O outro lado do esporte que vai muito além das descidas radicais
Por Aldrin Jonathan (aldrinjss@gmail.com)
Na fria noite de 4 de Julho de 2012, a torcida alvinegra paulista comemorava a inédita conquista da Libertadores da América, torneio cuja primeira edição data de 1960. O Corinthians se sagrava campeão do campeonato mais cobiçado de sua história de 102 anos. O Brasil parou para assistir a partida final do campeonato contra o argentino e copeiro Boca Juniors. Milhões de torcedores concentraram seu pensamento e seu coração durante duas horas para ver aquilo que acontecia no Paulo Machado de Carvalho, o estádio do Pacaembu.
Impressiona o clamor brasileiro pelo futebol, o que faz o torcedor fanático se embeber de um rito quase espiritual que justifica o pesado investimento financeiro da mídia nesse esporte, garantindo o lucro e o aposto brasileiro de “país do futebol”. Atualmente, o Corinthians gasta cerca de R$ 5 milhões por mês em salários e o jogador santista Neymar é o 12° jogador mais bem pago do mundo, ganhando cerca de 625 mil euros por mês, sem contar os patrocínios. No entanto, outros esportes não possuem a visibilidade que o futebol alcança no Brasil. Exemplo disso, é um esporte pouco reconhecido no país do penta, o Mountain Bike (MTB), uma modalidade do ciclismo, cujo percurso percorrido se dá em estradas de terra, montanhas e em trilhas bem radicais e perigosas, e que admira pela resistência e superação dos atletas.
O MTB: origem e história
No MTB, há tipos diferentes de estilo: a maratona, também chamada de trip trail, consiste geralmente em percursos de longa distância, ultrapassando muitas vezes a marca dos 100 km, como as provas paulistas do Big Biker e 100 km dos Canaviais; o Cross Country consiste num circuito fechado, no qual vence aquele que der mais voltas em determinado tempo, geralmente são circuitos de 5 km, como o 12 horas de MTB e o 24 horas de MTB; o Down Hill é o estilo mais perigoso do MTB, pois consiste em descer terrenos muito acidentados, ultrapassando a marca dos 100 km/h.
O MTB surgiu como esporte na década de 1970, a partir da criação de novas peças concomitantemente ao aperfeiçoamento das antigas para a adaptação da bicicleta aos terrenos mais radicais. A primeira realização de competição oficial com o novo modelo de bike ocorreu na Califórnia e ganhou popularidade na Austrália e nos Estados Unidos, incentivando a realização, em 1990, do campeonato mundial em Durango (EUA).
Em 1996, em Atlanta, nos Estados Unidos, o esporte fez parte, pela primeira vez, de uma olimpíada, com vitória, no feminino, da italiana Paola Pezzo e, no masculino, do holandês Bart Brentjens. Os brasileiros Marcos Ravelli e Ivanir Teixeira Lopes ficaram, respectivamente, na 27a e 35a colocação. Já a primeira participação feminina em olimpíadas só ocorreu em Atenas (2004) representada pela atleta Jaqueline Mourão que acabou em 18º lugar, entre 24 competidoras de diversas partes do mundo.
O esporte sobre duas rodas emociona, o enredo de uma competição começa com a largada determinada na arritmia dos segundos eternizados em contagem regressiva. O delírio vem com o apito que promove o início do movimentar das rodas e dos corpos, que de longe parecem mesclar-se num único e grande ser, cujos traços vão se perdendo pouco a pouco no horizonte, até desaparecerem por completo. Tudo caminha para um grande campo de batalha, cujas armas são uma mistura de suor, gana, sangue e coragem, digna de uma notável ficção. As horas do relógio arrastam a ansiedade e a esperança de quem espera o grande final na linha de chegada. De repente, o tremor da terra anuncia a chegada do vitorioso que aguarda por novas conquistas. O lado engrandecedor e vitorioso do esporte negligencia a dor, o sofrimento e as dificuldades enfrentadas por inúmeros equilibristas anônimos que possuem a coragem de desobedecer a si mesmos.
A história de uma campeã
Roseli de Souza, 36, a “Rose Ciclista” como é conhecida, é justamente uma das equilibristas sobre duas rodas: é atleta de MTB, possuindo diversos títulos nacionais: Bicampeã Paulista de Maratona, Campeã Paulista Cross Country, Campeã dos 100 km dos Canaviais, Campeã do GP Ravelli 2011, Campeã do Campeonato Pedal Leve 2011, dentre outros.
