Olhos que viram a bola rolar no dia 21 de outubro de 1964, na partida entre Santos e Botafogo-SP, jamais esquecerão as imagens de Pelé marcando oito gols na goleada por 11 a 0 em cima do visitante. Corpos que vibraram com os dribles e ataques rápidos dos Meninos da Vila, sempre se lembrarão da emoção sentida naquele momento. Vozes que um dia cantaram “Hoje a Vila está em festa, quem quiser pode chegar, Torcida Jovem está presente, salve nossa mãe Iemanjá”, têm o canto eternizado na memória. O que todos esses momentos especiais têm em comum? O local: Vila Belmiro.
O Estádio Urbano Caldeira, popularmente conhecido como Vila Belmiro ou apenas Vila, é a casa do Santos Futebol Clube, considerado por muitos o maior time do Brasil. Localizado na Rua Princesa Isabel, em Santos, esse estádio já recebeu mais de 2 mil jogos. Lá, só o time da casa já balançou as redes mais de 5 mil vezes. A Vila mais famosa do mundo é reconhecida por sua atmosfera esmagadora, resultante da combinação do futebol arte com a força e a pressão da torcida santista.
Entrada da Vila Belmiro [Foto: Divulgação/Vila Belmiro]
A Vila como conhecemos, porém, está com os dias contados. O Santos firmou uma parceria com a empresa WTorre para a construção de uma nova casa, que será mais moderna e terá uma capacidade maior do que a atual. Por questões logísticas, foi decidido que o estádio existente será demolido para a construção de um novo no mesmo terreno.
Mas para falar sobre a nova Vila Belmiro é preciso compreender, primeiro, o que a “antiga” Vila foi e é.
Vila Belmiro: o Alçapão do Santos
Conhecida inicialmente como “Praça de Esportes” ou “Campo do Santos”, a Vila foi inaugurada em 12 de outubro de 1916, sendo um dos estádios de futebol mais antigos do Brasil. O estádio recebeu sua primeira partida oficial dez dias depois da inauguração, já que, devido às condições climáticas, o jogo inaugural entre Santos e Ypiranga, que ocorreria no dia 12 de outubro, foi realizado no dia 22. Essa foi a primeira de tantas partidas históricas que ocorreriam naquele local.
Primeira vitória santista na Vila Belmiro, em 1916 [Foto: Divulgação/Acervo Santos FC]
Diversas estrelas do esporte marcaram presença e fizeram história nos gramados da Vila. Craques históricos como Araken Patusca, Antoninho, Feitiço, Pelé, Clodoaldo e Neymar contribuíram para a perpetuação do local como um templo do futebol e encantaram pelo jogo bonito, pela magia futebolística e pelas muitas bolas na rede. É fato que, assim como o Alvinegro Praiano, o Alçapão santista também possui um DNA mágico e vencedor.
O apelido “Alçapão”, por sua vez, surgiu no ano de 1930, e foi concebido pelo jornalista Antonio Guenaga após o Peixe permanecer invicto por 25 partidas consecutivas jogadas no estádio, incluindo a ilustre goleada por 6 a 1 sobre a Seleção da França, que havia disputado a primeira Copa do Mundo naquele ano. A alcunha foi imortalizada com a marchinha Leão do Mar, dos compositores Maugeri Neto e Mangeri Sobrinho, em comemoração ao título paulista de 1955. A música foi adotada como hino popular do time.
Matéria em um jornal sobre a vitória santista diante dos franceses [Foto: Acervo Histórico Santos FC]
Apesar da capacidade oficial do estádio ser de 16.068 pessoas (2018), o recorde de público é de 31.662 torcedores, marca registrada em 15 de fevereiro de 1976 no clássico paulista entre Santos e Palmeiras, que acabou com vitória alviverde. Considerando apenas os triunfos santistas, a partida com mais espectadores foi entre Santos e Francana. O jogo aconteceu em 14 de abril de 1979, aniversário de 67 anos do clube praiano, que venceu por 2 a 1 e levou 29.801 pessoas para as arquibancadas.
Mesmo com uma capacidade reduzida se comparada a outros estádios brasileiros — como o Maracanã (78.838) ou o Morumbi (66.795) — a Vila consegue exercer uma pressão grande nos adversários, o que é proporcionado pelas dimensões pequenas e arquibancadaspróximas ao campo, que fazem a torcida “jogar junto” com o time.
João Pedro Mendes, torcedor do clube e frequentador do estádio desde criança, afirma que a Vila é completamente diferente dos outros estádios, não só pela estrutura de mais de cem anos, como também por toda história e magia envolvida. “Sobre o estádio, é até difícil explicar toda energia mística que existe nas ruas da Vila Belmiro (o bairro) e em cada canto acanhado do estádio. […] Sempre me arrepio de entrar lá”, pontua.
O carinho e amor pela casa santista foi tão grande que o torcedor fez uma tatuagem do estádio em seu braço [Foto: Acervo Pessoal/João Pedro Mendes]
A história e a magia da Vila Belmiro coincidem com as do Santos Futebol Clube, o que faz do estádio o abrigo perfeito para o time alvinegro. Júlia Teixeira, também torcedora santista, define a casa de seu time como “templo sagrado” e comenta o que significa a Vila para ela, diante de tantos jogos e pessoas marcantes que passaram por lá. “Para mim, a Vila Belmiro se resume a isso: um templo sagrado do futebol”.
Porém, com o passar dos anos, a Vila foi ultrapassada em termos de estrutura, quando comparada às casas de times rivais. Isso ocorreu devido ao processo de elitização do futebol, que acarretou na modernização e arenização dos espaços esportivos.
O desafio dos tempos modernos
No princípio da modalidade, o futebol era disputado de forma não padronizada, já que não havia definições em relação aos campos, nem regras que limitassem a quantidade de jogadores por equipe. Nessa época, as pessoas que queriam acompanhar as partidas se aglomeravam em torno do local. Somente em 1875, com a inserção do travessão no futebol, passou a existir uma delimitação de onde o jogo acontecia, criando, por consequência, o lugar do torcedor e o pensamento da necessidade de locais para abrigar os espectadores.
Conforme o esporte se popularizou e se consolidou, o conceito de estádios como os que conhecemos hoje passou a existir, com alguns sendo inaugurados antes mesmo do século 20. Segundo o Guinness Book, o estádio mais antigo do mundo é o Sandygate Road, um pequeno estádio para 700 pessoas localizado na cidade inglesa de Sheffield e que teve sua primeira partida de futebol em 1860 – também uma das primeiras de toda história.
O pequeno e antigo estádio Sandygate Road, casa do Hallam FC [Foto: Divulgação/Hallam FC]
Ao longo dos séculos, essas estruturas ganharam importância e se tornaram um dos principais atores do espetáculo futebolístico. Ter um espaço próprio com uma grande capacidade passou a ser um fator determinante para o sucesso de um clube, já que o calor e a vibração da torcida poderiam levar a milagres dentro das quatro linhas.
Os estádios antigos eram construídos de modo que suas arquibancadas abrigassem o máximo de pessoas possível. Por isso, é comum vermos estádios dos anos 1990 com capacidades que ultrapassam os 60 mil torcedores. A partir do século 21, surgiu a necessidade de os estádios satisfazerem os espectadores e serem mais cômodos.
Se antes apenas um campo, uma área técnica e algumas arquibancadas bastavam, a modernidade inseriu outros elementos como essenciais para os estádios: hoje em dia, nenhum time constrói um estádio sem estacionamento, lojas, praça de alimentação ou camarotes. Os locais construídos com a lógica anterior estão sendo reformados e adequados ao novo padrão das arenas esportivas.
É fato que o conceito de arena tem sobrepujado o de estádio. Em todos os cantos do mundo, isso é visível, seja na demolição do histórico White Hart Lane, que deu lugar ao Tottenham Hotspur Stadium (Tottenham Hotspur FC, Londres), seja na ousada reforma do Camp Nou (FC Barcelona, Barcelona) que pretende transformar o estádio em uma vanguarda tecnológica. No Brasil, o lendário tobogã do Pacaembu foi demolido para a construção de um edifício multiuso.
Como ficará o Pacaembu após a reforma [Foto: Divulgação/Allegra Pacaembu]
Outro exemplo desse processo de arenização em solo brasileiro é o estádio Mané Garrincha, em Brasília, que passou por um processo de reconstrução para a Copa do Mundo de 2014 e se tornou a Arena BRB Mané Garrincha. A reforma aumentou a capacidade do local de 45.200 para 69.349 espectadores, além de tornar o espaço uma arena multiuso — algo bem parecido com o que o Santos almeja com sua nova casa.
Apesar de existirem aspectos positivos, como a ampliação da capacidade e um maior potencial econômico, o procedimento de arenização dos espaços futebolísticos abre uma grande brecha para a elitização das torcidas. A tendência é que a modernização acarrete ingressos mais caros e uma menor democratização do acesso ao futebol.
Um levantamento feito pelo Espião Estatístico revela que o Palmeiras, que manda seus jogos na arena Allianz Parque, teve o segundo ticket médio mais caro do país, no valor de R$ 76,05. Quando comparado ao ticket médio da Vila Belmiro, a variação é significativa: a média no estádio santista ficou em R$ 45,64, uma diferença de mais de 30 reais. Isso expõe como o acesso às novas arenas é elitizado.
Projeto nova Vila Belmiro: o que vai mudar?
Animação projetando novo estádio do Santos [Foto: Divulgação/Twitter @SantosFC]
Ainda sem nome definido, a nova Vila Belmiro será feita exatamente no mesmo lugar da atual. A escolha pela manutenção do endereço centenário considerou diversos fatores, como a memória afetiva dos torcedores e moradores, a boa posição que favorece à mobilidade da torcida e, principalmente, todo o legado santista que o quarteirão carrega.
Quanto ao interior da nova construção, muitas coisas vão mudar. A alteração mais notável é a capacidade, que está prevista para ser superior a 30 mil torcedores, praticamente o dobro da atual. Outras novidades que o projeto traz são o estacionamento de dois andares, que abrigará 576 veículos, e a área comercial, que vai contar com 27 lojas internas e 36 lojas externas. A área construída total será de 71.690,46 m².
Animação projetando como será o interior do novo estádio santista [Foto: Divulgação/WTorre]
Em entrevista à ESPN, Luiz Volpato, arquiteto responsável pelo projeto, explicou a proposta arquitetônica e a ideia de criar uma arena multiuso. “O projeto busca contribuir fortemente para os sentimentos de identidade e de autoestima de seus usuários. Aliamos modernidade e tecnologia para reavivar a marcante trajetória do clube, além de oportunizar a sustentação para investidores”, afirmou.
Outra promessa feita pelo arquiteto é que o novo estádio continuará com a atmosfera intimidadora do atual. Os formatos da arena, da cobertura e das arquibancadas irão contribuir para a pressão da torcida permanecer como um dos pontos fortes do clube.
O pensamento geral é que, assim como as arquibancadas da atual Vila têm muitas histórias para contar, as arquibancadas da nova Vila também serão um palco para o espetáculo do Santos Futebol Clube, um gigante do futebol nacional. A aparência e o nome do estádio podem mudar, mas a essência mística e o DNA alvinegro permanecerão.