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Festival Internacional de Documentários ‘É Tudo Verdade’ | “O Propagandista”: a ascensão e queda do “Czar do cinema”

Documentário narra a vida complexa de Jan Teunissen, um dos primeiros cineastas holandeses e importante diretor de propagandas nazistas
Por Lorenzo Souza (lorenzosouza@usp.br)

Ao tentar manter de pé o cinema holandês, Jan Teunissen tornou-se um dos homens mais poderosos da indústria cinematográfica do país. Para isso, ele se aliou ao Movimento Nacional Socialista da Holanda (NSB) e em pouco tempo virou Chefe do Departamento de Cinema do NSB, além de um nome importante para a Schutzstaffel (SS) holandesa. Após o fim da Segunda Guerra, ele foi julgado por seus crimes, mas as consequências geradas por todos os filmes em que trabalhou permaneceram. 

Essa é a história contada através de entrevistas em O Propagandista (The Propagandist, 2024), documentário dirigido por Luuk Bouwman e com participações importantes de Rolf Schuursma e Egbert Barten, com data de estreia para 3 de abril, durante o Festival Internacional de Documentários ‘È Tudo Verdade’. 

Pôster de divulgação do documentário, com frames do rosto de Jan Teunissen [Imagem: Divulgação/IDFA]

Narrado por meio de cortes de entrevistas, O Propagandista constrói a vida de seu personagem principal, Gerardus Johannes Teunissen, mesclando pontos de vista variados. O próprio Teunissen participa do documentário em forma de áudio. Antes de sua produção, o historiador Rolf Schuurma entrevistou o diretor holandês, procurando entender como sua mente funcionou durante aquele período e porque aceitou participar do NSB, filial do Partido Nazista da Alemanha. Além disso, o pesquisador de cinema holandês Egbert Barten também contribui com informações, falas e recortes de filmes dados a ele por diversos diretores e cameramans que trabalharam ao lado de Teunissen e, consequentemente, ao lado do nazismo durante a Segunda Guerra. 

A história de Teunissen, da forma que o documentário expõe, vira uma luta entre versões. O diretor narra a própria vida como se a propaganda imbuída em seus filmes não tivesse influenciado o pensamento holandês. Durante a maior parte das cenas, Schuurma entrevista Teunissen, procurando entender como sua vida o levou a participar tão intensamente das atividades do NSB. As respostas do diretor e as declarações oferecidas por inúmeros personagens deixam claro sua motivação: como dito por um dos entrevistados, “Jan Teunissen se aliou aos nazistas porque era obcecado por cinema”.

Gerardus Johannes Teunissen

O documentário utiliza uma boa parte de seu tempo de tela explicando as minúcias da vida de Jan Teunissen. Nascido em uma família com recursos — ele comprava rolos de filme 35mm com frequência nos anos 1930 — o diretor teve acesso ao cinema e cresceu apreciando esse formato artístico. Casou, teve filhos e passou grande parte da vida gravando-os com suas câmeras. 

Em dado momento, resolveu tornar o ato de gravar partes cotidianas da vida em profissão: Teunissen foi um dos primeiros cineastas holandeses e foi essencial para o pontapé do cinema na Holanda. Após a tomada do país pelos nazistas, não houve grande comoção por parte do diretor. De acordo com ele, os alemães eram “uma força ocupatória capaz de se lidar”. Focado em manter o cinema holandês de pé, procurou a melhor forma de angariar investimentos e ajuda para que essa arte não se perdesse. Foi com essa intenção que Jan entrou em contato com o NSB. Ali, achou uma forma de apoio para seu trabalho. 

Jan Teunissen em arquivos diversos da década de 30 [Imagem: Reprodução/YouTube/IDFA]

Em 1940 ele se filiou ao partido e, pouco tempo depois, tornou-se chefe do Departamento de Cinema da NSB. Alcançou um alto nível de influência na indústria cinematográfica holandesa e tornou-se figura obrigatória em qualquer filme que estivesse sendo produzido. 

Embate de verdades

O documentário se beneficia da construção narrativa que apresenta. Equilibrando as cenas de entrevistas dos historiadores com os depoimentos de Teunissen e outros cineastas, diretores, produtores e cameramans que trabalharam com ele naquele período, a história contada pelo “Czar dos filmes” é confrontada com a realidade dos fatos, que se sustenta por dados históricos, vídeos e falas dos mesmos indivíduos que trabalharam com Jan Teunissen durante a ocupação nazista na Holanda. O personagem principal dessa narrativa conta sua versão dos acontecimentos, que logo é desmentida por fatos e declarações contraditórias às do diretor.

