Jornalismo Júnior

logo da Jornalismo Júnior
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

A vida de um ‘homem sem talento’

Completando 85 anos em 2022, Yoshiharu Tsuge é um dos maiores nomes do gekigá

O dia 30 de outubro de 1937 marca o nascimento do quadrinista Yoshiharu Tsuge. Natural de Katsushika, ao leste de Tóquio, criou obras de profunda relevância na consolidação da indústria dos quadrinhos no Japão, percorrendo importantes fases desse processo. 

Tsuge começou a trabalhar com quadrinhos em 1954, com apenas 17 anos de idade. Seus primeiros trabalhos circularam principalmente nas livrarias de empréstimo, locais onde era possível alugar quadrinhos por um valor mais baixo do que o preço de tabela da época.

Desde o início, o foco de Tsuge esteve em narrativas sombrias e pouco otimistas, que não hesitavam em escancarar a miséria e decadência humanas. Em Nejishiki (1968), uma de suas obras mais aclamadas, o autor se utiliza do surrealismo para criar uma história baseada em um sonho que teve: um garoto sai do mar e alega que foi ferido por uma água viva; então, começa a andar à procura de um médico que possa atendê-lo. 

Nessa trajetória, a criança tem de lidar com a apreensão de não encontrar uma solução e de ter que depender de desconhecidos para saber se irá sobreviver. Ao longo da narrativa, coisas sem sentido cruzam o caminho do garoto – um traço típico da liberdade “desgovernada” do surrealismo. 

Esse mangá foi um dos pioneiros em explorar a narrativa da dor humana e da incerteza em suas formas mais puras. O impacto causado por Nejishiki em suas 23 páginas marcou para sempre o gekigá

Página 1 de Nejishiki. Em inglês: “Eu tinha certeza de que não teria nenhuma água-viva aqui. Eu vim à praia nadar e então fui mordido no braço por uma água-viva.” [Reprodução: Yoshiharu Tsuge] 

 

O gekigá e a revista Garo 

O nome gekigá representa as narrativas mais maduras nas HQs, que buscavam se diferenciar dos quadrinhos infantis e atingir o público adulto. Esse gênero, que influencia visual e enredo, foi essencial para traduzir um novo modo de contar a história após a Segunda Guerra Mundial: no gekigá, há espaço para abordar o fracasso, o sofrimento e a derrota, de modo a traduzir o sentimento quase que generalizado no país após tantas tragédias associadas ao conflito. 

Tal estilo foi a principal escolha de Tsuge durante a maior parte de sua carreira, marcando seus trabalhos entre a década de 1950 e o início da década de 1960. Em 1964, Tsuge entra para a revista Garo, uma publicação independente de mangás, considerada um espaço de experimentação, que fugia aos padrões do mercado editorial e concedia total liberdade temática e criativa aos seus autores. Nessa revista de vanguarda, além de Nejishiki (1968), Tsuge publicou também Mokkiriya no Shōjo (1968) e Yanagiya Shujin (1970)

Capa da Garo em agosto de 1968, ano da publicação de Nejishiki. [Imagem/Reprodução: The Internet Archive]

O restante de sua vida é de difícil acesso, visto que o mangaká – nomenclatura dada aos autores de mangás – escolheu viver em reclusão após se afastar do mercado dos quadrinhos, nos anos 1980. Ainda assim, suas criações são lembradas por leitores e críticos de todo o mundo. Em 2020, por exemplo, o autor foi o grande homenageado do Festival de Angoulême, uma espécie de bienal de quadrinhos, com premiações em diversas categorias. A exposição do autor levou o nome de Yoshiharu Tsuge, être sans exister (do francês, “viver sem existir”). 

Tsuge folheando a edição francesa de um de seus mangás. [Imagem: Divulgação/Twitter @bdangouleme]

O universo daquele que pode ser considerado um gênio na arte de fazer mangás não se encerra após o seu afastamento da carreira de quadrinista. É possível conhecer um pouco mais de Yoshiharu Tsuge por meio de uma importante obra publicada entre 1985 e 1986: O homem sem talento (Muno no Hito, 1985), que é também seu primeiro trabalho trazido ao Brasil.  

