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O minimalismo de Eduardo Coutinho

por Paula Lepinski paulalepinski.usp@gmail.com Eduardo Coutinho marcou a história do cinema documentário brasileiro e internacional. Do Cinema Novo ao documentário na sua versão mais minimalista, ele teve uma trajetória repleta de inovações na arte de fazer cinema. Tornou-se um dos principais modelos para os estudantes de audiovisual, mostrando que fazer um filme não era uma …

O minimalismo de Eduardo Coutinho Leia mais »

por Paula Lepinski
paulalepinski.usp@gmail.com

Eduardo Coutinho marcou a história do cinema documentário brasileiro e internacional. Do Cinema Novo ao documentário na sua versão mais minimalista, ele teve uma trajetória repleta de inovações na arte de fazer cinema. Tornou-se um dos principais modelos para os estudantes de audiovisual, mostrando que fazer um filme não era uma simples questão de inspiração, mas de trabalhar duro, interagir com o mundo e refletir sobre ele.

Apesar de assumir em algumas entrevistas ser cinéfilo desde criança, Eduardo Coutinho não escolheu logo a carreira de cinema. Essa decisão veio quando tinha 21 anos e era estudante de

Direito. Desistiu da faculdade e trabalhou alguns anos como copidesque na Revista Visão antes de ir para Paris estudar direção e montagem no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (IDHEC) – viagem paga com dinheiro que ganhou de forma peculiar no programa Tudo ou Nada da TV Record, respondendo perguntas sobre Charles Chaplin.

Ao retornar em 1960, Eduardo Coutinho entrou em contato com os integrantes do Cinema Novo, movimento que nascia então no Brasil. O cineasta viu no Cinema Novo um jeito de fugir das produções caríssimas e dos clichês e alienações culturais das famosas chanchadas da época. Ainda que de forma marginal, era a chance de fazer filmes com temáticas atreladas à realidade do Brasil, exatamente o que ele queria.

Ao longo de toda a sua carreira, o amigo Leon Hirszman esteve presente. Foi com a sua ajuda que entrou em contato com o Centro Popular de Cultura (CPC), da UNE, e logo foi convidado a trabalhar na produção de quatro dos cinco filmes de Cinco Vezes Favela (Idem,1962) e a viajar com a caravana UNE – Volante para dirigir reportagens sobre a miséria no Brasil.

Foi nessa viagem que surgiu o embrião de uma das obras-primas do cineasta: Cabra Marcado para Morrer (1964 – 1984). A ideia surgiu quando a caravana UNE – Volante chegou à Paraíba, duas semanas após o assassinato do líder da liga camponesa de Sapé, João Pedro Teixeira. Cabra foi inicialmente idealizado por Coutinho como um longa-metragem de ficção sobre o líder, utilizando as locações e os participantes reais da história. A produção ficaria a cargo do CPC da UNE e pelo Movimento de Cultura Popular (MCP) de Pernambuco.

Elizabeth Teixeira e seus filhos, separados após o Golpe de 64

As gravações do filme, no entanto, nunca foram terminadas. Após alterações forçadas da locação para o engenho da Galileia, em Pernambuco, e do elenco, do qual do original só restou Elizabeth Teixeira (viúva de João Pedro), ocorreu o golpe militar de 64. O filme foi o único interrompido pelo golpe, o que o transformou numa espécie de lenda do cinema brasileiro. Alguns integrantes da equipe foram presos, e as filmagens, roteiro e equipamentos foram apreendidos. Por sorte, 40% do material rodado foi salvo por já ter sido enviado a um laboratório no Rio de Janeiro.

