Por: Gabriella Cecchin (gabrielacmr@usp.br)
Histórias que envolvem uma “donzela na torre” estão presentes nos mais antigos mitos da humanidade. De acordo com a escritora australiana Kate Forsyth, esse arquétipo possivelmente existe desde os contos transmitidos oralmente, passando pela mitologia grega, narrativas tradicionais judaicas e contos medievais.
Uma das versões mais conhecidas dessa figura é a personagem Rapunzel, popularmente difundida por meio de um conto dos irmãos Grimm publicado no século 19. Diversos escritos anteriores contam uma história muito parecida, enquanto adaptações posteriores sofreram alterações drásticas quase irreconhecíveis, mas que ainda mantêm a essência do original.
Antecedentes
O primeiro conto que apresenta um enredo mais parecido com o de Rapunzel chama-se Petrosinella, que significa “salsinha”, escrito pelo italiano Giambattista Basile no início do século 17. Na narrativa, uma mulher grávida tem o desejo de comer salsa e seu marido rouba a planta do jardim de uma ogra. Em resposta, a criatura sequestra a criança recém-nascida e a tranca em uma torre. Anos depois, um príncipe encontra a jovem prisioneira e eles se apaixonam. A ogra descobre e tenta impedir esse relacionamento, mas é morta pela garota e seu amante.
Já em 1697, a francesa Charlotte-Rose de Caumont de La Force publicou uma adaptação do conto de Basile, com o título Persinette, que também significa “salsinha”. Essa é a primeira história que contém grande parte dos elementos mais conhecidos: o roubo da horta, o sequestro da criança por uma mulher com poderes misteriosos, os cabelos dourados utilizados para subir a torre, a cegueira do príncipe e sua cura com as lágrimas da moça.
Mais de um século depois, em 1812, é publicada a versão dos irmãos Grimm. Nela, uma mulher grávida passa a ter um desejo insuportável de comer uma planta denominada “rapunzel” da horta vizinha, guardada por uma feiticeira muito temida chamada Gothel. O marido decide pular o muro para roubá-la, mas a bruxa o encontra e faz com que o casal entregue a criança recém-nascida. A menina é batizada de Rapunzel e trancada em uma torre onde só é possível subir por meio das tranças da garota, já crescida.
Certo dia, um príncipe a encontra e faz eventuais visitas quando a feiticeira não está presente. Gothel descobre tudo, corta os cabelos da menina e a abandona em um deserto. O príncipe, desolado, joga-se pela torre e perde a visão. Depois de vagar muitos dias sem rumo, escuta a voz de Rapunzel e a encontra cuidando dos filhos gêmeos que concebeu. A garota derruba lágrimas nos olhos do príncipe e ele volta a enxergar.
Paula Rossi Benites, professora de Literatura, acredita que a essência do conto dos irmãos Grimm seja a relação de uma filha com a sua mãe. A garota é audaciosa e ousada ao receber as visitas do príncipe, considerando o padrão de comportamento feminino do século 19, mas também é passiva ao depender de um pedido de casamento do homem para decidir sair de sua torre. De qualquer forma, o ponto principal se mantém: “uma heroína que precisa amadurecer e traçar seu próprio destino”, diz a professora.
Adaptações cinematográficas
Uma das primeiras adaptações que ainda possui registros é The Story of Rapunzel (1951), um filme stop-motion de curta-metragem dirigido por Ray Harryhausen. Apesar de algumas diferenças, como a utilização de um feitiço pela bruxa para trançar os cabelos da garota e a menção dos rabanetes, o enredo é bastante fiel à história original. Existe até a mesma frase dita por Rapunzel para a feiticeira: “Como é que você demora tanto para subir até a janela se o príncipe subiu tão rápido?”, que faz a mãe Gothel descobrir todo o esquema da jovem e o rapaz em uma das versões mais recentes da história dos irmãos Grimm.
No filme em live-action Rapunzel oder Der Zauber der Tränen (1988), título que significa “Rapunzel ou a Magia das Lágrimas”, o conto da garota dos cabelos longos é misturado a uma história menos conhecida dos irmãos Grimm, A Donzela Malvina (1815), que também envolve a fuga de uma torre.
Já Barbie como Rapunzel (Barbie as Rapunzel, 2002) é uma adaptação mais conhecida, que apresenta inúmeras alterações em relação ao conto original. O enredo possui personagens como a dragão Penelope, o príncipe Stefan, as três irmãs e um coelho, além de uma escova mágica que se transforma em um pincel ao final do filme. Também existem referências a outros contos de fada, como Cinderela e Branca de Neve, a exemplo do fato que a protagonista trabalha como criada no castelo de Gothel e em algum momento decide ir a um baile para encontrar o príncipe.
Caminhos da Floresta (Into the Woods, 2014) é um filme baseado em um musical homônimo de Stephen Sondheim. Ele mistura diversos contos de fada para montar uma história que envolve roubos de horta, feijões mágicos, capas vermelhas e poderes mágicos. A Rapunzel (MacKenzie Mauzy) do filme é irmã de um dos personagens principais e é mandada para um pântano, em vez do deserto do conto original. Já a mãe Gothel é interpretada por Meryl Streep, que canta a música Stay With Me quando descobre os encontros de Rapunzel com o príncipe.
