Em 1963, quando foi concedido a Bob Dylan o Tom Paine, prêmio destinado a indivíduos que tiveram compromisso notável com a luta pela defesa dos direitos humanos, o músico dedicou bons minutos de seu discurso falando sobre como gostaria de estar, naquele momento, ao lado de pessoas jovens e cabeludas, e não com os engravatados que lhe entregavam o troféu. A colocação de Dylan, longe de ser meramente provocativa, parecia sintetizar o sentimento de grande parte da juventude durante a década de 60, que não somente queria ter na cabeça grandes fios, mas também ansiava por uma grande ruptura com o passado de injustiças que a antecedia – que queria ocupar as ruas e se vestir como seus pais e mães jamais se vestiriam.
“O Dylan, nessa época, era um rosto máximo da contracultura, uma personificação dela. Ele era novo, corajoso e indignado… e falava sobre a realidade de pessoas que não eram ouvidas. Ele representou uma era, uma geração”, afirma Levy Rocha, músico e fã do cantor.
Com voz rouca e nasal, inspirada nos cancioneiros rurais, o jovem Dylan cantava sobre as questões da Guerra Fria, que marcaram a década, e criticava o anticomunismo que se espalhava pelo território norte-americano. Falava sobre a luta por direitos civis da população negra e da dura realidade de segregação racial do período. No início do ano de 1961, viajou pelo país pedindo caronas na beira da estrada, assim como os grandes nomes da literatura Beatnik, e conheceu as raízes de seu povo e de sua história. Inspirou-se nos músicos populares que admirava e encontrou, através deles, sua própria identidade, conquistando com ela, o mundo inteiro.
“Eu sou do final da década de 40, dessa geração pós Segunda Guerra Mundial, e a sensação que nós tínhamos nesse período era que artistas como o Dylan cantavam por nós. Ele tem um ar de profeta moderno, de profeta profano. Suas músicas não eram para encantar, mas sim para desencantar… o negócio dele era confrontar a percepção média. Talvez ele tenha sido o cara que mais bem capturou o sentimento de desconforto da minha geração”, acrescenta o professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Luís Augusto Fischer.
Dylan escreve uma canção. (Ilustração: Davi Madorra/Arquivo pessoal)
Este Violão Mata Fascistas: As primeiras influências
“Essa terra foi feita para nós / Haviam muros altos tentando nos parar / Havia uma placa dizendo que aquilo era propriedade privada / Mas do outro lado não dizia nada / E esse lado foi feito para nós”
– Woody Guthrie, em This Land Is Your Land
O ano era 1940 e a população dos Estados Unidos ainda enfrentava na pele as consequências da Grande Depressão. Salários diminuíram, jornadas de trabalho aumentaram e a pobreza generalizada se instaurou no país. Parte da classe trabalhadora e setores marginalizados da população norte-americana, buscando pela proteção coletiva de seus interesses, encontraram na luta social um antídoto às injustiças que sofriam. Assim, a pauta sindical e os movimentos de esquerda como um todo ganharam força no país, exigindo não só por direitos trabalhistas nas fábricas, mas também se engajando na luta por terra e no combate ao racismo e aos ideais fascistas que cresciam na Europa.
Os tempos mudavam naquela américa do norte devastada pela crise do capitalismo e a produção artística seguia tal processo. Pintores como Edward Hopper retratavam em suas obras a alienação da vida urbana, enquanto a fotógrafa Dorothea Lange capturava com suas lentes a realidade dos trabalhadores migrantes durante a segunda guerra. Frida Khalo se retratava em meio a uma hostil fronteira entre Estados Unidos e México, expressando o sofrimento e a resistência dos povos latinos que deixavam seus países rumo ao norte.