Rose iniciou sua carreira em 2002, aos 26 anos, e ri ao lembrar que há pouco tempo nem sabia andar de bicicleta. Em 10 anos de carreira, Rose vivenciou momentos de glória, desespero e todo um conjunto de sensações que dão o ar da graça ao esporte. Já caiu, levantou-se, recuperou-se, prosseguiu e continuou sem olhar para trás. A atleta ribeirãopirense é sinônimo de garra, superação e luta. Já se deparou com momentos muito difíceis: das inúmeras provas que já participou, guarda, em alguns casos, lembranças cicatrizadas em marcas pelo corpo. Na largada do Campeonato Paulista de 2008, realizado em Itupeva (SP) e que trazia mais de mil participantes, foi empurrada por um competidor pelas costas, desequilibrou-se e, devido à próximidade física das bikes, acabou, para proteger o rosto, cravando o braço na catraca da bicicleta ao seu lado; a corrida, nessa acasião, acabava ali para a atleta.
Em outros momentos, mesmo machucada não desistiu: em determidada competição, caiu e cortou o braço esquerdo próximo ao cotovelo; em meio a dor, tirou o lenço, que usualmente utiliza na cabeça, e amarrou-o no ferimento, ficou de pé e continuou a competição por longas três horas, até ultrapassar a linha de chegada e sagrar-se veneravelmente campeã da corrida em questão. Emocionada, dedicou a vitória à sua família. Conta a atleta que muitas vezes já pensou em abandonar o MTB, muito devido aos perigos aos quais ficam submetidos os que se dedicam a ele: “Sei que não corro apenas por mim, meus filhos precisam de mim, morro de medo de acontecer alguma coisa comigo nas competições e eles me perderem”, completa. Considera os 12 horas de MTB a competição mais marcante de sua carreira, “foi a prova mais triste”, diz. A competição tradicionalmente tem início à meia noite e término ao meio-dia, vence aquele que der mais voltas no percurso determinado ao longo desse período, vale correr também em dupla ou em quarteto.
Em 2007, nesta competição, Rose, após se manter resistente por toda a madrugada e de aguentar o calor sufocante digno de uma manhã de verão da capital paulista, caiu numa descida por volta das 9h chocando o pescoço numa árvore e ficando inconsciente. Como a atleta demorava muito para passar pelo local de apoio, sua família entrou em contato com a organização da prova que, por sua vez, acionou o resgate. Rose, enquanto estava caída, devido ao forte impacto com a árvore, contou com a ajuda de um “Anjo da Guarda” (como ela menciona) que abandonou a competição para prestar auxílio à atleta.
O resgate teve dificuldade para chegar ao local do acidente, pois se tratava de um lugar de difícil acesso; a atleta lembra que, estando na ambulância que seguia em direção a um hospital em Vinhedo, escutava, um tanto quanto inconsciente ainda, os enfermeiros dizendo: “estamos perdendo ela, estamos perdendo ela”. Era um momento de grande tensão e medo. Ao chegar ao hospital, ficou sabendo que os médicos queriam entubá-la.
Após algumas horas em observação, tudo não passou de um grande susto e Rose voltou para casa. “O atleta tem que conviver com a dor, com o desgaste; é muito sofrido. É muito triste quando você chega numa competição e o organizador pede um minuto de silêncio e anuncia que um amigo perdeu a vida em cima de uma ‘magrela’, numa corrida, num treino, numa queda acidental ou no trânsito, no qual um motorista imprudente não respeitou a vida de um ciclista”. Dados da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo apontam que no ano de 2011 foram registradas 3.400 internações de ciclistas relativas a acidentes de trânsito.
Rose, por falta de incentivos financeiros e melhores patrocionícios, fica impossibilitada de pleitear voos mais altos, “é muito triste gostar de algo e não poder fazer por falta de dinheiro”, diz. Ela reclama que falta tempo para treinar, falta dinheiro para um treinador, para uma nutricionista, para uma academia, para uma boa bicicleta (em torno de 30 mil reais), suplementação, vestuário (capacete, bermuda, luva, sapatilha – 3 mil por ano). Confira alguns dados sobre o incentivo financeiro ao esporte no infográfico ao final da reportagem (Bolsa atleta).
A atleta não possui uma renda fixa com o esporte, trabalha como promotora de vendas e ganha pouco mais de um salário mínino: “falta dinheiro, falta tempo”, completa. Além do esporte, dedica-se à sua família e é responsável por cuidar da casa e de todos os pormenores entregues a uma mãe de 2 filhos.
A ciclista corre pela paulistana Ribeirão Pires, cidade turística da região metropolitana de São Paulo, e reclama que muitas vezes a verba não é repassada para os atletas da cidade. “Apenas o futebol possui uma posição de destaque, a cidade deveria valorizar mais o atleta que carrega o nome dela nas costas; já trouxe vários títulos para a cidade, mas o reconhecimento nem sequer vem, ele não existe”. Rose não participou de diversas provas por não possuir dinheiro para a inscrição: ”É horrível quando você se prepara para um competição, com treinos diários rígidos, e não tem nem mesmo a chance de participar dela”.
“O MTB é uma das coisas que eu mais amo na vida, ultimamente não estou treinando por falta de tempo, de apoio, por não possuir uma bike boa, minha bike está com o quadro trincado há quase dois anos e tudo isso me deixa muito triste, pois um dos lugares que me sinto mais feliz é numa competição, sinto que posso ir além. O que mais me dói é que sei que sou capaz e que tenho potencial, se tivesse um auxílio financeiro, uma ajuda, iria muito mais longe.”
Bolsa atleta
O Ministério do Esporte possui um programa de bolsas para atletas que apresentam bons resultados em suas respectivas categorias, o Bolsa Atleta, decretado pela LEI N° 10.891, DE 9 DE JULHO DE 2004. De maneira geral, esse programa consiste numa ajuda mensal em dinheiro para atletas de variados esportes. Ele é dividido em categorias de bolsa (base, estudantil, nacional, internacional e olímpico/paraolímpico), possuindo como pré-requisito básico para todas as categorias, exceto para a categoria estudantil, a vinculação do atleta a uma entidade de prática desportiva (clube) e a filiação à Entidade de Administração de sua modalidade, tanto Estadual (Federação) como Nacional (Confederação). Os valores das bolsas também são variáveis conforme a sua respectiva categoria.
Atletas a partir de 14 anos que participaram do evento máximo da temporada nacional, sendo tais competições referendadas pela confederação da respectiva modalidade como principais eventos ou que integrem o ranking nacional da modalidade, obtendo, em qualquer caso, até a terceira colocação, e que continuem treinando para futuras competições oficiais nacionais têm o direito de pleitear a bolsa atleta na categoria nacional com valor mensal de R$ 925,00.
Rose considera que o programa do Ministério do Esporte beneficia somente aqueles atletas mais consagrados, aqueles que mais se destacam devido a um bom patrocínio. “Para eu ganhar um Campeonato Brasileiro [prova nacional mais importante do MTB] ou uma prova internacional, preciso de um bom patrocínio. Eu mal consigo correr no interior de São Paulo”. Considera que falte alguém que a indique, para conseguir um melhor patrocínio. Apesar de tantas dificuldades, Rose não desiste e é a metáfora da luta de quem se enche de sonhos e busca o milagre de trair a sina do que se mostra impossível, distraindo os apuros da vida com muita coragem.
A cultura brasileira promoveu o futebol a uma posição de destaque na vida dominical dos brasileiros. A mídia apropriou-se dessa paixão e redimensionou o esporte para um grande cenário milionário. O pano que separa o futebol do MTB, no caso brasileiro, vai além dos contrastes entre a bola e as rodas, entre o campo e as descidas radicais, mas procura estabelecer-se na visibilidade que cada um recebe. Em ambos, é possível notar os traçados de paixão, rivalidade, suor, frustração, mas no espetáculo tradicional o MTB não ocupa a cena, apenas observa da plateia. Lembrado em uma ou outra nota de edições especiais, o esporte radical sobre duas rodas é capaz de emocionar, é capaz de unir e de transformar: não há quem fique indiferente em meio à disputa de roda a roda na linha de chegada, nem mesmo quem se mostre imune às marcas gravadas na pele e no coração de cada competidor.