Jornalismo Júnior

Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Moléculas sobre tela

Dois vizinhos desvendam o universo da química computacional e descobrem que a distância entre eles pode ser menor do que pensavam

O primeiro dia da primavera começou como mais uma terça-feira comum na vida de Laura. Os raios de sol iluminavam seu perfil sentado à mesa do escritório, no apartamento do décimo andar de um dos milhares de condomínios na cidade de São Paulo. Laura olhava o ipê-branco plantado uma rua acima da sua. Era uma das poucas árvores na paisagem emoldurada por outros prédios, cujas janelas permitem acompanhar a vida de desconhecidos — pelo menos as partes da vida que se desenrolam entre cortinas abertas. 

A janela mais próxima, da torre vizinha no condomínio, era de outro escritório. O morador do décimo andar nesse caso era Eduardo, um rapaz que parecia ter a mesma idade de Laura, também morava sozinho e, assim como ela, passava os dias na frente do computador. Não que houvesse muitas opções em meio à pandemia de Covid-19. 

O distanciamento social — necessário e fundamental para conter a dispersão do novo coronavírus — levou o trabalho de ambos para dentro de casa. Laura era jornalista e buscava inspiração para terminar mais uma reportagem que, inclusive, estava atrasada e deveria ter sido entregue na segunda-feira. Eduardo era químico — informação que Laura tinha captado em alguma reunião de condomínio ou em alguma festa de vizinhos, na época em que festas ainda eram possíveis. Uma jornalista e um químico. Nada mais natural do que o trabalho se tornar on-line, certo? 

Não na cabeça de Laura. Mas ela nunca tinha percebido que o fato de Eduardo trabalhar em casa, em um daqueles computadores de gamers, era algo diferente do que ela esperava. Foi só ao desviar o olhar da beleza esbranquiçada das flores e se deparar com o escritório ao lado que sua curiosidade acendeu. O que Eduardo fazia em casa na pandemia? Como ele realizava seus experimentos, sem as substâncias potencialmente perigosas e as vidrarias de formatos inusitados? Onde estava o laboratório de reações químicas que ela imaginava com base em filmes e séries de TV? 

A curiosidade e a busca por histórias são parte da profissão de Laura. E a dúvida que se instalou na sua cabeça a inquietou durante todo o dia, até finalmente extravasar para uma ação pouco convencional antes de dormir. 

Laura sempre se surpreendeu com a proximidade das duas janelas. Ela sentia que, se ela e o vizinho se inclinassem o suficiente através do vidro aberto, poderiam tocar as pontas dos dedos. Ao mesmo tempo, a distância entre eles era enorme. As palavras que trocaram ao longo dos dois anos morando lado a lado mal davam para formar um parágrafo. 

Reticente pela falta de intimidade, Laura pegou a lousa branca que mantinha em casa desde a faculdade e escreveu em letras garrafais: “Oi, Eduardo. Sou a Laura. Como estão as coisas na pandemia?”. Ela posicionou a lousa na janela, acendeu uma luminária no parapeito e foi dormir. Ela sabia que Eduardo dormia tarde e sempre passava no escritório para verificar se estava tudo bem com o computador. Pelo menos era o que parecia, já que a máquina ficava ligada quase o tempo todo, como se fosse um super processador da Nasa, a agência espacial estadunidense. 

No dia seguinte, antes mesmo de o despertador tocar, Laura saltou da cama e correu até o escritório. Uma sequência de folhas sulfite formava a frase na janela oposta: “Oi, Laura. Tudo bem. Trabalho puxado, saudade de sair de casa. E você?”. Um sorriso iluminou o rosto da jornalista. Era tudo que ela precisava ler. Em um piscar de olhos, substituiu a mensagem em sua própria janela: “O mesmo por aqui. Reportagens sem fim. Tá difícil trabalhar no computador?”. 

A resposta chegou no tempo de um café da manhã e um banho: “Nada! Química computacional é assim. E pra você?”. Dessa vez, Eduardo estava no escritório, concentrado em algo na tela. Mas alguma coisa o fez levantar a cabeça, olhar para Laura e sorrir. Depois, ele voltou ao computador. Laura aproveitou a pausa e fez uma busca rápida na internet. Afinal, o que é química computacional?