Já na canção, um gênero ressurgia em meio às classes desfavorecidas do território ianque: a música folk. Militantes da causa trabalhista resgatavam as composições sobre a luta por terra produzidas por camponeses e escravos durante o século XIX e se inspiravam nelas para elaborarem, também, suas próprias canções, que denunciavam as problemáticas da década de 40. Levy Rocha explica: “O folk chega aqui resgatando uma questão muito importante da cultura tradicional e de seus povos, que é a transmissão de conhecimento e a contação de histórias pela oralidade. Você consegue alcançar com músicas um número de pessoas que você não consegue alcançar com um artigo ou poema escrito, por exemplo, e por isso os militantes populares abraçaram tanto as canções folk. Elas contavam uma história, a história deles”.
“Não furem greves para os patrões / Não ouçam suas mentiras / Nós, pobres, não teremos chances se não nos organizarmos”, cantava Pete Seeger, em Which Side Are You On?, enquanto Leadbelly, outro grande expoente do gênero, esbraveja sobre o racismo na cidade de Washington e afirmava que não seria maltratado por burguês algum, em Bourgeois Blues. Também se destacava no movimento o nome de Woody Guthrie, músico que passou a segunda metade dos anos 30 viajando com trabalhadores migrantes e aprendendo, com eles, a arte das canções tradicionais. Guthrie carregava gravado em seu violão os dizeres “essa máquina mata fascistas”, e em suas músicas, reafirmava o que estampava o instrumento: “Hitler disse ao mundo todo que derrubaria nossa união / Mas nossa união irá quebrar as correntes da escravidão”, ele cantava, na esperançosa Tear The Fascists Down”.
Viajando pelos Estados Unidos como verdadeiros nômades, os artistas folk estabeleceram em Nova Iorque uma base sólida de compositores e fãs, tornando a cidade o grande epicentro desse movimento que a cada dia parecia fugir mais e mais dos sindicatos e partidos comunistas para conquistar, também, o grande público. Neste processo, pouco antes do início da década de 60, o violão e as letras de Guthrie alcançam a pequena cidade de Duluth – Minnesota, encantando o jovem Robert Allen Zimmerman, que mais tarde seria conhecido por Bob Dylan. Assim, completamente fascinado pelas composições do já consagrado artista folk, o aspirante a músico abandonou sua terra natal com destino a Manhattan, sonhando em se integrar ao movimento e conhecer de perto sua grande inspiração.
Da esquerda para a direita: Leadbelly, Pete Seeger e Woody Guthrie. (Ilustração: Davi Madorra / Arquivo pessoal)
Falando de Nova Iorque: A formação do músico de protesto
“Pensei já ter visto de tudo até chegar em Nova Iorque / Pessoas descendo pelo chão / Edifícios subindo até o céu.”
– Bob Dylan, em Talking New York
Ao chegar em Nova Iorque, Dylan se estabeleceu no bairro de Greenwich Village, conhecido por sua efervescente cena cultural e seus famosos basket houses, cafés onde artistas se apresentavam a troco de doações da plateia e onde Dylan passou a fazer suas primeiras performances remuneradas. Entre tocar seu violão pela noite e fazer bicos pelo dia para se manter, o jovem músico também não esqueceu o objetivo principal que o levou a abandonar Duluth: conhecer Woody Guthrie. Naquela época, o veterano do folk já se encontrava extremamente debilitado pela doença de Huntington, condição que mais tarde tiraria sua vida e que levou Dylan a prestá-lo longas e constantes visitas no hospital. Ali, ambos discutiam sobre política, compartilham suas visões de mundo e claro, tocavam juntos.
“Você pode ir para a igreja de sua escolha, você pode ir para o Hospital Estadual do Brooklyn. Você vai encontrar Deus na igreja de sua escolha, você vai encontrar Woody Guthrie no Hospital Estadual do Brooklyn (…) Você vai encontrar ambos no Grand Canyon, ao pôr do sol”, escreve Bob Dylan, em Last Thoughts On Woody Guthrie.
