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Os anos 1960 e a busca por brasilidade

Como um contexto de ebulição política e cultural contribuiu nesta busca. E como a Ditadura Militar interrompeu esse processo

Há cem anos atrás, grupos de artistas, escritores e intelectuais se reuniram no que foi chamado, posteriormente, de Semana de Arte Moderna. Naquele momento, nascia um dos primeiros movimentos culturais organizados que tinha como objetivo central refletir o Brasil e seu povo. Brasileiros colonizados, influenciados pela metrópole, mas que vislumbravam um futuro pela frente. E que um dia pudessem caminhar com as próprias pernas. Considerando o contexto ultraconservador da Primeira República coronelista, o modernismo representou uma ruptura. Ruptura que acompanhou o momento político, de crise da política do café com leite.

Mas, não foi só nos anos 1920 que o momento político foi influenciado e influenciou os movimentos culturais de sua época. Em diversos momentos, a efervescência cultural e política trouxe grandes questionamentos sobre o que é o ser brasileiro e sobre a nossa própria história como país. Por exemplo, entre os anos de 1950 e 1960, em um contexto completamente diferente do da centenária Semana de Arte, criou-se um clima favorável que possibilitou o nascimento de diversos grupos artísticos voltados para discutir os problemas nacionais e atingir um jeito brasileiro de criar. 

Nessa época, como afirmou a professora Natália Batista, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, o Brasil podia vivenciar um momento de democracia, mesmo que limitada, e estabilidade política, o que é extremamente raro em sua história. Foi justamente isso que, segundo ela, permitiu que houvesse a discussão sobre as contradições do momento. “Havia uma grande euforia e expectativa de modernização do país e esses movimentos passaram a contestar o fato de que, ao mesmo tempo que havia uma grande evolução na área de infraestrutura, não havia um crescimento do bem estar da população, especialmente das mais pobres.”

Especialmente durante o governo de Juscelino Kubitschek, marcado pelo slogan “50 anos em cinco”, o país viveu um momento que ficou conhecido como os “anos dourados”, por conta da sensação de euforia que envolvia tanto a política como outras áreas. A nova capital Brasília foi construída, junto com grandes obras de infraestrutura pelo país todo, em meio ao crescimento acelerado da industrialização e urbanização, com maciços investimentos do capital estrangeiro. Além disso, o Brasil ainda foi campeão mundial pela primeira vez, em 1958, simbolizando o sentimento de esperança da época. Esperança de que o país superaria o seu “complexo de vira-lata” e poderia alcançar um futuro promissor. Porém, não foi isso que aconteceu. 

Trabalhadores que construíram a nova capital Brasília, os chamados Candangos, vieram de diferentes partes do Brasil, principalmente das regiões norte e nordeste [Imagem: Reprodução / Arquivo Público do DF]

No início dos anos 1960, a inflação acelerada começou a corroer a renda e o poder de compra dos trabalhadores. Isso tudo foi acompanhado pela volta da instabilidade política, com a renúncia de Jânio Quadros e pelo agravamento dos problemas sociais, gerados pelo processo desordenado de urbanização. Em 1950, apenas 36% da população era urbana, saltando para 56% em 1970, segundo dados do IBGE. Esses foram os vinte anos com a maior taxa de crescimento proporcional. 

Vários eram os motivos para isso, passando pela acelerada industrialização e pelo êxodo rural causado pela mecanização nas lavouras e pelas secas no sertão nordestino. Natália Batista diz que esse processo ajudou a expor uma outra face da modernização, que não necessariamente era benéfica para todos. É nesse contexto que surgem grupos e espetáculos preocupados com esse cenário. A historiadora cita como um marco a peça “Eles Não Usam Black Tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, produzida pelo Teatro de Arena, que representava tudo o que já vinha ocorrendo nos campos e nas cidades, com uma grande sindicalização dos trabalhadores. 

No cinema muitas obras também passaram a refletir esse momento de contestação. Filmes como “Cinco Vezes Favelas”, coproduzido pelo Centro Popular de Cultura, da recém criada União Nacional dos Estudantes, mostravam a realidade nas favelas brasileiras, que cresciam cada vez mais com a acelerada urbanização. E como “O Pagador de Promessas”, que criticava aspectos da Igreja Católica na época, e Vidas Secas, que exibia a grave crise vivida pelo semiárido nordestino. Obras pioneiras do Cinema Novo, movimento que buscava uma maior proximidade e dinamicidade da câmera com o cotidiano da população brasileira. 

