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O retrato da opressão e resistência feminina no cinema

A representação de personagens femininas e questões de gênero numa indústria cinematográfica dominada por homens

A luta feminina por direitos e igualdade num mundo dominado pela autoridade masculina é muito longa, a desigualdade com que as mulheres ainda são tratadas é responsável por um grande impacto social. A inferioridade com que as mulheres são vistas socialmente é uma realidade e, por muito tempo, essa foi a maneira como elas foram representadas em formas culturais, como no cinema.

Por muitos anos, foi possível observar a preservação de um arquétipo feminino estereotipado em obras cinematográficas. Personagens femininas são representadas, na maioria das vezes, como pessoas dependentes e frequentemente objetificadas. Há tempos esses estereótipos são contestados, porém esse descontentamento com a irrealidade das representações de mulheres se mostra muito mais intenso nos últimos anos. 

Como consequência, surgiram mudanças na forma de enxergar o simbolismo e o impacto do cinema como meio cultural, dando origem a obras que procuram reverter os arquétipos femininos que podem ser prejudiciais. Alguns filmes procuram construir personagens femininas realistas e tentam expressar de maneira resoluta a experiência vivida pelas mulheres na sociedade, incluindo a opressão social, sexual e as lutas pessoais e coletivas em busca de igualdade.

 

A história da luta feminina por direitos 

Há 108 anos, no Reino Unido, a ativista inglesa Emily Davison deu um passo à frente e se pôs no caminho do cavalo do rei George V, na corrida que ocorria num hipódromo durante o Epsom Derby, um dos maiores eventos nacionais da época. Emily nunca se recuperou do atropelamento, morrendo quatro dias depois. Suas intenções não foram claras, mas ela se tornou um mártir para as sufragistas britânicas, que lutavam pelo direito ao voto feminino no Reino Unido. Em 1918, cinco anos após a morte de Emily, foi aprovada uma lei na Inglaterra que dava o direito de voto às mulheres acima de 30 anos que fossem donas de alguma propriedade. Apenas em 1928 as mulheres inglesas adquiriram o direito de votar aos 21 anos, assim como os homens.

No entanto a luta das sufragistas britânicas mostra apenas uma das faces da luta feminina por igualdade em uma nação. Durante toda a história é possível observar que mulheres em todos os lugares do mundo lutaram por e, algumas vezes, conquistaram direitos tentando alcançar um tratamento mais igualitário perante a sociedade patriarcal. No Brasil, a luta pelo sufrágio feminino teve início efetivo com Leolinda Daltro (1859-1935), que fundou o Partido Republicano Feminino na década de 1910.

Mas não se pode deixar de lado o fato de que, nos Estados Unidos, por exemplo, a luta pelo sufrágio feminino conquistou o direito em 1920, porém não incluía mulheres negras, indígenas ou latinas. O direito ao voto no país só foi garantido, primeiramente, a mulheres brancas, o que deixou explícita a maior profundidade das desigualdades quando se realizam cortes de raça, além de renda e escolaridade.

Ainda hoje são perpetuadas ideias desiguais em relação às mulheres em diversas esferas da sociedade. Apesar de toda a luta histórica, mulheres ainda são minoria na política, em cargos de poder e em diversas indústrias. Além disso, de modo rotineiro, é possível perceber a desigualdade ao se observar a maneira como mulheres são tratadas no ambiente de trabalho, as menores oportunidades de emprego e a disparidade salarial entre os gêneros, por exemplo.

O tratamento desigual e a opressão sofrida pelas mulheres podem ser observados de diversas formas, sendo uma delas através das lutas e manifestações emancipatórias já mencionadas. Mas, além disso, há também a tentativa de ilustrar a repressão por meio da arte, ou do cinema, como será tratado de maneira mais específica com a análise dos filmes a seguir.

 

Cinco Graças (Mustang, 2015)

 

Cinco meninas de cabelos castanhos se encaram no banco de trás de um carro.
Lale e suas irmãs vão até a cidade. [Imagem: Divulgação/Canal+]
Num vilarejo tradicional no litoral da Turquia, cinco irmãs são mantidas em casa à força pelo tio e pela avó após brincarem e interagirem com garotos na praia. Enquanto estão isoladas, os parentes organizam seus casamentos arranjados. Essa é a premissa de Cinco Graças (Mustang, 2015), dirigido por Deniz Gamze Ergüven. 

Com o episódio catártico que dá início ao roteiro, a liberdade de Lale (Güneş Şensoy) e suas quatro irmãs mais velhas é cada vez mais limitada. Seu comportamento é fortemente reprimido e considerado depravado por alguns habitantes do vilarejo e seus parentes, e então são proibidas de frequentar a escola. Os celulares e computadores são confiscados, e raros são os momentos em que podem sair de casa, sempre com roupas conservadoras costuradas especialmente para elas.

