Inspirado livremente na obra “Raízes de Aninha”, de Clóvis Brito e Rita Elisa Seda, o longa Cora Coralina: Todas as Vidas (2017), dirigido por Renato Barbieri e imerso na transição entre a ficção e o documentário, expõe os retalhos da vida da poeta e contista goiana que, entre pedras que a esmagavam, levantou a pedra rude de seus versos: Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, a Cora Coralina.
Lavadeira do rio Vermelho, cabocla velha de mau-olhado, mulher cozinheira, mulher do povo, mulher roceira, mulher da vida, Cora Coralina dizia carregar todas as vidas dentro de si. Sete são as personagens femininas da obra que, por meio de suas vozes e performance, materializam escritos e facetas da poeta. Camila de Queiroga Salles, também tataraneta de Cora na vida real, interpreta a menina Aninha – “menina feia da ponte da Lapa”. Maju Souza, de apenas 15 anos, é Cora aos 14 anos e Camila Mardila, de Que horas ela volta? (2015), aos 21. A Cora madura ganha vida, por sua vez, pela interpretação de Walderez de Barros. O “eu-lírico” da autora é representado por Tereza Seiblitz, bem como Beth Goulart e Zezé Motta interpretam poemas da escritora.

A vida, os sentidos, a estética e a sensibilidade – “todas as vibrações de minha sensibilidade de mulher” – da poeta têm suas raízes em Goiás. Nas paredes da Casa Velha da Ponte, às margens do rio Vermelho, o longa exibe projeções de Cora, por meio de vídeos de entrevistas realizadas com a escritora. Em um desses vídeos, a autora enaltece a dignidade do trabalho e concebe o ‘fazer bem feito tudo o que houver de ser feito’ como a extensão do ‘saber viver’ – “seja bordar um painel em fios de seda ou lavar uma panela coscorenta, todo o trabalho é digno de ser bem feito”.
Cora Coralina parece ter bem feito tudo o que fez em vida. Ela não deixou inscrições de seu ser apenas na literatura brasileira, mas também nos doces que preparou e vendeu com deleite – doces produzidos a partir de frutas caseiras, ofício que a sustentou até o fim da vida a partir da década de 40, após ter ficado viúva e passar um tempo em São Paulo vendendo livros –, nas inúmeras mudas de rosas que plantou, nos que tiveram a oportunidade de conhecê-la e serem conhecidos por ela, e nos que hoje estudam a sua obra. Depoimentos de contemporâneos, colaboradores, amigos, parentes e estudiosos da obra de Cora integram, inclusive, a narrativa polifônica construída pelo documentário.
Em quase todas as recriações de episódios marcantes da vida da autora pela obra, as personagens, representantes de Cora, encontram-se descalças, com os pés em contato com a terra. São significativos os sons da natureza que acompanham algumas dessas cenas, como o da cachoeira e o da menina Aninha regando a terra no quintal – “Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das lavouras pobres, sou o milho” –, tal qual o realce sobre imagens das raízes das árvores, das pedras, da caneta e do papel, dos utensílios de cozer e da Casa Velha da Ponte.
Cora Coralina apresentava, como a mesma expressou em vida, “uma identificação profunda e amorosa com a terra e com os que nela trabalham”. A autora recolheu elementos de linguagem do campo e engendrou analogias com o ato de escrever em suas poesias. Para ela, seus versos tinham cheiro de mato, gosto de terra e peso do machado – “Minha pena (esferográfica) é a enxada que vai cavando, é o arado milenário que sulca”. Suas mão estavam sempre fazendo algo, jamais ociosas – “mãos fecundas, imensas e ocupadas; mãos laboriosas, abertas sempre para dar, ajudar, unir e abençoar”.
As filmagens do longa também exploram, além de Goiás, as cidades de Jaboticabal, Penápolis e Andradina, onde a autora viveu. Cora Coralina desbravou estados, convenções características de uma sociedade conservadora e, mesmo sem os estímulos de sua família, teve seu primeiro livro publicado aos 75 anos de idade – antes, escreveu para jornais e revistas brasileiros. “Eu sou a mulher mais antiga do mundo, plantada e fecundada no ventre escuro da terra”.
Confira o trailer:
por Camila Mazzotto
camila.mazzotto@usp.br