Felipe Maia
Hendrix entra com alguns acordes encorpados. Baixo e bateria o acompanham firme. A cozinha segue seu passo sisudo enquanto angústia e entusiasmo pulsam nos dedos do mameluco estadunidense. A voz melodicamente postada entoa versos como “Não há razão para empolgação, disse carinhosamente o ladrão, existem muitos entre nós que pensam que a vida não passa de uma piada.” Outra voz, nada melódica, afirma que a vida realmente não passa de uma piada. Outrém roucamente diz que entre nós não há senão pessoas corrompidas e pervertidas. Ora longe, ora próximo e sob óticas singulares eles enxergam os bueiros e sarjetas da sociedade em plena Guerra Fria. As falas são de Comediante e Rorschach, personagens de Watchmen — de Moore, Gibbons e agora Snyder — no topo da Watchtower — de Jimi e Dylan.
A canção é parte da trilha sonora do filme, mas lhe cabe perfeitamente como leit-motif. Pois sim, foi filmado o até então infilmável Watchmen, a graphic novel de Alan Moore e Dave Gibbons. Todos mordam a língua, os dedos e a descrença: o filme é fantástico. E quem disser o contrário quer poupar estrelinhas nas colunas só por não dar o braço a torcer. Uma das estréias mais aguardadas do ano vem às telas com duas horas e quarenta minutos de um enredo não óbvio ululante, planos ampliados dos quadrinhos e toda a emoção que os ene quadros por segundo podem proporcionar. Do papel à película, o espartano diretor Zack Snyder, que pensou: se eu não fizer isso, alguém o fará; e se esse alguém fizer bobagem, a culpa será minha.
O mérito pela não bobagem é de Snyder, da equipe, da tecnologia e da cifras a seu lado. Botar a HQ em frames era o céu ou o inferno. Transpor grandes obras a outros meios sempre foi e será caminhar numa linha tênue. E Watchmen é uma obra-prima da nona arte. Super-heróis de estrutura material igual à de humanos — como diria Dr. Manhattan, o único com super poderes da trupe — e de densidades psicológicas trazidos à tona num mundo que teme a iminente 3ª Guerra Mundial. Um emaranhado envolvente e tenso, típico de Alan Moore (V for Vendetta, The League of Extraordinary Gentlemen), e cujas imagens quebraram os padrões dos quadrinhos à época: planos instáveis, linguagem própria, cartela de cores incomum e traços expressivos aplicados no papel pelo artista Dave Gibbons.
A reprodução extremamente fiel de alguns dos quadros de Gibbons na película impressiona quem vê o filme e já lera a graphic novel. Embora muitas cores não atinjam os mesmos espectros na telona — talvez por essa abarcar inúmeros canais além do CMYK —, o contraste da fotografia e a infinidade dos detalhes logo fazem rememorar em qual página estava tal cena. Também faz surgir a pergunta: como conseguiram “copiar” tão bem? Palmas para direção de arte e efeitos especiais que não deixaram escapar, entre tantos bits e Croma-Keys, detalhes e a aspereza da realidade de Moore e Gibbons.
A riqueza amiúde do filme pede pra que ele seja assistido mais de uma vez. São inúmeras referências, pequenezas, crossovers — os créditos finais não me deixam mentir. De Warhol a Bowie, de Rambo a O Dia em que a Terra Parou: é um paraíso para os geeks (nerds pós-modernos). A montagem não tem nada de audacioso, mas se encaixa muito bem para quem já leu os quadrinhos. Omite algumas passagens e pode ser que confunda quem não os conhece. Entretanto, reitera o pedido de “assista de novo”.
A quem tiver oportunidade, não deixe igualmente de ler a agaquê. Os fast-slow-motions, marca registrada de Zack Snyder, dão o tom dinâmico da leitura como só os quadrinhos possuem. As cenas de luta não sofrem da tremedeira de câmera e a violência é sanguinariamente glamourosa, como só Tarantino fizera até então. Snyder também fez escola para criar trilhas sonoras de tom pop e referencial. Para depois de Watchmen, enfim, um trabalho heróico. Será tarefa hercúlea criar com tamanha grandiosidade uma fita inspirada em super-heróis. O êxodo bem-sucedido da DC e da Marvel para as salas de cinema pode ter chegado ao ápice, ao topo, à Watchtower. A crise bate à porta do quarto, e se não há muito do que rir nas ruas, o cinema faz as vezes. Paralelamente, ninguém mais acredita no pacote “mocinho-mata-vilão-ganha-mocinha” — Batman, Cavaleiro das Trevas não me deixa mentir. Não estamos muito distantes de Watchmen. Dylan anuncia nos cruciais primeiros cinco minutos: os tempos são outros, a apreensão é a mesma; os motivos são outros, as pessoas são as mesmas. Não haverá outro Hendrix, outro Dylan, outro Moore, outro Gibbons. Não haverá outro Watchmen.