Uma criança de cabelos castanhos e com um manto sobre a cabeça encara a câmera
[Imagem: Divulgação/Wild Bunch]
Mulheres do vilarejo as ensinam a cozinhar, costurar e limpar, a fim de prepará-las para o matrimônio. As barreiras físicas tiveram início com portas sempre trancadas, posteriormente sendo promovidas a grades de segurança.

A relação entre a avó (Nihal Koldaş) e as netas é um ponto marcante do longa, pois, mesmo ao auxiliar a manutenção da restrição de liberdades das jovens, ela tenta, muitas vezes, atenuar a seriedade da situação e proteger as netas do pior, ainda que não possua tanto poder de decisão. Esse detalhe faz entender que a avó, de certa forma, entende seus sentimentos e já foi assim como elas. O longa captura de maneira poética e profunda, com a sutileza de sua fotografia, o espírito de liberdade e rebelião dessas jovens garotas, assim como sua inteligência e cumplicidade, numa situação em que seus ânimos são fortemente reprimidos.

 

E Buda Desabou de Vergonha (Buda as sharm foru rikht, 2007)

Dirigido pela iraniana Hana Makhmalbaf, o filme E Buda Desabou de Vergonha (Buda as sharm foru rikht, 2007) conta a trajetória de Baktay (Nikbakht Noruz), uma menina de seis anos que vive em Bamian, no Afeganistão. Após ouvir seu vizinho Abbas (Abbas Alijome) lendo e contando histórias, ela decide perseguir o objetivo de frequentar a escola.

Na cidade de Bamian, com as estátuas de Buda destruídas pelo talibã, Baktay escolhe começar comprando um caderno e um lápis para ir à escola, tarefa que já apresentou diversos obstáculos. Para conseguir o dinheiro, precisou vender ovos e pão na feira local. No fim, ela conseguiu apenas dinheiro para um caderno, uma vez que dois de seus ovos quebraram, e acaba decidindo usar o batom de sua mãe como um lápis, transformando-o num elemento subversivo. Ao chegar à escola que seu vizinho frequenta, o professor nega sua presença, dizendo que ali poderiam estudar apenas meninos, e indica o  caminho para a escola feminina.

Durante o percurso, Baktay se depara com um grupo de garotos que estão brincando, fingindo ser parte do talibã e lutando contra os americanos imaginários em frente à estátua de Buda em pedaços. Na sequência, eles impedem que a menina siga seu caminho, arrancam páginas de seu recém comprado caderno e reprovam seu batom, chamando-a de pecadora. Colocam, então, uma sacola de papel no rosto de Baktay, e numa súplica ela os implora que a deixem ir à escola. Numa sequência extremamente forte e angustiante, ela consegue sair da situação apenas ao se fingir de morta.

Num cenário marcado pela guerra, pobreza, machismo e alienação, Baktay luta por si mesma e pelos seus direitos. Mesmo com uma enorme simplicidade em termos de técnica, a narrativa do longa é marcante, honesta e impactante, carregando uma mensagem comovente e de profunda importância através da resistência de uma criança.

 

Cléo das 5 às 7 (Cleo de 5 a 7, 1962)

 

Em imagem em preto e branco, uma mulher com roupas pretas se encara no espelho
Cléo observando sua imagem refletida no espelho. [Imagem: Divulgação/Ciné Tamaris]
Em Cléo das 5 às 7 (Cleo de 5 a 7, 1962), dirigido por Agnès Varda, a narrativa é contada pelos olhos de Cléo (Corinne Marchand), uma mulher que anda pelas ruas de Paris enquanto espera ansiosamente o passar das horas até que possa receber os resultados de um exame médico, por meio do qual ela acredita fortemente que descobrirá o diagnóstico de um câncer. Mesmo com a ameaça vagarosa e prolongada do diagnóstico que está por vir, a personagem é percebida como uma jovem e bela cantora que ainda não experienciou a verdadeira fama, mas que, por dentro, está no processo de perceber sua própria mortalidade.

O filme detém a experiência de uma mulher como Cléo, que é tratada mais como um objeto que como uma pessoa pelos homens ao seu redor. Ela sempre se preocupa com sua imagem no espelho, para em seguida direcionar sua preocupação a como os outros a enxergam. 

Quando a protagonista se liberta da estreita visão que os outros têm dela, a condução do longa se transforma, assim como seu modo de experienciar a vida e as sensações é expandido. A maneira como Cléo vê as pessoas muda, criando espaço para que ela descubra quem realmente é além da objetificação, e para que veja o mundo como é, e não como um meio de consciência somente para com si mesma.