Até aquele momento, grande parte do repertório do garoto de Minnesota se baseava em versões de canções já consagradas na música folk – com pouco material original – mas seu potencial como intérprete e o apadrinhamento de Guthrie o concederam maior notoriedade na cena, levando-o a assinar com a gravadora Columbia e nela, gravar seu primeiro e autointitulado álbum. “No início de 1960 ou 1961, a grande parada do Dylan era querer se parecer com seus ídolos. Ele pegava as composições de seus heróis, mudava o arranjo e o estilo, e as tornava dele. Foi isso que ele fez no primeiro álbum. Apesar de ser algo parecido com o que quase todo mundo do folk fazia na época, ele tinha uma assinatura muito original, que o destacava… além dessa amizade com grandes nomes, que claro, deu uma ajudada na relevância dele”, afirma Levy Rocha.
No dia 19 de março de 1962, era então lançado o primeiro disco de Dylan, contendo somente duas canções originais, sendo uma delas um grande hino de amor para seu ídolo e para música folk em geral: “Hey, hey, Woody Guthrie, eu sei que você sabe / Tudo o que eu estou dizendo e muito mais / Eu canto uma canção, mas não posso cantar o suficiente / Pois não existem muitos homens que fizeram o que você fez”, cantava Dylan, em Song to Woody.
O álbum foi um fiasco de vendas e obteve recepção morna da crítica, mas concedeu à Dylan ainda mais reconhecimento na cena de Greenwich Village. O jovem artista, então, passa a ter contato cada vez mais próximo com artistas, universitários e trabalhadores que moldam diretamente suas visões de mundo e o influenciam a gravar, para além dos clássicos do movimento, suas próprias canções. Outra figura também fundamental nessa transição de “intérprete” para “compositor” do músico, como aponta o professor de língua inglesa Diego Garcia, foi a artista Suze Rotolo, namorada de Dylan na época: “A Rotolo faz parte de uma geração que a gente chama de bebês de fraldas vermelha, que são crianças já criadas dentro de um ambiente de esquerda e comunista… então ela já era muito engajada nessa questão dos sindicatos e trabalhava no movimento por direitos civis. Nesse início da carreira, ele sempre submetia as letras que ele escrevia para ela avaliar”.
Assim, praticamente como um produto de suas diversas e ricas influências no período, o jovem compositor lança, em 1963, The Freewheelin’ Bob Dylan, seu segundo álbum de estúdio, responsável por mostrar de forma definitiva o talento com a letras que Dylan carregava e o poder social e político nelas contigo. “Para mim, o Freewheelin’ é o grande disco de protesto do Dylan, ou pelo menos o mais clássico. A-Hard Rain’s a-Gonna Fall, por exemplo, que na minha leitura é uma canção sobre a chuva nuclear, pode ser considerada a música ‘política’ mais bela já escrita. Nesse álbum a gente tem praticamente um manual. Se você quer fazer uma boa canção de protesto, ouça o Freewheelin’”, pontua o fã Hélio Flanders, violonista e vocalista da banda Vanguart.
A tocha de Woody Guthrie, então, foi finalmente passada à frente, e Dylan se tornava uma nova e talentosa voz das causas sociais. “Quando o Partido Comunista dos Estados Unidos ouviu o Dylan tocar pela primeira vez, eles mal acreditaram. O sentimento era de que eles haviam finalmente achado alguém para cantar sobre suas questões para a juventude”, acrescenta o professor Garcia.
Em Blowing In The Wind, canção que mais tarde se tornaria um hino da luta por direitos civis, Dylan indaga raivoso aos inimigos do povo, “Quantas mortes serão necessárias, até que se perceba que pessoas demais estão morrendo?”, enquanto em Oxford Town, dava holofotes ao caso de James Meredith, um estudante negro que enfrentou grande oposição quando tentou se matricular na Universidade de Mississippi: “Oxford Town está bem na esquina / Ele chega a porta e não pode entrar / Tudo isso por conta da cor de sua pele”.
Releitura da capa do álbum The Freewheelin’ Bob Dylan (1963). (Ilustração: Davi Madorra / Arquivo pessoal)
Uma Chuva Forte Cairá: A Guerra Fria e a paranoia nuclear
“Eu vi uma sala cheia de homens com seus martelos sangrentos (…) Eu vi dez mil oradores cujas línguas estavam dilaceradas / Eu vi armas e espadas afiadas nas mãos de crianças (…) E uma chuva forte cairá”
– Bob Dylan, em A Hard Rain’s a-Gonna Fall.