Teunissen com as vestimentas do NSB [Imagem: Reprodução/YouTube/IDFA]

A todo momento, fica clara a hipocrisia de Teunissen e de outros indivíduos que trabalharam ao lado dos nazistas, seja nos atos sórdidos do Holocausto ou na criação de uma propaganda simples. A obra trabalha para ilustrar a história deste homem mas, ao mesmo tempo, procura questionar o quão distante ele realmente estava do nazismo. No início de sua carreira, chegou a dirigir um documentário sobre um bairro judeu de Amsterdã. Em contrapartida, quando já estava com sua influência na indústria cinematográfica holandesa, utilizou trechos deste mesmo documentário para produzir uma propaganda que contribuía para estereótipos contra a população judia. 

Narrativa por meio da imagem

Jan Teunissen foi, resumidamente, uma figura com muito poder no cenário holandês mas com pouca influência na imagem construída  do Partido Nazista. Ele inicia seus trabalhos com o NSB pela justificativa de manter de pé o cinema holandês. Porém, rapidamente seus preconceitos se alinharam aos ideais do partido, saindo de um homem que não enxergava problemas com o principal grupo alvo do nazismo — o povo judeu — para alguém que participou efetivamente de incontáveis filmes, documentários e propagandas que tinham como objetivo reforçar estereótipos e mudar a mente da população holandesa. 

Teunissen chegou a escrever uma carta direcionada ao Partido Nazista com os dizeres “já é hora de usarmos os filmes para espalhar nossas ideias [..] a propaganda deve começar sutil e crescer com força”. Havia se tornado um propagandista. A obra deixa isso claro ao confrontar os trechos em que o cineasta se vangloria de seu passado, sua influência e seus contatos, com as consequências de suas ações e o peso que seus filmes, documentários e propagandas tiveram.

Vale ressaltar a importância da imersão criada dentro da obra. Ao utilizar centenas de trechos de peças produzidas por Teunissen ou que ele tenha apenas trabalhado de alguma forma, o documentário constrói também uma linha de raciocínio imagética, permitindo que os espectadores entendam, tanto por meio do que é falado, quanto pelo que é visto, a ascensão e queda do “Czar dos filmes”. É quase impossível não notar o avanço técnico que Teunissen expressa cada vez que faz um novo filme, porém, fica também claro o avanço em suas ideologias. O grande acervo em vídeo dos trabalhos do cineasta mostram que, com o passar do tempo, ele sai de um diretor para um propagandista. E que cada vez mais estava confortável em concordar com o que promovia o Partido Nazista. 

O documentário carrega uma grande tarefa: ilustrar, em um tempo limitado (dura cerca de uma hora e meia), a vida, obra, importância mediana e influência talvez não tão imponente de uma figura que se auto intitulava “Czar dos filmes”, Jan Teunissen. Ao mesmo tempo, ele utiliza desse personagem para criticar indivíduos que não estiveram diretamente ligados à violência e horrores causados na Segunda Guerra, mas que, através de seus trabalhos em aliança com os nazistas, causaram tantos danos quanto. Dessa forma, o cineasta torna-se tanto personagem principal quanto um meio pelo qual a reflexão política é exposta.

Mesmo que a duração do documentário seja de uma hora e meia, ele consegue resgatar os espectadores do cansaço gerado pela enxurrada de informações da primeira hora ao começar a concluir a narrativa com o fim da vida do cineasta. Os últimos trinta minutos continuam recheados de informações mas, desta vez, vêm de maneira mais espaçada e com mais fôlego entre os absurdos que Jan Teunissen corroborou em seus anos finais como “figura importante” do NSB e do cinema holandês. 

O documentário traz a proposta de construir muitas narrativas mescladas em uma e, como um todo, consegue concatenar todos esses fios para que se amarrem com perfeição. A escolha de Jan Teunissen como personagem principal foi ideal para que a audiência entendesse o que O Propagandista se propõe a contar. 

Apesar de demonstrar durante a maior parte da obra a ideia de que as motivações de Teunissen foram mais guiadas pela arte do que pela suas ideologias (se é que houve uma), o próprio personagem se contradiz em sua história, deixando claro que já não era mais um cineasta, tinha se tornado um completo propagandista. No fim, ele é tão nazista quanto todos os outros membros do Partido eram. Em suas palavras: “All I did was fight for myself. All I wanted was a good life.” (‘Tudo que eu fiz foi lutar por mim mesmo. Tudo que eu queria era uma vida boa’, em tradução livre para o português). Ele não se arrependeu de nada feito na guerra. 

Esse filme fez parte do Festival Internacional de Documentários ‘É Tudo Verdade’. Para mais resenhas do festival, clique na tag no início do texto.

*Imagem de capa: Reprodução/Wikimedia Commons

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