O resultado mais simples dizia que é a área da química que utiliza princípios da ciência da computação para resolver problemas químicos. Mas isso já dava para deduzir pelo nome. Laura precisava saber mais, e o jornalismo a ensinou que conversar é uma ótima forma de aprender. Interessada no tema e em diminuir a distância entre as janelas, escreveu seu número de celular na lousa e esperou. A primeira mensagem de um número desconhecido veio alguns minutos depois. Laura olhou do celular para a janela e viu Eduardo acenar. Com uma animação que há muito tempo não sentia, ela respondeu e, a partir desse ponto, a conversa se desenrolou de modo fácil e divertido.

 A jornalista descobriu que a química computacional é como um jogo em que o químico constrói um universo, assim como os gamers desenham mundos fictícios com regras específicas. Mas, na química computacional, a escala do universo de interesse é muito pequena, pois o olhar se volta a estruturas com nanômetros de comprimento. Nanômetro, a bilionésima parte do metro. “Impressionante”, pensou Laura. As regras do jogo também são diferentes. Enquanto no mundo macroscópico a física mecânica — aquela das leis de Newton que aprendemos na escola — funciona muito bem, na química o que predomina são as leis da física quântica, que são uma versão mais abrangente e complicada da física mecânica clássica.

Cada universo que Eduardo ajudava a criar em seu trabalho na verdade é o que os cientistas chamam de modelo. É uma simplificação da realidade que permite analisar situações muito complexas de forma mais prática. Difícil de entender? Laura também achou. Por isso, ela e Eduardo fizeram sua primeira videochamada. Já que não podiam marcar um encontro, cada um cozinhou um prato especial, pegou uma taça de vinho e ligou o computador para jantar com o outro e discutir modelos, ciência e os desafios da comunicação no mundo moderno e na pandemia. Basicamente, uma mistura do cotidiano dos dois.

 A conversa mudou de rumo em muitos momentos, mas, no fim, Laura entendeu que um modelo muitas vezes parte de uma teoria, que é mais geral, e tenta explicar uma situação específica. Em alguns casos, o modelo também pode partir de observações feitas na prática, como forma de organizá-las em uma teoria mais ampla.

 Seja qual for o ponto de partida, o modelo é como se fosse um jogo de futebol no videogame. O conceito de futebol é geral e se aplica a várias condições diferentes: no estádio ou na rua, com time profissional ou time amador, com bola de couro ou de borracha, por exemplo. Já uma partida no videogame é a representação simplificada de um jogo real. Se alguém nunca viu um jogo de futebol na vida, ao assistir à partida no videogame terá uma boa ideia de como o esporte funciona. No caso dos modelos computacionais, as regras do jogo são tão complicadas que, para executá-las, é preciso ajuda de computadores, geralmente com alto poder de processamento. Não por acaso, o computador de Eduardo era mesmo um computador de gamer, com uma rede ligada à da universidade onde ele trabalhava que, por sua vez, estava ligada a um consórcio internacional de supercomputadores — e um deles era realmente financiado pela Nasa.

Modelos moleculares eram o foco de Eduardo e permitem estudar as moléculas, que são arranjos de átomos — unidades que formam tudo aquilo que tem massa e ocupa um lugar no espaço, ou seja, tudo aquilo que chamamos de matéria. Por meio dos modelos, as moléculas podem ser investigadas quanto a sua estrutura, suas variações de energia e estabilidade e suas propriedades químicas. Também é possível estudar como duas ou mais moléculas interagem, em testes variados de reações químicas que acontecem bem ali, em uma simulação na tela.

 Entender os detalhes e as interações daquilo que forma tudo o que vemos já é fascinante por si só, mas Laura queria saber se o trabalho de Eduardo também tinha uma aplicação prática, que afetasse diretamente o dia a dia das pessoas. Ele disse que sim, mas que esse tema era conversa para mais de metro e que eles poderiam marcar um novo jantar no dia seguinte.

 A noite de quinta-feira encontrou Laura e Eduardo sentados frente a frente, cada um em sua janela. A videochamada servia para captar o som sem que fosse preciso gritar, mas os olhos se mantinham no espaço entre os vidros, longe da mediação restrita dos monitores. A jornalista não esperou o químico puxar o assunto e foi logo apresentando uma reportagem que tinha visto sobre o uso de química computacional no teste de um medicamento contra Covid-19

O remédio era o dissulfiram, utilizado no tratamento do alcoolismo. Uma equipe de pesquisadores russos partiu da modelagem molecular para estudar a interação do dissulfiram com uma enzima do novo coronavírus. A enzima em questão é a Mpro (main protease ou protease principal, em tradução livre), responsável por cortar proteínas grandes em proteínas menores fundamentais para a replicação do vírus. Os modelos computacionais mostraram que, ao interagir com a Mpro, o dissulfiram seria capaz de inibir a atividade da enzima e prejudicar o ciclo viral.