Assim como os compositores do folk na década de 40 se utilizavam da música para tratarem sobre a grande depressão e a Segunda Guerra Mundial, Dylan também fez de suas composições um translúcido espelho da realidade de sua época. Com a primeira metade dos anos 60 marcada pela Guerra Fria, o músico emerge como um importante porta-voz da contracultura, questionando as estruturas sociais e políticas daquele Estados Unidos ufanista ao extremo.
Em With God On Our Side, Dylan satiriza o grito nacionalista “Deus abençoe a América”, e questiona, através dele, o patriotismo cego no país: “Eu aprendi a odiar os russos / Por toda minha vida / Se outra guerra começar, são eles que eu deverei enfrentar (…) E você nunca faz perguntas / Quando Deus está do seu lado”.
Na furiosa Masters Of War, o compositor também explicita as dinâmicas de poder envolvidas nos conflitos armados da época, especialmente, na Guerra do Vietnam. Sua letra questiona a legitimidade da batalha iniciada pelo imperialismo ianque e critica os nomes e instituições que estão por trás do sangue derramado no Oriente: “Vocês engatilham as armas / Para que outros disparem / E então vocês se afastam e observam / A contagem de mortos crescer / Vocês se escondem em mansões / Enquanto o sangue de jovens escorre de seus corpos / E é enterrado na lama (…) E eu espero que vocês morram / E suas mortes virão em breve”.
Porém, nem só de densos e irritados textos se faz a obra de Bob Dylan, que em muito se valia do humor para tratar sobre as temáticas envolvidas na polarização política. Um grande exemplo dessa dinâmica é a ácida Motorpsycho Nightmare, lançada em 1964. Aqui, é narrada a história de um jovem médico, que dedicado a irritar um fazendeiro ultranacionalista, decide declarar seu amor à Fidel Castro nas propriedades do patriota. “Uma ironia que eu acho linda nessa canção é fato de que quando o rapaz fala que gosta do Fidel, o fazendeiro atira nele uma revista chamada Readers Digest, que é conhecida por ser extremamente rasa e sem tempero, por não questionar nada… e aparentemente essa era a única literatura que ele tinha na casa”, aponta Garcia, a respeito da música.
Outra canção que expõe muito bem a relação de Dylan com o humor é a nunca lançada oficialmente Talkin’ John Birch Paranoid Blues, que ridicularizava em sua letra a Sociedade John Birch – grupo conservador responsável por diversas teorias conspiratórias sobre a chamada “ameaça comunista”, durante a década de 60: “Nós todos concordamos com a visão de Hitler agora / Apesar dele ter matado seis milhões de judeus / E daí que ele era um fascista? / Ao menos você não pode dizer que ele era comunista!”, cantava.
Um episódio interessante envolvendo a canção ocorre em maio de 1963, quando Dylan decide performá-la na frente das câmeras, ao ser convidado para o programa The Ed Sullivan Show – um dos maiores nomes da televisão norte-americana na época. Devido ao alto teor político da letra, a emissora barrou a música e pediu para que Dylan apresentasse outra composição, recebendo um seco “não” do jovem, que se recusou a participar do programa sob estas condições.
“Acho que nenhum outro artista estadunidense da época conseguiu sintetizar tão bem o sentimento de revolta quanto o Bob Dylan. Se a contracultura tivesse um rosto, provavelmente seria o dele. Ele tinha coragem para continuar sendo honesto consigo mesmo… talvez por isso ele representasse tanta gente. Todo mundo respeitava Bob Dylan, desde os comunistas prontos para pegarem em armas, até os hippies que abraçavam árvores.”, afirma o músico Levy Rocha, sobre o incidente.
Cantando sobre a terceira guerra mundial. (Ilustração: Davi Madorra / Arquivo pessoal)
Aqui vai a História de Hurricane!: Bob Dylan como um cronista do povo
“Essa é a história de Hurricane, e ela não terá fim até que limpem o seu nome!”