Arte, moral e existência em conflito 

O homem sem talento (Editora Veneta, 2019) é símbolo do pioneirismo de Tsuge no gênero de quadrinhos watakushi, “os quadrinhos do eu”, de caráter autobiográfico. Nesse enredo, acompanhamos a vida do ex-mangaká Sukezo Sukegawa, que, assim como Tsuge, resolve abandonar seu trabalho devido a uma série de frustrações com o mercado editorial e com a recepção de sua própria produção artística. 

Na história, o mundo contemporâneo parece ser completamente frustrante. Esse é o motivo pelo qual, possivelmente, tudo aconteça em locais ermos e completamente isolados da civilização urbana: florestas desertas, pousadas sem clientes, negócios falidos em diversas partes de um bairro. Naquele espaço-tempo, bastaria sucumbir a uma vida melancólica ou tentar escapar dela das maneiras que fossem possíveis. 

O que o protagonista Sukegawa faz para ganhar a vida após abandonar os quadrinhos é trabalhar com o comércio de máquinas fotográficas e posteriormente, de pedras. Suiseki é uma tradição japonesa de adquirir pedras que foram esculpidas pela natureza, sem qualquer interferência humana. Para o vendedor, as pedras que encontra no rio próximo à sua residência possuem um valor inestimável. No entanto, ele se frustra ao perceber que a sua potencial clientela não as enxerga da mesma forma. 

Exemplo de suiseki, nomeada de “Cape San Martin” [Imagem/Reprodução: Wikimedia Commons]

Em determinado ponto da história, um personagem envolvido no negócio das pedras diz que “não há como a mão humana superar a força da natureza”, sendo essa a frase que resume a principal mensagem que o mangá deseja passar sobre o homem frente ao seu destino. Sendo a natureza a força do trabalho, quando ela acaba ou se encontra em conflito, o ser humano se reduz a nada. No último capítulo do mangá, intitulado Desaparecer, há uma clara exemplificação disso. 

Assim, na busca por uma renda que sustente o homem, sua esposa e filho, além de lhe dar algum prazer, o leitor presencia uma lenta falência da família e das relações sociais de modo geral, atravessadas por uma dimensão utilitarista da existência. 

A relação familiar é uma das mais afetadas pelas escolhas do protagonista. Ao cruzar com Sukegawa na rua, sua esposa o ignora.  [Imagem: Divulgação/Editora Veneta]

O fracasso de Sukegawa também é evidenciado pela forma como a arte é tratada na história. Na visão da esposa do protagonista, tomada pela miséria, o quadrinho não é arte à medida que o lucro como objetivo final sequestra a liberdade de criação do artista. Em outras cenas, nos deparamos com a ideia de que o valor artístico está naquilo que é inacessível ou escasso.

Portanto, trabalhar com quadrinhos, o que poderia levar àquela família alguma estabilidade financeira, não dá motivação alguma ao protagonista. Nesse ponto, o mangá mostra que existe uma distância quase que irreparável entre a moral do personagem e aquilo que deve ser feito pela sua sobrevivência. 

Dessa forma, toda a narrativa se curva ao ritmo da vida narrada na história: nos quadros, existem frases soltas, pensamentos sem conclusão ou sem ligação com o que foi dito anteriormente. É uma característica que se relaciona com a maneira como Sukegawa olha a vida: algo a apenas deixar passar, sem dar a ela alguma profundidade, essa que em tantas situações anteriores o frustrou e o impediu de viver a vida de acordo com o que ele acreditava. 

O homem sem talento é uma obra cujo fim não está na página 222. Suas camadas e nuances continuarão reverberando em experiências com demais obras que tratam do ser humano e de seu lugar no mundo. Foi uma excelente escolha para abrir as portas ao gekigá de Tsuge no Brasil.

1 comentário em “A vida de um ‘homem sem talento’”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima