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O documentário, as imagens e o seu poder de reflexão

Diante de Koyaanisqatsi (idem, 1982) e Nós que aqui estamos por vós esperamos (1998), o espectador olha de banda, ressabiado. Nem sinal de depoimentos de especialistas, narrador em off, ou de outros elementos que são praticamente tiro certo no cinema documental. O filme documentário, frequentemente alardeado (por quem o faz) e absorvido (por quem o …

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Diante de Koyaanisqatsi (idem, 1982) e Nós que aqui estamos por vós esperamos (1998), o espectador olha de banda, ressabiado. Nem sinal de depoimentos de especialistas, narrador em off, ou de outros elementos que são praticamente tiro certo no cinema documental. O filme documentário, frequentemente alardeado (por quem o faz) e absorvido (por quem o assiste) como “a verdade” é tão somente um ponto de vista sobre o real; a lente voltada para um único canto desse mundo mundo vasto mundo. Com certeza, diante de tudo que já foi produzido em matéria de documentários, esses dois títulos merecem a atenção da audiência cativa do gênero.

Carros, carros, carros, tanques, mísseis, foguetes. Expressa em palavras, esta pode parecer uma composição cubista ilógica. Mas a matéria prima destes diretores não é, absolutamente, a retórica, a narrativa tradicional,“a voz de Deus” reconfortante que costuma estar por trás dos documentários. Quando muito, no caso de Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos, a palavra escrita serve para amarrar as imagens, com a delicadeza e a auto-suficiência de um haikai. Não há quem nos conte, do alto da onisciência dos realizadores, qual é o sentido do encadeamento de imagens que vemos se desenrolarem: nomes e imagens fugazes de gente comum, a Serra Pelada, uma fábrica de cigarros na URSS, a Guerra do Golfo, a Grande Depressão, os Kamikaze. Aglutinados e somados a idiossincrasias, compõem a inacreditável receita de Masagão, um olhar humano e incomum sobre o século passado.

Nós que aqui estamos: “Memória do breve século XX”
No documentário de Marcelo Masagão, a memorabília prestes a desfilar pela tela ser composta pelo espólio do século XX é a única explicação prévia dada ao espectador. A “composição cubista” então se revela um mosaico da divina comédia humana e daquele século, do qual pretende deixar um registro mais do que factual. O diretor exibe sua colagem de quadros  e deixa para que cada um  preencha de acordo com sua subjetividade. Em razão disso, assistir a esses dois títulos ímpares entre os documentários é uma experiência sempre pessoal e única – a memória então não é apenas a base sobre a qual o filme se equilibra, mas também se manifesta na evocação que fazemos para interpretar e sentir o que estamos vendo. A forma de contar a história pretendida (apesar da maneira pouco ortodoxa de fazer isso, não há dúvida de que uma história é contada, do contrário se tratariam apenas de imagens a esmo, sem efeito de sentido sobre quem assiste) dá mais espaço para uma leitura individual do que outros formatos, que conduzem completamente seu público. A seleção e disposição de imagens certamente nos leva até certo ponto idealizado pelo diretor, mas para além deste ponto, a leitura do documentário fica inteiramente por nossa conta.

O uso de imagens de arquivo ( imagens filmadas por outra pessoa de que o diretor lança mão na hora de fazer seu filme) faz parte da tradição documental. A maioria dos documentários, de uma forma ou de outra, conta em algum momento com esse tipo de material que confere verossimilhança ao discurso do filme – falar sobre algo sem de fato mostrar ao interlocutor este “algo” cobra um alto preço sobre o contrato entre documentarista e público. Neste contrato, a impressão de autenticidade conferida ao que é veiculado nos faz aceitar aquela representação da realidade, não raro como muito mais do que uma mera representação. Porém em geral, complementando as imagens de arquivo, os depoimentos de fontes diversas costumam ser um outro pilar do gênero. O diferencial de Nós que aqui estamos… é revisitar o acervo do século que expirava e executar sua ideia somente a partir dele. As imagens de arquivo são a matéria-prima, revisitadas primeiro por seu olhar criativo e em seguida pela leitura de quem assiste ao filme.

Também figuram como ingredientes importantes a alternância entre personalidades e gente comum, histórias mostradas em capítulos imagéticos e  a trilha sonora instrumental do compositor belga Wim Mertens, que dá ritmo e acabamento a um trabalho de evidente sensibilidade.

Koyaanisqatsi
O documentário dirigido por Godffrey Reggio é o primeiro (e quase sempre definido como o mais marcante) da trilogia “Qatsi”. Seu título, uma palavra em Hopi – dificilmente conhecida antes de ser jogada no google – não entrega nada de seu significado: “koyaanisqatsi” quer dizer vida louca, tumultuada, em desintegração e desequilíbrio. Por isso, entramos vendados até esse passeio visual começar. As paisagens que abrem o filme dão impressão de ancestralidade, de uma Terra sem homens, e na sequência, máquinas, antenas, fios e metais já tomaram conta do espaço. A narrativa construída por Koyaanisqatsi se apoia na tensão dicotômica entre a tecnologia, a vida urbana e o meio ambiente.

Nele também, a linguagem falada e a escrita são ausentes (exceto pela legenda que, no final, revela o significado do curioso nome de batismo) – a edição é a própria linguagem a alinhavar a narrativa. Há blocos perceptíveis de imagens, delineados pela trilha grandiosa de Philip Glass. Novamente, a música se revela determinante para a percepção do filme, ela é definidora da experiência ao criar atmosferas e ritmos: ora frenéticos, eufóricos, ora melancólicos. Da mesma forma, a velocidade dos fotogramas se alterna, passando do aspecto “metralhado” ao arrastado e lento.

A música induz significado, mas a liberdade de apropriação pelo público se mantém. Segundo afirma o próprio diretor no site, Koyaanisqatsi não se pretende como uma obra com um significado específico, ao contrário, reitera que o poder da arte é não ter significado intrínseco. Ou seja, independente desta ou daquela intenção ao criar, o real valor da obra está naquele que a assiste.

O dinamismo hipnótico conseguido por Reggio lembra em grande medida Um Homem Com Uma Câmera (Chelovek s kino-apparatom, 1929), em que o russo Dziga Vertov registra um dia na cidade moderna. Além da temática urbana, a aproximação no estilo dos dois está na poeticidade e na importância fundamental da montagem para seus respectivos documentários.

Matéria-prima da reflexão
Ao listar o que permite colocar estes dois títulos lado a lado, a ausência de locução, a trilha instrumental responsável pela ritmação das imagens, a dualidade criação/destruição, entre tantas outras semelhanças, poderiam ser citadas. No entanto, a maior intersecção entre ambos é a importância confessa da subjetividade em sua composição. A inovação que apresentam é deslocar o objetivo clássico do documentário de ser convincente para outros, mais ambiciosos, proporcionando reflexão.

Curiosamente, ao final de Nós que aqui estamos… e Koyaanisqatsi, retorna-se à imagem que é  ponto de partida. No primeiro, o cemitério homônimo ao filme localizado numa cidade no interior de São Paulo, encerra tudo com num tom evocativo e poético;  no segundo, retorna-se ao nada, às paisagens do início, sem homens e sem tecnologia. Parecem fechar ciclos.

Nesse formato, mais importante do que se questionar sobre a intenção, sobre o que o idealizador quis ou tentou dizer com essa e aquela imagem, é sentir o impacto de cada uma e de seu conjunto. O encadeamento de imagens não é fortuito, mas a percepção livre do resultado vale mais do que tentar decodificá-lo. Palavras do próprio Reggio.

Por Juliana Lima
juliana.domingosdelima

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