– Bob Dylan, em Hurricane
Em 29 de agosto 1963, um dia após performar na Marcha Sobre Washington — evento histórico da luta por direitos civis nos Estados Unidos, onde Martin Luther King proferiu seu discurso “Eu Tenho um Sonho” — Dylan se deparou com a notícia do assassinato da garçonete negra Hattie Carroll, publicada no jornal The New York Times. Segundo o veículo, a mulher teria sido brutalmente espancada pelo fazendeiro de tabaco William Zantzinger, homem branco de 24 anos, ao demorar para lhe trazer uma bebida. Carroll era mãe de 8 filhos, el faleceu algumas horas após o ocorrido. Zantzinger foi condenado a somente seis meses de prisão.
Indignado com o incidente e com a pena pífia destinada ao agricultor, Dylan, que já estava fortemente envolvido no Movimento pelos Direitos Civis, escreveu a canção The Lonesome Death Of Hattie Carroll, uma longa balada que narra a história da garçonete e daquele crime de ódio contra ela cometido. Diferente da abordagem incisiva e pessoal utilizada em muitas outras de suas canções de cunho mais político, Dylan, aqui, coloca-se em terceira pessoa, narrando os fatos de maneira bem mais descritiva e objetiva — quase jornalística — mas nunca omitindo suas opiniões quanto ao assunto: “À medida que você escuta a canção, você percebe que tudo ali caminha para um grito contra as estruturas de poder. Ele monta uma caricatura em cima Zantzinger do aristocrata sulista, que tem muito poder na mão, mas é, ao mesmo tempo, um frouxo. A Hattie Carroll sustentava dez filhos com um salário mísero e morreu por causa de um playboy que nunca fez um terço do que ela fez. O Dylan destrói esse mito da liberdade nos EUA, situando o verdadeiro povo americano como sendo a Hattie Carroll”, aponta Levy Rocha.
Hurricane é outra canção de Dylan que segue formato parecido. Lançada aproximadamente 13 anos depois da balada de Hattie Carroll, em 1976, a composição também se baseia em um acontecimento real: o caso do boxeador afro-americano Rubin “Hurricane” Carter, que foi acusado e condenado por um triplo-homicídio ocorrido em um bar na cidade de Paterson, Nova Jersey, no ano de 1966. O julgamento de Carter se baseou principalmente no depoimento de duas testemunhas oculares, que o identificaram como assassino. Todavia, inúmeras controvérsias surgiram ao longo do processo, levantando questionamentos quanto à legitimidade daquele procedimento legal, como a ausência de evidências físicas que ligassem Carter ao crime e inconsistências na descrição física dos suspeitos. Além disso, vale mencionar que ambas testemunhas receberam benefícios por parte do promotor em troca de seus depoimentos.
Ao ficar sabendo do caso através de uma carta enviada pelo fã Lawrence H. Christensen sobre as injustiças que envolviam o caso do boxeador, Dylan visita Carter na cadeia e compra a briga por sua inocência, se envolvendo ativamente na campanha pela libertação do atleta e compondo, ao lado do escritor Jacques Levy, a canção que se tornaria uma espécie de palavra de ordem naquele movimento, como aponta a escritora Paula Bajer, “A canção tem um ritmo forte, é como um hino. O violino de Scarlet Rivera, rápido, dá à melodia uma vibração especial que mobiliza. É impossível não se identificar com a causa de Rubin Carter defendida por Bob Dylan, que transmite a injustiça pela letra, atitude, melodia e ritmo”, na obra Arte, Cultura e Civilização.
Na música, Dylan narra em ordem cronológica cada um dos detalhes que rondam o acontecimento, e assume de peito aberto o lado de Carter e da população negra dos Estados Unidos, vítima – até os dias de hoje – das injustiças policiais e jurídicas: “O destino de Rubin já estava traçado de antemão / O julgamento foi um circo de porcos, ele nunca teve chance / O juiz desqualifica as testemunhas de Rubin como bêbados favelados / E para os brancos que assistiam / Ele era um revolucionário vagabundo”.