Após este episódio, Coutinho passou onze anos sendo exclusivamente cineasta de ficção e trabalhando com integrantes do Cinema Novo, principalmente com Leon Hirszman.  Nesse período, escreveu algumas críticas de cinema e participou dos roteiros de A Falecida (Idem, 1965), Garota de Ipanema (Idem, 1967), e Dona Flor e Seus Dois Maridos (Idem, 1976), segunda maior bilheteria do cinema nacional.  Também dirigiu três filmes: “O Pacto”, um dos três episódios de ABC do Amor (Idem, 1966); o longa O Homem que Comprou o Mundo (Idem, 1968); e Faustão (Idem, 1970), um dos quatro filmes que compunham o projeto da Saga Filmes em filmar o cangaço no Nordeste.

Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), filme co-roteirizado por Eduardo Coutinho

O primeiro contato do cineasta com documentários foi em 1975, ano em que entrou para o Globo Repórter. Coutinho dizia que o programa foi sua “escola de documentários”. Durante os nove anos que passou ali, ele aprendeu como se relacionar com o outro, a usar diferentes técnicas de filmagem e a fazer um documentário. Foi assim que descobriu o que queria fazer pelo resto da vida.

Nesses anos de Globo Repórter, Coutinho fez seis documentários de média-metragem: Seis Dias de Ouricuri e Superstição (Idem, 1976), O Pistoleiro de Serra Talhada (Idem, 1977), Theodorico, Imperador do Sertão (1978), Exu, uma Tragédia Sertaneja (Idem, 1979) e O Menino de Brodosqui (Idem, 1980).

Apesar das restrições ocasionadas pela rígida estética padrão do programa, o cineasta conseguiu imprimir traços particulares em alguns documentários, como os planos longos em Seis Dias de Ouricuri e em Theodorico, Imperador do Sertão.

Este último merece destaque: mostra a vida do major Theodorico Bezerra, um dos últimos coronéis do Rio Grande do Norte e único personagem da elite que Coutinho filmou. O incrível desse documentário é o próprio personagem, que reúne em si todas as características estereotipadas da elite rural brasileira: déspota, líder populista, machista, paternalista, elitista e por aí vai. Não julgá-lo é quase impossível. Mas Coutinho lida com Theodorico durante todas as cenas sem nunca demonstrar juízo de valor algum sobre o ponto de vista dele. Essa neutralidade é um traço de Coutinho que se repetirá em todos os seus documentários e é o que permite que o coronel desenvolva seu pensamento da forma como deseja. Se numa hora o público julga as falas e atitudes machistas de Theodorico, na outra sente pena e simpatiza com o coronel quando este chora sinceramente pela esposa doente.

Mas a obra de maior importância do cineasta seria lançada em 1984, dirigida e produzida por ele mesmo com o dinheiro que ganhava no Globo Repórter. Era Cabra Marcado pra Morrer (1964-1984), cujo projeto fora retomado no final da década de 70 após o início da abertura política. Coutinho partiu das imagens do filme de 1964 e decidiu criar um documentário no qual os camponeses que participaram do primeiro Cabra falariam o que lhes acontecera depois do golpe e contariam as histórias de João Pedro, de Sapé e de Galiléia. Dessa vez, não haveria roteiro, que para Coutinho desvirtuavam qualquer documentário.

Camponeses que atuaram no primeiro Cabra assistem às cenas do filme inacabado de 1964

Cabra Marcado para Morrer acabou se tornando um dos mais importantes filmes brasileiros segundo críticos de cinema, intelectuais e o próprio público da época. Com novas técnicas aplicadas ao documentário e a mistura de jornalismo, memória, história do Brasil, do cinema e do próprio filme, Cabra coloca lado a lado o cinema clássico e o cinema moderno, a ditadura militar e a abertura política, os camponeses na luta por Sapé e depois reclusos e separados de suas famílias por causa da ação militar. Sua força vem desse metacinema que o cineasta criou ao juntar passado e presente nos encontros com os camponeses do primeiro Cabra. Mas ele sempre reforçava a ideia de que tudo que filmava não era a realidade tal como ela é, mas sim o produto do encontro da câmera com seus personagens.