Com um roteiro que causa no espectador a sensação de passar cada minuto com a protagonista, Agnès Varda trata de maneira sensível e elucida o assunto da objetificação feminina e a falta de reconhecimento das mulheres pela sua real capacidade, limitando-as somente ao raso e afetuoso.

 

A representação feminina no cinema

Nos filmes analisados há uma representação excepcional de personagens femininas e da questão de gênero, mas essa não é a situação na maior parte das vezes. Como disse Lidia Zuin, jornalista, mestre em Semiótica e doutora em Artes Visuais pela Unicamp, numa entrevista para a Jornalismo Júnior, personagens femininas muitas vezes preenchem o arquétipo de mulher como mais sentimental, impulsiva e irracional. Mesmo que tenhamos mulheres como protagonistas, observa-se muitas vezes que elas dependem de sua relação e interação com personagens masculinos para que a trama se desenvolva, diz ela.

Lidia cita os filmes Mulher-Maravilha (Wonder Woman, 2017) e Interestelar (Interstellar, 2014) como exemplos desse arquétipo. Em Mulher-Maravilha, mesmo que a heroína já possua sua própria história e motivações, a trama insere um soldado que cai na ilha e por quem ela se apaixona, e é na base da força do amor que ela luta contra os inimigos. O mesmo acontece no longa Interestelar, no qual uma astronauta extremamente qualificada acaba comprometendo a missão porque decide salvar um homem que ela ama em outro planeta, e assim o amor se torna elemento central da narrativa. Conforme Lidia, esses padrões se tornam ainda mais evidentes em produções hollywoodianas.

Nos últimos anos, é possível ver uma melhora aparente na representação feminina no cinema. De acordo com Lidia Zuin, os arquétipos femininos se tornam cada vez mais inaceitáveis para o público, e a indústria segue essa demanda. Ela prossegue: “Fora isso, Hollywood aprendeu que fazer conteúdos direcionados à militância é lucrativo — o pinkwashing, causewashing da vida. Eles entenderam que não faz sentido só ficar vendendo cultura pop de super heróis para homens se também podem adquirir mais consumidores ao atingir as mulheres. Não acho que isso signifique que superamos o machismo e patriarcado, mas o capitalismo absorveu essa conscientização política e retornou como estratégia de mercado”. 

Porém, como diz Lidia, quando novas visões e representações são inseridas em meios culturais, mesmo que de forma artificial, elas contribuem para a normalização de um tema na sociedade. Dessa forma, a esperança é de que pautas sociais como racismo, machismo e homofobia não sejam apenas iscas para o mercado, mas assuntos que possam ser abordados para que mais pessoas se conscientizem e mudem suas posturas, diz ela.

 

As mulheres na indústria cinematográfica

No entanto por trás das câmeras a situação de desigualdade em relação às mulheres também não se mostra tão distante, nem ao menos discreta. Há uma grande dominância masculina de cargos como diretores e cinegrafistas, o que fez, por muito tempo, com que as mulheres ativas na indústria cinematográfica não tivessem poder o suficiente para demandar mudanças. 

Em imagem em preto e branco duas mulheres operam uma câmera cinematográfica coberta por um pano. Uma representação feminina no cinema.
Agnès Varda na direção de Uma Canta, a Outra Não (L’une chante, l’autre pas, 1977). [Imagem: Divulgação/Ciné-Tamaris]
A  luta pela igualdade feminina segue na indústria do cinema. Em 2017, o movimento Me Too, originalmente fundado em 2006, tornou-se muito popular entre atrizes de Hollywood. Elas trouxeram à luz suas experiências com o abuso sexual e o assédio na indústria, mesmo na mais alta e prestigiada categoria do indústria. 

O Oscar, maior premiação de cinema internacional, teve pela primeira vez duas mulheres — Chloé Zhao e Emerald Fennell — indicadas ao prêmio de Melhor Direção em 2021. Em 93 anos de premiação, apenas sete mulheres foram indicadas à categoria de Melhor Direção concedido pela academia, sendo que apenas duas delas levaram o prêmio. 

De acordo com o veículo Center for the Study of Women in Television and Film, a porcentagem de mulheres diretoras, roteiristas, produtoras e cinegrafistas nos 250 filmes mais populares de Hollywood mal aumentou nos últimos 20 anos: o estudo da Dra. Martha Lauzen indicou que, em 2020, 23% da equipe de funcionários era composta por mulheres, enquanto em 1998 os números indicavam 17%. 

O estudo citado, assim como inúmeros outros, expõem a realidade e indicam que ainda existe um abismo entre as mulheres, a igualdade e a liberdade de expressão artística plena e que, apesar das lentas mudanças que ocorrem nas indústrias, a desigualdade e o preconceito persistem. Até hoje mulheres são sub-representadas em meios culturais e são minoria em cargos de poder, demonstrando que ainda existe um enorme caminho a ser percorrido em direção a igualdade.

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