Nos honrosos tribunais. (Ilustração: Davi Madorra/Arquivo pessoal)
Eu Não Vou Mais Trabalhar Na Fazenda de Maggie: O rompimento com a música folk
“Eu tenho uma cabeça cheia de ideias / Que estão me deixando louco / É uma vergonha a forma que ela me faz esfregar o chão / Eu não vou mais trabalhar na fazenda de Maggie”
– Bob Dylan, em Maggie’s Farm
Em 1965, Dylan se encontrava no auge de sua carreira e parecia, ao mesmo tempo, extremamente insatisfeito com o rumo que ela tomava. Depois do sucesso de seus três últimos discos (The Freewheelin’ Bob Dylan, The Times They Are a-Changin’ e Another Side of Bob Dylan), o jovem passou a ser visto por seus fãs como uma espécie de mártir heróico do movimento folk e da luta social do país, mas de forma alguma se identificava como tal e fazia de tudo para rejeitar o rótulo a ele atribuído. “Malcolm X tinha inúmeros seguidores e uma mensagem indiscutivelmente necessária. A minha mensagem não era necessária assim. Olhem para Fidel Castro, que queimou estações de polícia, saiu vivo, fugiu para o méxico e depois fez uma revolução em Cuba… vocês querem me comparar com ele? (…) fazia mais sentido me colocarem junto à Elvis (Presley) ou Frank Sinatra, isso sim faria sentido para mim”, afirmou Dylan no ano de 2004, em uma entrevista concedida à Ed Bradley, ao ser apresentado à uma capa da revista The Esquire, que publicada em 65, continha um mosaico composto por sua face, a de Malcolm, Fidel e John Kennedy.
Assim, tentando remar contra a maré na qual havia se colocado, Dylan lançou, naquele mesmo ano, o álbum que mudaria de vez os rumos de sua carreira: Bringing It All Back Home. A obra, que contava com seis músicas elétricas e cinco acústicas, marcava a primeira transição do músico para o Rock ‘n’ Roll, gênero considerado comercial e fútil pela maior parte do movimento folk no período. A mudança brusca de estilo desencadeou uma péssima recepção por grande parte de seu público, que confuso diante da decisão tomada pelo artista, passou a ficar cada vez mais desconfiado quanto à sua figura.
Dois meses depois, neste exato clima de confusão, Dylan viajava para Rhode Island, onde iria tocar, pela terceira vez e última vez, no Newport Folk Festival, evento tradicional de celebração da música folclórica nos Estados Unidos. Era o verão do ano em que Malcolm X havia sido assassinado e que Lyndon Johnson assumia o governo do país, enviando mais de três mil fuzileiros navais ao Vietnã.
Apesar dos burburinhos levantados por seu último lançamento, a maior parte do público do evento se agarrava à “metade folk” do álbum e esperava que Dylan fosse aparecer por ali como o familiar trovador solitário de antes, para iluminar aquele ano difícil no país. Enganaram-se. Contra todas expectativas, Dylan subiu no pequeno palco do festival acompanhado da banda de blues rock Paul Butterfield, portando, no lugar de seu bom e velho violão, uma guitarra elétrica nos braços, como aponta o músico Levy Rocha: “Ninguém esperava por aquilo… o pessoal achava que por se tratar do maior festival de folk nos EUA, o Dylan cederia à demanda do público, mas não foi isso que aconteceu, e eles leram aquilo como uma afronta. Os equipamentos do Newport não tinham nem estrutura para sustentar o som de uma guitarra. O áudio da apresentação ficou horrível, o que eu acho que deixa tudo ainda mais rebelde”.