Cena de “Couro de Gato”, de Joaquim Pedro de Andrade, uma das histórias do filme “Cinco Vezes Favela”. [Imagem: Reprodução/Youtube]

Esse processo de revoltas só veio crescendo até a iminência do golpe militar de 1964, quando uma grave crise econômica corroía a renda dos trabalhadores e gerou diversos motins. Inclusive, o acontecimento marcante que serviu como gota d ‘água para a tomada de poder pelos militares foi a Revolta dos Marinheiros, que se uniram aos trabalhadores civis em resposta à má condição de vida. Para Natália, o Brasil vivia um período de grande efervescência semelhante ao momento pré golpe no Chile, ocorrido dez anos depois: “Com a diferença de que o Jango estava longe de ser um comunista, como Allende era, as propostas de reformas de base do seu governo eram consideradas muito ousadas naquela época, e acho que ainda hoje também, o que gerou um ambiente de grande debate.”

Esse contexto maior  reverberou na área cultural, no teatro, no cinema e na música, que reinventou o jeito tradicional de produzir, e buscou estabelecer uma maior proximidade com o público, com a realidade social e com o dia a dia brasileiro, sempre com jovens à frente. Segundo Natália, esses grupos nasceram da contestação às contradições da “modernização desigual” do período democrático que o Brasil vivia, mas tiveram de lidar com o grande “balde de água fria” que foi o golpe, passando a lutar pela própria sobrevivência até não conseguir mais. 

Capa do jornal A Última Hora, um dos únicos que não apoiou publicamente o golpe militar, expondo a Revolta dos Marinheiros, que serviu como estopim para a tomada de poder pelos militares. Imagem: [Imagem: Reprodução /Arquivo Público do Estado de São Paulo]

Natália cita que, conforme o regime endurecia e a repressão aumentava, as obras foram incorporando e refletindo sobre essa realidade. “Por exemplo, dentro da filmografia de Glauber Rocha, há uma diferença entre obras como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) para Terra em Transe (1967). No Terra em Transe já um caráter muito mais pessimista, não havia mais aquela esperança de transformação. A preocupação era expor as relações de poder, a manipulação do jogo político, e termina com quase uma previsão da luta armada que viria em seguida.” Para a historiadora, nessa fase, ainda havia uma grande preocupação de capturar a identidade nacional, mas sem idealizações, representando, por exemplo, a corrupção que sempre esteve presente desde a nossa colonização. 

As diferenças entre os movimentos culturais e suas relações com o jogo político da época

Segundo a professora Natália, não só o ambiente político refletia no que era exposto nas produções artísticas, como também os diferentes grupos e vertentes que estavam envolvidos nesse processo. O Centro Popular de Cultura, que daria origem ao Teatro Opinião, no Rio de Janeiro, tinha uma grande preocupação em realizar caravanas pelo país, principalmente em comunidades pobres, para realizar projetos dramatúrgicos voltados para a crítica social. Após o golpe, ações como essas se tornaram impossíveis devido à repressão. O Opinião nasceu justamente dessa volta aos palcos fechados, mais voltados à classe média. 

Para a historiadora, a maior parte dos organizadores desse grupo carioca eram militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e por isso a maior parte das apresentações do Show Opinião representavam propostas defendidas pelo partido na época. “O PCB, após o golpe, defendia a conciliação de classes (a chamada frente ampla) contra a ditadura. E isso era refletido em cena: colocavam em cena, por exemplo, um operário, um trabalhador rural e uma cantora mais da elite, como a Nara Leão”.  Na cena política, por sua vez, a militância partidária fazia uma aliança com históricos inimigos políticos, como Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda.

Enquanto isso, outros grupos políticos rejeitavam essa política do partido, considerando que ela não daria frutos. “Eu acho que o tropicalismo, que estava nascendo, assim como o Teatro Oficina tinham muito mais um caráter de não fazer aliança com ninguém, mas sim contestar quem quer que fosse. O Roda Viva, por exemplo, peça censurada em 1968, era uma peça com uma proposta ousada e uma crítica frontal à Indústria Cultural, ao mercado e ao sistema. Eu acredito que o Zé Celso – um dos criadores do Oficina – não se reivindica um anarquista. Mas a prática desses grupos tinha um espírito muito anarquista.”, diz Natália. 

Peça Arena Conta Bolívar, encenada durante a turnê do grupo no México, em 1970. [Imagem: Derly Marques / Reprodução / Itaú Cultural]

Já o Teatro de Arena, de São Paulo, segundo a historiadora, não estava tão próximo do Partido Comuista, mas se encontrava em um campo mais nacional desenvolvimentista. “Eles tinham uma preocupação muito grande em tratar de temas e de heróis nacionais. Por exemplo, os espetáculos Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes usam ícones históricos do Brasil para tratar de uma resistência contra a opressão estrangeira.”