De acordo com Paula, essas adaptações são benéficas para a difusão dos contos antigos, apesar das mudanças: “Para fazer sentido às novas gerações, a história se molda, mas não perde suas raízes”. Ela também afirma que o conto maravilhoso está incutido na identidade cultural da Humanidade por meio dos elementos históricos e simbólicos presentes nos contos maravilhosos e também em suas novas versões.
“Foi somente entre os séculos 17 e 19 que narrativas até então totalmente oralizadas foram transcritas por Basile, Perrault e pelos Irmãos Grimm”, diz ela. “Ou seja, não se pode dizer que nenhum conto maravilhoso seja fiel ao original simplesmente porque o ‘original’ se perdeu no tempo. O cinema somente adaptou toda a história para nossa época e para nossa realidade, conservando a essência do conto através da base de seu enredo e de seus elementos simbólicos.”
Enrolados (Tangled, 2010)
A adaptação da Disney é possivelmente a mais conhecida, com uma bilheteria de quase 600 milhões de dólares que superou ao penúltimo filme da saga Harry Potter (2001-2011) nos Estados Unidos na época de seu lançamento. O enredo apresenta mudanças e semelhanças com a narrativa original.
Logo no início, aparece a figura da feiticeira que cuida de uma planta — no caso, uma flor dourada com poderes de cura e rejuvenescimento. Pouco depois, a imagem da mulher grávida, que nesse caso é uma rainha, também é mostrada, mas em vez do desejo de comer algo em específico, ela está doente e só poderia sobreviver com o uso de magia. A flor é roubada por soldados do reino e transformada em sopa para a mulher.
Os poderes mágicos da planta são transmitidos para o cabelo da menina recém-nascida, tornando-o dourado. Por mais que por motivos diferentes — no caso, a continuação do uso da magia rejuvenescedora em vez da vingança pelo roubo —, o resultado final é o mesmo: a bruxa sequestra a criança e a tranca em uma torre alta, isolada de tudo e todos.
A história é narrada por Flynn Rider, que seria o príncipe do conto, mas no filme é um ladrão procurado pela polícia. Ele sobe na torre para escapar dos soldados e encontra a garota. “Essa Rapunzel é uma moça impetuosa, muito diferente da Rapunzel dos Irmãos Grimm, que quando viu que não era sua mãe Gothel quem subia por suas tranças, assustou-se muito, já que nunca havia visto um homem”, diz Paula Rossi Benites. “Em lugar disso, como defesa ao estranho que invadira sua casa, a heroína moderna o agride na cabeça com uma frigideira”.
A Rapunzel do filme, em vez de ser expulsa por sua mãe da torre, decide sair por motivos pessoais: o sonho de observar as lanternas flutuantes que sempre apareciam em seu aniversário. Ela utiliza Flynn Rider como guia nessa aventura.
Muitos acontecimentos depois, envolvendo tavernas medievais e passeios pelo reino, que não estavam presentes no conto original, a mãe Gothel encontra a garota fora de sua torre e planeja um truque para convencê-la a voltar — e Rapunzel retorna. Porém, durante os passeios pelo mundo real, descobriu que a mulher não é sua verdadeira mãe e decide confrontá-la por isso.
Gothel, então, tenta prendê-la na torre. O ladrão aparece para salvá-la e o conto original retorna, mas em vez de cegá-lo, a vilã perfura as costas do homem com uma faca. A garota tenta curá-lo com os poderes de seu cabelo, mas Flynn Rider decide cortar suas mechas para remover a magia e impedir que a falsa mãe a aprisionasse. Ao perceber que não iria conseguir salvá-lo, Rapunzel chora e suas lágrimas curam a ferida do homem, tal como na história original. A feiticeira morre e ambos vivem felizes para sempre no reino.
Guilherme Morais, doutor em Estudos Literários pela UNESP (Universidade do Estado de São Paulo), concorda que o filme busca se adequar às transformações sociais que ocorreram desde o século 19 até hoje. Ele diz que as produções cinematográficas apresentam arquiteturas textuais diferentes de contos antigos, e por isso não podem ser cobradas pela fidelidade ao texto-fonte. “Enquanto no conto temos figuras de linguagem e descrições que nos auxiliam a imaginar o maravilhoso, as metamorfoses e o impossível, no cinema contamos com recursos como a computação gráfica, os efeitos 3D e, especialmente, os efeitos especiais”, afirma.
“Temos o acréscimo do amigo camaleão de Rapunzel, Pascal, o que traz elementos cômicos ao filme”, continua. “Essa comicidade, ausente no conto dos irmãos Grimm, é uma característica dos filmes e animações da Disney, cujo objetivo é nos transportar para o mundo lúdico”. Guilherme ainda diz que, em vez de discutir a fidelidade, deve ser abordada a intertextualidade, na qual os textos dialogam entre si e com outras obras anteriores.