A parte elétrica do show foi composta por somente três músicas e o artista, de 24 anos na época, foi veemente vaiado durante cada uma delas. Era o início de uma nova era. A turnê de Dylan, então, tornou-se cada vez mais caótica, e mesclando gritos de repúdio e aplausos, seus shows mais pareciam um campo de batalha entre os apoiadores da mudança e os fãs mais puristas e tradicionais, que classificavam suas novas canções como “vendidas” e afirmavam que ele havia abandonado a luta social. Para além da musicalidade, as novas composições do artista também contavam com letras muito diferentes daquelas empregadas em seus trabalhos anteriores. Aqui, Dylan concedia caráter bem mais complexo de ser interpretado ao texto de suas músicas e às críticas sociais nelas contidas, que apesar de existentes, também não eram mais tão óbvias.
“Naquela época, as músicas dele ganham um patamar de alguém que quer abrir um leque de possibilidades até pra própria música de protesto. Maggie’s Farm, por exemplo, pode ser lida desde uma música sobre escravidão, até uma composição sobre a vida pessoal do Dylan e sua virada para o Rock. Ele entende que a escrita não precisa ser necessariamente objetiva para demonstrar ideias fortes”, aponta Pedro Henrique Ribeiro, músico e fã.
Em Subterranean Homesick Blues, por exemplo, Dylan traz consigo forte influência da poesia Beatnik e narra de forma profusa e cheia de simbolismos sobre a vida nas periferias dos Estados Unidos, parecendo abordar desde o ritmo caótico da sociedade moderna nos versos, “Fique doente, fique bem / Arrume uma tatuagem legal (…) Volte, escreva em Braille / Seja preso, salte a cerca / Entre para o exército caso você falhe”, até a violência policial e as questões de classe, em “É melhor ficar longe desses que carregam a mangueira de incêndio / Mantenha seu nariz limpo e fique de olho naqueles que estão à paisana / Você não precisa do homem do tempo para saber a direção dos ventos”, que na leitura do professor Garcia, faz alusão à questão das manifestações por direitos civis, em que as autoridades jogavam água nos manifestantes através de enormes mangueiras, visando dispersá-los.
Like a Rolling Stone, lançada no álbum Highway 61 Revisited (1965), que sucede Bringing It All Back Home, também é uma canção extremamente politizada de Dylan no período, mas que não parece se vender como tal. A composição narra a história de uma socialite americana, que ao perder tudo, sente-se como uma pedra a rolar na rua, uma indigente. Outra música presente no disco, que também segue formato parecido, é Ballad Of a Thin Man, onde a letra se abusa de surrealismos para narrar a história de Mr. Jones, um homem que, segundo o próprio Dylan – provavelmente caçoando do repórter que lhe questionou sobre a identidade do personagem – “fazia perguntas demais”. Nela, o músico cria um ar de confusão ao cantar sobre esse indivíduo que aparenta ser um fracassado da alta sociedade: “Bem, você entra na sala como um camelo e então franze a testa / Você coloca seus olhos no bolso e seu nariz no chão / Deveria haver uma lei proibindo você de ficar por aí”. Um grande admirador da música em questão, era o co-fundador do Partido dos Panteras Negras, Huey P. Newton, que conforme seu companheiro de luta, Bobby Seale, passava horas ouvindo a canção e o Highway 61 Revisited como um todo, enquanto produzia para o jornal do Partido.
“É muito interessante essas contradições. Na época, o Huey gostou muito de The Ballad Of a Thin Man e Columbia Records hesitou em lançar várias canções do Highway 61, afirmando que elas pareciam ser comunistas demais. Enquanto isso, o próprio Partido Comunista dos Estados Unidos atacava as mudanças do Dylan. Ou seja, ele não estava agradando praticamente ninguém, ele era sempre um outsider”, afirma Diego Garcia.