Ao descrever esses aspectos, Natália frisa que não se pode definir uma geração e uma época como se fosse algo homogêneo. Para ela, os diferentes grupos culturais e políticos são formados por um quebra cabeça com diferentes interesses e propostas. Ela cita, por exemplo, a Jovem Guarda, que fazia muito sucesso naquela época, sem uma preocupação de contestação política, mas coexistiam com os outros grupos e fazia muito sucesso entre a juventude. 

Documento que censurou a peça Roda Viva, escrita por Chico Buarque, em 1968 e que foi encenada pelo Oficina. O censor chamou o autor do espetáculo de “débil mental”, por ferir “de modo contundente todos os princípios de moral e religião herdados de nossos antepassados e se utilizar de expressões pornográficas”. [Imagem: Arquivo Nacional / Divisão de Censura de Diversões Públicas]

A necessidade de pensar o Brasil

Segundo a professora Natália, o Brasil do início dos anos 1960 vivia um período de grande expectativa: “O nosso país vive preso em eternos ciclos de um “agora vai” que nunca se concretiza. Naquele momento, a partir dessa esperança de transformação, os artistas começaram a perceber que aqueles modelos europeus tradicionais não dialogavam em nada com a nossa realidade. E passaram a buscar a sua própria identidade.” Nos teatros, por exemplo, buscava-se uma linguagem menos formal e mais próxima do jeito cotidiano de falar.

Para ela, porém, a ditadura veio para atrasar esse processo de construção de identidade. “Muitas pessoas falam que se não fosse esse período autoritário não teríamos a produção de obras tão boas como a que tivemos naquela época. Mas eu acho que teríamos obras muito melhores. Porque nós teríamos avançado em um debate, que foi interditado pelo medo da repressão”. Segundo a historiadora esse seria o motivo pelo qual muitos movimentos, que podiam circular por lugares como Europa e Estados Unidos, tivessem dificuldade ou demorassem mais para chegar ao Brasil.

Ela cita, por exemplo, a contracultura que passou a ser difundida a partir de 1968. “Enquanto na Universidade de Paris, a demanda dos estudantes envolvia poder circular nos dormitórios de homens e mulheres, aqui nós tínhamos que lutar pelo básico, pelo fim da ditadura. E se não bastasse tudo isso, o desfecho do nosso 68 foi o AI-5″. Após esse decreto que instituiu o Ato Institucional mais violento até então, que afastava qualquer possibilidade de abertura do regime, os grupos culturais que afloraram nos anos 1960 foram se dissipando, até não existir mais. 

Protesto de artistas contra a censura e a Ditadura Militar em 1968 [Imagem: Reprodução / Wikimedia Commons]

O movimento que ganhou importância imensa nesse contexto foi o Tropicalismo. Para Natália, a estética tropicalista refletia muito bem o ambiente ou do exílio ou da luta armada que marcou os chamados Anos de Chumbo, quando qualquer possibilidade de vencer a ditadura pelos meios institucionais se esgotou. E também era a que mais remete à Semana de Arte Moderna. 

“Eu vejo uma forte ligação entre a proposta tropicalista e o Manifesto Antropofágico. A ideia de engolir o colonizador, se reconhecendo como colonizado para construir sua identidade”, diz a historiadora. Diferentemente de outros grupos do início dos anos 1960, mais radicais em seu nacionalismo, como era o caso dos que rejeitavam a guitarra elétrica por ser uma influência estrangeira, os tropicalistas a aceitavam: “chegou-se a um entendimento que tudo que nós, como povos colonizados, tínhamos veio de fora, e não teríamos como fugir disso”. Só nos restaria então usar essas influências a nosso favor. 

Entre a Semana de Arte Moderna e os anos da Ditadura Militar, passaram-se mais de quarenta anos. Segundo Natália, é preciso considerar o contexto da época para entender porque, para muitos, os modernistas dos anos 1920 tinham propostas mais elitizadas, considerando que o Brasil ainda estava em plena República Coronelista. “Nos anos 1960, já havia uma preocupação maior de trazer a população para dentro de cena e fazer com que ela participasse mais ativamente da arte.”

Porém, em ambas as épocas, houve uma tentativa de nos reconhecer como brasileiros, em interpretações diversas que fugiam do “Ordem e Progresso” propagados pelos discursos oficiais dos governos. Isso com a ajuda de pessoas que de certa forma participaram da guerrilha contra a ditadura, só que tendo a arte como arma. Foram momentos de ebulição política e cultural, que ajudaram na construção da nossa identidade, um processo que ainda não terminou.

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