A Copa do Mundo de 2022 tem data para começar daqui a menos de um mês. Ela acontecerá no Catar, país localizado no Golfo Pérsico e que ganhou destaque no cenário internacional após ganhar a candidatura para sediar o maior evento futebolístico mundial. Com o início dos preparativos para a competição, milhares de denúncias sobre violações de direitos humanos e trabalhistas surgiram, principalmente com relação aos operários estrangeiros que trabalharam na construção de estruturas da Copa.
Acusações sobre leis nacionais abusivas que vão contra os direitos das mulheres e dos LGBTQIA+ também foram levantadas pela imprensa ocidental, reportando abusos do governo catari para com tais grupos. Organizações, como a Humans Rights Watch, divulgaram múltiplas pesquisas e notas de repúdio, pressionando a comunidade internacional e cobrando respostas e medidas do governo do Qatar.
Com tantas informações e notícias sobre variados assuntos e envolvendo diferentes personagens, é preciso olhar para além dos jogos e nações presentes na Copa e entender os mecanismos por trás do evento.
Violações trabalhistas
Milhares de trabalhadores vindos de diferentes países, principalmente do oeste asiático e do norte africano, viajaram ao Catar com promessas de trabalho nas construções de estádios e infraestrutura para a Copa do Mundo. Ao chegarem, o cenário foi bem diferente do esperado: passaportes confiscados, alojamentos precários e superlotados, regimes de trabalho excessivos e que não protegem das temperaturas que chegam a 50ºC no verão.
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De acordo com o jornal britânico The Guardian, até fevereiro de 2021, 6,5 mil indianos, paquistaneses, nepaleses, bengalês e cingaleses haviam morrido devido às péssimas condições de trabalho oferecidas. Esse número, segundo a Organização Mundial do Trabalho (OIT), é subnotificado pelo governo do Catar, que não registra mortes súbitas entre os trabalhadores.
São estipuladas também 37,6 mil pessoas feridas, vítimas de acidentes como quedas de lugares altos, trânsito e objetos caídos – fora as altas temperaturas características do local. Além de todos os perigos físicos enfrentados pelos operários, esses também lidam com árduas batalhas para receberseus salários. A empresa Bin Omran Trading and Contracting (BOTC), que opera diversas construções da Copa, é acusada pela Humans Rights Watch de não pagar os salários da mão de obra. De acordo com entrevistas com ex-empregados da companhia, a BOTC recorrentemente atrasa o pagamento de seus trabalhadores, os deixando de 3 a 4 meses sem nenhum ganho.
Quando tentam protestar e exigir melhores condições, muitos são deportados do país ou até mesmo presos. Em uma manifestação realizada no dia 14 de agosto na capital Doha, 60 pessoas que bloqueavam a entrada da empresa Al Bandary foram oprimidas pelo governo e mandadas de volta para seus países de origem. Em nota, as autoridades cataris confirmaram as prisões, mas se recusaram a dizer se eles foram expulsos. Essa posição de negação se repete nas declarações dadas em resposta às denúncias de exploração trabalhista. O governo do Catar contesta o número de mortos e ressalta as mudanças promovidas nas leis trabalhistas, como o estabelecimento de salário mínimo e a possibilidade de os trabalhadores se demitirem – o que antes só era possível com a autorização prévia do patrão.
A Fifa detém uma posição parecida com o país sede e nega o número de mortes, relutando a aplicar qualquer tipo de punição ao Catar. Após ignorar severas denúncias, um grupo formado pela Anistia Internacional, Human Rights Watch, Football Supporters Europe e a Federação Internacional de Trabalhadores buscaram a Fifa com o objetivo de solicitar o pagamento de uma indenização de 440 milhões de dólares para um grupo de trabalhadores imigrantes que foram afetados pela negligência da federação.
Em resposta, o presidente da entidade máxima do futebol, Gianni Infantino, afirmou que a produção de empregos gerada pela Copa é extremamente benéfica “Quando você dá um emprego para alguém, mesmo em condições difíceis, você está dando dignidade e orgulho para aquela pessoa”, afirmou.
Em resposta à falta de sanções ou penalidades ao Catar, a seleção da Dinamarca anunciou algumas mudanças em seu uniforme. Os jogadores usarão camisetas com o brasão do país completamente pintado e patrocinadores não receberão o clássico destaque que geralmente recebem no design. “Não queremos ficar visíveis durante um torneio que custou milhares de vidas”, disse a empresa Hummel, responsável pela confecção do uniforme.