Depois do sucesso de Cabra Marcado para Morrer, Coutinho começou outro projeto: Santa Marta, Duas Semanas no Morro (Idem, 1987). Santa Marta mostra as dificuldades, as alegrias, os medos, a religiosidade, os amores, o preconceito e a pobreza dentro da favela numa época em que cenas do cotidiano nos morros eram mostradas apenas pela mídia sob um viés negativo.Dessa vez Coutinho adicionou dois novos aspectos que no futuro seriam característicos em seus documentários: a delimitação do espaço, o que ele chamava de “prisão do espaço”, e o curto tempo de filmagem.

Depois de Santa Marta, a carreira de Coutinho como documentarista passou por um período de instabilidade e incertezas.Volta Redonda, Memorial da Greve (1989), O Fio da Memória (1991), Os Romeiros do Padre Cícero (1994) e Boca de Lixo (1992) foram fruto desse momento, sendo o último o mais bem sucedido.

Voltando às premissas de Santa Marta, Boca de Lixo mostra o cotidiano das pessoas que vivem no lixão. É a estética da crueldade escancarada. Aos poucos o documentário humaniza os catadores e desconstrói a ideia de que a vida ali é sempre um horror, coisas que não apareciam e ainda não aparecem na televisão. O final do documentário, longe de ser feliz, mostra outro traço do cinema de Coutinho: a recusa em apontar saídas prêt-à-porter para o espectador suportar o que vê e sair do cinema com a consciência tranquila.

Após se confrontar com questões éticas e estéticas, Coutinho finalmente achou seu caminho em Santo Forte (idem, 1999). Segundo ele, esse filme foi o mais importante de sua carreira depois de Cabra. O cineasta queria fazer um documentário sobre religião, mas sem mostrar culto algum, apenas as pessoas falando. Seria somente o fundamental: o encontro, a fala e a transformação dos personagens. E foi isso que ele fez. O documentário é minimalista até no uso da câmera e não possui sons nem imagens adicionadas por simples estética. A grandeza do filme é construída unicamente pela fala das personagens, que mostram a multiplicidade das religiões no Brasil.

Dona Thereza, uma das personagens mais marcantes de Santo Forte (1999)

Depois disso, Coutinho quase não alterou seus procedimentos de filmagem. Continuou a mostrar o encontro da câmera com o presente denso de memórias e se manteve contra as ideias e imagens pré-concebidas pela mídia sobre aquilo que filmava: onde havia estereótipos, ele mostrava multiplicidade e diferença. Por não utilizar roteiros, a improvisação era essencial, e o inesperado dava força aos documentários. Para capturar esses momentos de acaso, prosseguiu utilizando os planos longos. Como seus documentários eram feitos com o outro, não sobre o outro, havia sempre a chance de fracasso. Por isso, apegou-se à “prisão de espaço”, que ironicamente dizia ser onde encontrava sua liberdade, e aos poucos deixou de lado elementos estéticos e ideológicos.

Eduardo Coutinho trabalhando em Jogo de Cena (2007)

Depois de Santo Forte, ainda fez Babilônia 2000 (Idem, 2000), no qual dividiu sua equipe para mostrar os preparativos de uma comunidade para a virada do século; filmou personalidades brilhantes em meio à realidade cinzenta do Edifício Master (Idem, 2002); mostrou, em Peões (2004), a vida atual dos trabalhadores da indústria metalúrgica do ABC que aderiram à greve de 1979; levantou questões existenciais em O Fim e o Princípio (2005); mostrou o caráter dualístico do documentário em Jogo de Cena (2007); confrontou novamente realidade x ficção em Moscou (2009); e filmou pessoas cantando músicas que marcaram suas vidas em Canções (2011). Através desses filmes, Coutinho se firmou como cineasta documentarista e mostrou a quem quisesse ver sua própria forma dedicada e apaixonada de fazer cinema.

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