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Quando jogar bola virou crime: a proibição do futebol feminino no Brasil

“Artigo 54. Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.” O artigo citado faz parte do decreto-lei número 3.199, de 14 de abril de 1941, feito por Getúlio Vargas. …

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“Artigo 54. Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.”

O artigo citado faz parte do decreto-lei número 3.199, de 14 de abril de 1941, feito por Getúlio Vargas. O decreto estabeleceu as bases de organização dos esportes em todo o país. Pela leitura do parágrafo acima, você já deve ter entendido que sim, por mais estranho que pareça, as mulheres já foram proibidas pela lei brasileira de praticar certos esportes dentro do território nacional, incluindo o futebol. E tem mais: a interdição durou quase quarenta anos, e, durante esse tempo, o futebol feminino foi até atração circense.

O Arquibancada traz um panorama do que aconteceu nesses quase quarenta anos de proibição, como isso moldou a visão do brasileiro sobre o futebol feminino e as influências disso no difícil desenvolvimento da modalidade, que perduram até hoje.

 

É proibido jogar – a interdição e seu contexto

Durante a década de 30, aconteceu a primeira Copa do Mundo masculina, sediada no Uruguai. O futebol estava começando a se popularizar por todo o mundo. No contexto nacional, um jogador se destacava: Leônidas da Silva. As mulheres também começaram a praticar a modalidade. O futebol, que até os anos de 1920 era apenas um esporte de homens, agora começava a ser também das mulheres.

Durante o governo fascista de Getúlio Vargas, o Estado Novo (1937-1945), havia uma visão machista sobre a mulher, que afirmava que o seu corpo era destinado à gestação. A historiadora Giovana Capucim e Silva, mestre em história social pela Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro “Mulheres impedidas: A proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo”, afirma que a visão não era apenas política: “Cientistas e médicos diziam que a função da mulher era gerar filhos”.

Por conta disso, no ano de 1941, foi decretada a Lei 3199:  “Art. 54. Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza […]”. A historiadora salienta que esta foi a primeira regulamentação do esporte no país. Até então, nenhuma lei havia interferido no esporte.

Embora o artigo seja subjetivo – em momento algum está explicitado quais esportes seriam e quais não seriam permitidos -, o futebol feminino oficial deixou de ser noticiado. A lei foi um duro golpe ao desenvolvimento da modalidade. Porém Silva diz que o esporte nunca deixou de ser praticado, ele apenas não era formalizado. “As mulheres nunca deixaram de jogar futebol”, relata.

Anos se passaram com a proibição. Enquanto isso, o futebol masculino dominava as manchetes: em 1950, o Brasil sediou a Copa do Mundo Masculina. Já em 1958 o Brasil ganhou a sua primeira Copa sob o comando de Pelé e Garrincha.

 

Futebol arte

Entre 1958 e 1964, antes da ditadura militar ser uma realidade para os brasileiros, o futebol feminino virou até atração de circo. A modalidade feminina não era um esporte, mas um espetáculo, algo incomum, quase uma aberração. Existiam performances que encenavam o futebol feminino com a participação de artistas e atrizes, o chamado futebol de vedetes. Isso aconteceu, por exemplo, na Casa do Ator. Também haviam eventos com fins beneficentes que contavam com essas encenações.

Vedete no estádio do Pacaembu em momentos antes do jogo [Imagem: Acervo do Museu do Futebol]

Em alguns casos, o tratamento do futebol feminino como algo mais artístico e voltado para o entretenimento pôde ser entendido como uma forma de ludibriar a proibição do Conselho Nacional de Desportos (CND), que segundo a lei de Getúlio Vargas era o órgão responsável por determinar quais esportes eram adequados para as mulheres.

No entanto, isso não pode ser visto como um ato de resistência, já que na maioria das vezes o foco principal dessas performances era a sexualização do corpo feminino. “Ao colocarem mulheres consideradas bonitas para atuarem nesse jogo, pretendia-se atrair justamente este público (masculino heterossexual) […] pela intenção não de torcer ou apreciar o esporte, mas sim o corpo das moças” (SILVA, 2015, p. 14).

Esse tratamento dado ao futebol feminino também deixa algumas mensagens no subconsciente do brasileiro, que perduram até hoje. A bola nos pés dos homens era motivo de fortalecimento do nacionalismo, um orgulho para a nação. Nos pés das mulheres era algo que, além de ser levado na brincadeira, era considerado exótico e anormal. Futebol não era coisa de mulher.

Durante a década de 50, as vedetes eram comuns os jogos com as atrizes [Imagem: Acervo do Museu do Futebol]

Resistência

Mesmo com a lei de Vargas e o tratamento do futebol feminino como entretenimento, alguns times surgiam, configurando uma resistência ao absurdo da proibição. Ainda que nunca profissionalmente, alguns jogos e competições até chegaram a acontecer, sendo inclusive organizados por grandes times como o Bahia, o Vitória e o Atlético Mineiro.

Era comum, por exemplo, que jogos femininos acontecessem antes de partidas profissionais desses times importantes, como uma forma de abertura. Isso foi se tornando cada vez mais frequente e fez com que o futebol feminino ganhasse mais repercussão no Brasil, principalmente por volta de 1960.

O governo irritou-se com esse crescimento do futebol feminino como esporte, que vinha ganhando a atenção da mídia. Porém, a lei que proibia a prática de alguns esportes por mulheres era vaga e o território nacional era extenso, fazendo com que fosse impossível impedi-las de jogar bola. Uma prática comum para fugir da fiscalização era fazer com que os jogos acontecessem nos campos de várzea, fora dos olhares indesejados.

Porém, com o crescimento do futebol feminino mesmo diante da pressão governamental, foi feita em 1965, durante a ditadura militar, uma deliberação do Conselho Nacional de Desportos que especificou as modalidades esportivas que não deveriam ser praticadas por mulheres, incluindo, além do futebol (seja de campo, salão ou areia), esportes como lutas e rugby.

A proibição ficou mais forte, principalmente no que diz respeito aos grandes clubes, mas o futebol feminino nunca realmente deixou de existir no Brasil. Mesmo sem incentivo e reconhecimento, os jogos continuavam acontecendo de forma amadora, apenas para divertir as mulheres que o praticavam.     

 

Tempo perdido?

Mas o que essa proibição e tudo sobre ela significa para o futebol que as nossas meninas jogam na Copa neste ano de 2019? Basicamente, significa um atraso. Na Europa, durante a proibição, o esporte ainda não tinha muito incentivo e demorou a ser reconhecido pela Federação Internacional de Futebol (FIFA), mas nunca parou de crescer, mesmo a passos lentos. Já no Brasil, esses passos não puderam ser dados.

O desenvolvimento do futebol feminino foi reprimido pela lei brasileira até 1979. Nessa data, o futebol masculino já tinha três copas do mundo. A modalidade feminina simplesmente congelou no tempo, perdendo décadas que poderiam ser usadas para incentivar o crescimento do esporte e foram usadas para criminalizá-lo.

Se hoje vemos uma enorme desigualdade entre o futebol feminino e o masculino, seja em salários, investimentos ou visibilidade dos eventos esportivos, existe uma grande influência desses quase quarenta anos de proibição. A legislação não trouxe nada de bom, apenas atrasou nossas meninas e fez com que fosse reforçado o estereótipo do futebol como um esporte para homens.

O momento pede que continuemos caminhando, mesmo que em pequenos passos, lembrando que mesmo que tenhamos congelado no tempo, hoje nossas meninas estão livres de amarras e podem continuar correndo por suas conquistas. De preferência no campo, e marcando gols.

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