Corrupção na Fifa
Investigações realizadas pelo jornal britânico The Sunday Times revelaram o pagamento de uma quantia bilionária à Fifa pelo governo do Catar. O valor de 3,3 bilhões de reais foi responsável por comprar votos de dirigentes do futebol, para que votassem no país como sede da Copa de 2022. O esquema foi articulado por meio da rede de televisão Al Jazeera, administrada pelo governo catari. A emissora teria repassado o dinheiro à entidade 21 dias antes da divulgação dos eleitos, em depósitos periódicos e com direito até a uma bonificação à própria entidade esportiva. Os repasses foram feitos durante a gestão de Joseph Blatter, que se encontra banido do futebol após ter sido indiciado por corrupção envolvendo o ex-presidente da Uefa.
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Tais acusações fomentam o debate por trás do escândalo “Fifagate”, exposto pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos no ano de 2015. Neste caso, três brasileiros chegaram a ser apontados como receptores de quantias ilícitas: o ex-presidente da CBF, José Maria Marin, seu sucessor, Marco Polo Del Nero, e o antecessor, Ricardo Teixeira. É válido ressaltar que todos renunciaram a seus cargos após múltiplas acusações de corrupção em suas gestões.
Nessa época já haviam sido levantadas questões com relação a transparência do processo de escolha do país-sede da Copa. Três dirigentes sul-americanos chegaram até a ser acusados de receberem repasses para optarem pelo Catar, sendo eles Julio Grondona, ex-presidente da Associação do Futebol Argentino (AFA) e Nicolas Leoz, ex-presidente da Conmebol, além dos brasileiros supracitados.
Desinformação sobre o país
As acusações de violações aos direitos humanos não se restringem à pauta trabalhista. Nesses últimos meses que sucedem a Copa, muitas seleções vieram a público frisar sua insatisfação com relação a escolha do Catar como país-sede do evento. A exemplo disso temos o País de Gales e demais Estados do continente europeu, que realizarão protestos a favor da comunidade LGBTQIA+ e dos direitos das mulheres durante os jogos de seus respectivos times.
De acordo com Camila Medeiros, internacionalista e uma das organizadoras do coletivo Najma, é necessário ter cautela para evitar a disseminação de discursos orientalistas e islamofóbicos. “Não é que esses problemas não existam ali. O problema na abordagem é que eles [mídia hegemônica] só focam nas questões ruins”, destaca Camila. A luta dos movimentos feministas dos países do oeste asiático conseguiu grandes avanços na luta contra a desigualdade de gênero no Catar. Mulheres podem votar, concorrer a cargos públicos e hoje representam 51% do proletariado catari, o que é superior à média mundial e é a taxa mais alta do mundo árabe. O país também possui uma seleção de futebol feminina – o que desmente as falsas notícias que indicavam que mulheres não poderiam entrar nos estádios para assistir aos jogos da Copa.
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Informações errôneas acerca das condutas que os visitantes devem tomar quando forem visitar o país também são amplamente divulgadas por veículos jornalísticos e perfis em redes sociais. É preciso levar em conta o aspecto cultural em consideração neste quesito. Mulheres vão poder sim visitar o Catar sem ser casadas ou ter a companhia de um homem, mas terão de usar vestimentas que cubram seus ombros e joelhos. Além disso, demonstrações públicas de carinho como beijos e abraços não são parte do cotidiano catari e não se limitam a casais LGBTQIA+.
Contudo, é inegável que a população LGBTQIA+ sofre um preconceito institucional, com uma lei que criminaliza a relação amorosa e sexual entre pessoas do mesmo sexo e uma pena que pode chegar a até cinco anos de prisão. Não existem leis que trabalhem a questão da identidade de gênero e orientação sexual. O casamento entre pessoas do mesmo sexo não é reconhecido no país.
A população catari luta por mudanças e pelo seu direito de livre expressão. A internacionalista ressalta a importância de reconhecermos que o problema existe e que deve ser combatido, mas com respeito à cultura islâmica e sem discursos que ofendam ou generalizem a religião.
Imagem destaque: Alan Santos/PR