Dez anos após lançar seu best seller sobre as relações humanas durante a Segunda Guerra Mundial, John Boyne revisita o tema que lhe é tão caro em O Menino no Alto da Montanha (Seguinte, 2016), um livro que, além da linha histórica similar, também se assemelha à O Menino do Pijama Listrado no título e na capa.
Não posso falar por O Menino do Pijama Listrado, posto que nunca o li, mas posso falar que, ainda que ambos os livros de Boyne aqui abordados transitem no familiar território da II Grande Guerra, os romances seguem caminhos diferentes em suas histórias. Enquanto que, no primeiro, o autor explora uma amizade fictícia entre o filho de um oficial nazista e um menino judeu em Auschwitz, em O Menino no Alto da Montanha, a ideia é tratar da corrupção dos inocentes e da famigerada pergunta: O que você teria feito se estivesse nesse lugar?
O livro conta a trajetória do pequeno Pierrot Fischer, um menino de sete anos que, em 1936, vive em Paris com a mãe francesa e o pai alemão, bêbado e perturbado pelas suas experiências de soldado durante a primeira guerra; e que mantém uma amizade de toda a vida com o vizinho judeu surdo, Anshel Bronstein. Após seu pai ser atropelado por um trem e sua mãe morrer de tuberculose, Pierrot vai da casa de Madame Bronstein, mãe de Anshel, para um orfanato em Orleáns, até, finalmente, ser adotado por sua tia Beatrix, a quem nunca conhecera, e levado para morar na Áustria.
É chegando em Berghof, a casa na montanha de Adolf Hitler, na qual Beatrix trabalha como governanta, que a mudança na personalidade de Pierrot vai acontecendo. Inicialmente para que não corra perigos com o Führer, é instruído pela tia a adotar o nome de Pieter, evidenciando sua descendência alemã, e a nunca mais mencionar o amigo judeu que deixou para trás em Paris. Isolado no Obersalzberg, porém, e influenciado cada vez mais pelas ideias dos nazistas e pelo apreço que Hitler parece lhe oferecer, o que tanto lhe enche de importância, Pierrot aos poucos vira outra pessoa, que, corrompida pela possibilidade do poder, logo ingressa na Juventude Hitlerista e começa a ter que se decidir entre o que lhe era caro em sua antiga vida e o que lhe parece certo agora, em seu novo ambiente.
Toda a narrativa se constrói à partir da perspectiva de Pierrot: vemos o decorrer da II Guerra Mundial, das crescentes perseguições aos judeus, aos planos dos nazistas (e mesmo a ideia para as câmaras de gás nos campos de concentrações) e por fim, a derrota da Alemanha e morte de Hitler. E, à medida que o menino cresce e muda, também suas opiniões sobre o mundo em que se insere se transformam. Um dos maiores exemplos é sua postura em relação à Anshel: no começo, é categórico ao afirmar que jamais esquecerá o amigo, mas, após seu contato com o Führer, é incapaz até mesmo de se importar com as cartas do outro.
É com diálogos inteligentes e, muitas vezes, arrepiantes, que Boyne nos mostra o modo como Pierrot some, aos poucos, dentro da arrogância e auto importância de sua nova face alemã, Pieter, ao passo em que nos insere em uma contradição; ao mesmo tempo em que nos sentimos furiosos e não conseguimos aceitar a pessoa em quem Pierrot se transforma, porque percebemos que lhe falta o discernimento para decidir entre certo e errado e a inabilidade de ver sua situação de fora, também entendemos a razão para tal mudança. É, portanto, difícil nos situarmos: como a culpa de Pierrot se associa ao seu silêncio? Será que ele entende realmente o peso de suas ações? Até que ponto suas decisões são resultado do ambiente em que se encontra e que tanto o influencia? E mais importante: teríamos feito a mesma coisa em seu lugar?
Além disso, Boyne é excelente ao trazer um panorama histórico completo para embasar o romance. De famosos personagens do governo nazista ao sentimento de superioridade ariana que rondou a Alemanha à época, tudo está presente e descrito com precisão. É claro que ele conhece o tema e tem facilidade em se embrenhar pela época e pelas ocasiões da II Guerra.
O Menino no Alto da Montanha é um livro que investiga a inocência, a traição e a corrupção de maneira incrível, ao associá-la à um período histórico em que o fanatismo e o preconceito tornou estas características tão presentes. Boyne sabe interligar fatos e ficção de modo a criar uma narrativa muito bem pensada sobre o poder e as consequências das escolhas, observando de maneira diferente um regime brutal e complexo que nunca para de render frutos para a arte e a cultura.
Por Victória Martins
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