Ilustração da performance de Dylan no Newport Folk Festival, em 65. (Ilustração: Davi Madorra/Arquivo pessoal)
Há Multidões Dentro de Mim: O legado de Bob Dylan
“Tenho um coração de contador de histórias, como o Senhor Poe / Tenho esqueletos nas paredes, das pessoas que você conhece”
– Bob Dylan, em I Contain Multitudes
Após a mudança para o Rock ‘n’ Roll, Dylan assumiu um tom bem mais provocativo em relação a sua personalidade e não parecia ser mais o jovem acessível e politicamente ativo de antes. Apesar de ter tido momentos específicos na carreira em que decidiu se envolver novamente com causas sociais – como foi o caso da campanha pela libertação de Hurricane, anteriormente citado – esse não era mais o foco principal de seus trabalhos. Nos anos subsequentes, passou a se dedicar bem mais a temáticas sentimentais e filosóficas, lançando discos sobre amor, como o aclamado Blood On The Tracks (1975), e sobre as histórias da cultura norte-americana, como o recente Rough And Rowdy Ways (2021), além dos flertes com a música gospel durante os anos 80 e a vertente sombria que assumiu a partir do final da década de 90.
Dylan mudou e experimentou muito durante a carreira. Depois de negar a música folk, que lhe colocou no mapa, negou muitas outras coisas – mas seu legado se manteve. Entre as diversas personalidades que assumiu, o artista seguiu exercendo papel fundamental na construção da identidade cultural da sociedade moderna, concedendo à arte de fazer canções uma riqueza lírica nunca antes vista, que foi fonte de inspiração para muitos que o sucederam, como aponta Hélio Flanders: “Para mim, o Dylan ocupa um lugar na história só dele. Ele é de um caráter seminal, todo artista, escritor, cineasta, passou ou vai passar pelo Dylan em algum momento. Ele acabou dando a voz pra muita gente. O Leonard Cohen fala isso do Lorca, o dramaturgo. Ele fala que o Lorca ensinou ele a encontrar sua própria voz, e acho que o Dylan fez isso com muita gente. Ele foi o primeiro a mostrar isso – que as pessoas podiam encontrar sua própria voz”.
Na cultura do Punk Rock, por exemplo, conhecida pelo alto grau de contestação política que carrega consigo, a banda pioneira do gênero, The Clash, cita Dylan como uma de suas principais inspirações, enquanto a escritora Patti Smith, outro grande expoente do movimento, nunca fez questão de esconder a idolatria que sentia pelo compositor.
Não se limitando somente ao Rock ‘n’ Roll, o rapper Kendrick Lamar também já foi diversas vezes comparado à Dylan, e durante uma entrevista com o ator Arsenio Hall, decidiu deixar público o que pensava do compositor: “Eu sempre disse: ‘Se vou fazer isso, quero dizer alguma coisa. Não vou apenas rimar um monte de versos aleatórios.’ Aquele era Dylan. Ele é uma lenda e disse algo. Ele expressou sua opinião e o mundo gravitou em torno disso. Eu quero fazer isso com minha música”.
Já no Brasil, a lista de artistas influenciados pelas composições “dylanescas” também é extensa: Zé Ramalho gravou um álbum inteiro com versões em português de músicas do artista, além da cantora Gal Costa, que presenteou seus fãs com a canção Negro Amor, releitura abrasileirada da famosa It’s All Over Now Baby Blue, também de Dylan. Gilberto Gil, em seu álbum O Eterno Deus da Mu Dança, chegou a gravar a canção De Bob Dylan a Bob Marley, um Samba Provocação, em que trata sobre as diversas mudanças e relações políticas envolvidas na carreira de Dylan e de outros grandes nomes da cultura popular, e por aí vai.
“É aquilo que a gente tava falando antes, sobre o poder da canção. Olha o quão longe a música foi… Ele quebrou barreiras culturais, linguísticas, etc. As próprias músicas de protesto dele continuam sendo extremamente atuais. Quantas Hattie Carrolls a gente não tem por aí hoje em dia? O cara conseguiu alcançar diversas gerações, mesmo que indiretamente. No final das contas, o Dylan foi o Woody Guthrie de muita gente, inclusive o meu”, comenta o fã Pedro Henrique Ribeiro.
“Os sinos dobravam para os rebeldes, dobravam para os torturados / Para os infelizes, abandonados e desamparados / Dobravam para os marginais, sempre queimados na fogueira. / E olhamos, maravilhados, o cintilar dos sinos da liberdade”
– Bob Dylan, em Chimes Of Freedom
Muito legal! 👏