Mas a pesquisa não parava por aí. A parte computacional era complementada por testes em laboratório nos Estados Unidos para verificar se o remédio era mesmo capaz de bloquear a atividade da Mpro na prática. Agora sim chegava a parte da química que Laura imaginava desde criança. E os resultados do experimento confirmaram o que a modelagem havia mostrado. Claro que ainda faltavam muitos passos até os cientistas se certificarem de que o medicamento era mesmo eficaz contra a Covid-19. Era preciso ampliar os testes em laboratórios e, a partir de resultados positivos, propor testes clínicos em animais, depois em humanos, submeter os resultados para análise de uma agência reguladora e ter sua  aprovação. No fim, o conjunto de evidências científicas não indicou uma eficácia do dissulfiram contra a Covid-19, que ainda segue sem um tratamento medicamentoso comprovado. Porém, a ciência é feita assim, em etapas e com cautela para não colocar ninguém em risco.

 Eduardo ficou impressionado com o interesse de Laura sobre o assunto e feliz por esse interesse ter juntado os dois naquela quinta-feira de setembro. Ele aproveitou para destacar que a união entre modelagem molecular e experimentação é uma forma de economizar recursos na pesquisa, pois os laboratórios não precisam utilizar reagentes caros para testar todas as combinações de moléculas nas quais estão interessados. Eles podem partir da química computacional para saber o que tem potencial de dar certo ou dar errado e, com isso, usar melhor o tempo e o dinheiro — que andam bem escassos no cenário de pesquisa brasileiro, graças às políticas recentes de um governo que não valoriza o conhecimento e o desenvolvimento que a ciência pode trazer. 

Juntos, Laura e Eduardo discutiram outras aplicações da modelagem molecular, que pode ajudar a entender a ação de antidepressivos e de vários outros medicamentos, investigar  qual é a melhor composição para fazer um asfalto de qualidade, contribuir para a retirada de compostos tóxicos do petróleo ou até mesmo propor soluções para capturar CO₂ da atmosfera e amenizar o efeito estufa. O que partiu da química virou uma reflexão bem mais geral sobre as ações humanas, padrões de consumo e os limites do que podemos conhecer no Universo. 

A química computacional, assunto que parecia tão complexo e distante do cotidiano, mostrou-se muito mais presente na sociedade do que Laura poderia imaginar. Assim como outros ramos da ciência, ela une pesquisadores de várias áreas do conhecimento e de muitos lugares diferentes. E também foi a ponte que fez os dedos dos vizinhos finalmente  se entrelaçarem pela primeira vez. Afinal, não só de química viviam as conversas de Laura e Eduardo. Juntos, eles falaram da vida, dos sonhos e das angústias da pandemia. Descobriram interesses em comum, discutiram livros, filmes, moda, música, fotografia e outros elementos culturais sobre os quais Laura escrevia em suas reportagens. 

Algum tempo depois, munidos de máscara e álcool em gel, eles marcaram um encontro presencial no apartamento de Laura. A dupla começou a se falar há um mês e, conscientemente ou não, seguiu à risca os protocolos de segurança na expectativa de algo novo acontecer. Em lados opostos da sala de estar, viram os olhos um do outro expressarem o sorriso encoberto pelo tecido. Por enquanto seria assim. Mas o futuro traz surpresas que nem o computador mais potente do mundo pode prever. Quem sabe o que ele reserva a esses moradores do décimo andar?

 

*Este texto foi escrito com base em:

Cheng, G. J. et al. Computational Organic Chemistry: Bridging Theory and Experiment in Establishing the Mechanisms of Chemical Reactions. Journal of the American Chemical Society, v. 137, p. 1706-1725, 2015.

Cramer, C. J. What are Theory, Computation, and Modeling? In: Cramer, C. J. Essentials of Computational Chemistry. 2. ed. New Jersey: John Wiley & Sons, 2004. p. 1-16.

Conversa com Rodolfo Goetze Fiorot, professor e pesquisador do Departamento de Química Orgânica da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima