de suborno, ele e Molly tem que realizar uma série de serviços para Armitage, além de tentar descobrir a real identidade desse contratante ao longo da trama.
Case e Molly passam por uma série de lugares existentes neste universo da ficção do livro: o famoso Sprawl, megacidade que abrange todo o terreno de Boston a Atlanta; Chiba City, em Tóquio; Straylight; dentre outros. Contudo, as viagens mais recorrentes no livro são aquelas em que, fisicamente, seus corpos sequer saem do lugar, que é quando conectam-se à matrix. Nelas, as personagens voltam a memórias de seus passados (e uma memória recorrente a Case é a de Linda Lee, um de seus romances), acessam lugares completamente diferentes e interagem com esses lugares. Devido principalmente a essas constantes viagens, o livro apresenta uma estrutura digressiva e não linear. Em algumas passagens, o leitor pode confundir-se sobre se o que está acontecendo é real ou virtual e até mesmo se uma personagem está de fato viva. Mas, ao final, os episódios se encaixam.
Outro aspecto único da literatura de Gibson é o uso de neologismos e palavras referentes ao universo da cibernética e da alta tecnologia, como “matrix”, “microsoft” (que não tem relação com a empresa de Bill Gates),”simstin”, “RAM”…dentre diversas outras às quais o leitor têm de se acostumar: mas é interessante ressaltar que na edição da editora Aleph de comemoração de 25 anos do lançamento do livro, há um glossário ao final do livro para consulta de tais termos.
William Gibson escreveu este livro em 1984, muito antes de diversas parafernalhas tecnológicas que hoje conhecemos virem a existir. Este é um aspecto espetacular do livro: o quanto o autor foi capaz de escrever sobre uma realidade que poderia estar muito à frente de sua época. Tecnologias como a inteligência artificial, a criogênese, os hologramas, as técnicas de rejuvenescimento e a própria matrix, que seria uma espécie da atual internet onde, contudo, pode-se concretizar uma conexão de fato corpórea, são apresentadas ao longo da história. Porém, é apresentada também toda a decadência da vida humana, toda a subordinação às tecnologias, a drogas, ao mercado negro, e resumidamente a um lema do cyberpunk: High technology, low life (ou seja, alta tecnologia e baixa qualidade de vida).
Seria Neuromancer, então, uma distopia sobre o que o mundo pode vir a tornar-se caso aceite cegamente todo tipo de tecnologia, onde as emoções praticamente não tem participação ou importância ? Neuromancer é um livro que vai, de fato, bagunçar sua mente enquanto o lê. É um livro nem um pouco tradicional, e seu estilo pode ser complicado no início aos não iniciados no universo da ficção científica. Mas é isso que o faz único e faz jus ao seu reconhecimento na ficção científica cyberpunk.