Há 20 anos, em 30 de julho de 2000, o brasileiro Rubens Barrichello conquistava sua primeira vitória na Fórmula 1, depois de uma corrida de intensa recuperação em que teve que se superar a cada volta.
Uma superação técnica e simbólica. Mais do que a vitória de um corredor, a primeira colocação de Barrichello representou a volta de um brasileiro ao topo do pódio na principal categoria do automobilismo mundial desde a morte de Ayrton Senna, seis anos antes. Uma volta do Brasil ao protagonismo da disputa e uma volta do orgulho brasileiro por seus pilotos.
Os heróis de Rubinho
Ainda que não seja o esporte mais popular no Brasil, a Fórmula 1 exercia, e ainda exerce, muita influência sobre o imaginário e o orgulho dos torcedores brasileiros. Muito disso se deve aos grandes nomes da modalidade vindos do Brasil. Pilotos que marcaram gerações e fizeram com que o “país do futebol” tivesse nomes de peso também nos motores.
Personagens como Emerson Fittipaldi e Nelson Piquet tiveram muitas conquistas em seu tempo na Fórmula 1, sendo dois títulos de Emerson e três de Piquet. Conquistas essas que acabaram criando um interesse do brasileiro pela Fórmula 1. Mas nada que se compare à dimensão que ganhou o também tricampeão Ayrton Senna, tanto por sua qualidade como piloto, como por sua chocante e precoce morte, em 1994.
Justamente o vazio deixado pela morte de Senna, gerou uma espécie de pressão sobre o jovem Barrichello para sucedê-lo. Para o jornalista Flavio Gomes, que cobria Fórmula 1 na época, essa expectativa sobre Rubens existia, mas muito pode ter sido aceita pelo próprio: “Ele passou a vestir essa carapuça de sucessor, o cara que tem que substituir o grande ídolo no coração dos brasileiros, o que é uma bobagem. Isso pode ter dificultado um pouco para o Rubinho nos primeiros anos depois da morte do Senna”.
O caminho a Hockenheim
Rubinho estreou na Fórmula 1 em 1993, correndo pela Jordan. Marcada por altos e baixos, a passagem de Barrichello pela equipe teve um primeiro ano ótimo e, em 1994, quando morreu Ayrton Senna, o piloto caiu de rendimento. Ainda assim, conseguiu a 6ª colocação no Campeonato Mundial. Nos dois anos seguintes, porém, o brasileiro teve uma queda em sua performance, que quase custou sua permanência na F1.
Em 1997, após quatro anos na Jordan, Rubinho chega, por convite do ex-automobilista tricampeão Jack Stewart, à equipe que ele acabara de fundar, e que levava seu sobrenome. Depois dos anos ruins na Jordan, a Stewart foi um ponto de virada em sua carreira.
“Em 1996, no último ano [de Rubinho] na Jordan, ele estava praticamente fora da Fórmula 1. A Stewart foi como aquele tronco na enchente, porque era sair de uma equipe média, mas já estruturada, para correr em uma equipe estreante, quando o Rubinho já esperava ir para uma equipe grande”, aponta Flávio Gomes. “Na Stuart, ele renasceu. Ele teve uma ajuda do Jack Stewart muito grande, ele foi uma espécie de tutor que o Barrichello não teve na Jordan com sua experiência, sua vivência, seu conhecimento e tudo mais. Esses três anos que ele correu de Stewart mostraram novamente o Barrichello ao mundo da Fórmula 1”.
E Barrichello foi mesmo brilhante na equipe. Em seus primeiros dois anos, chegou quatro vezes entre os dez primeiros colocados e, em 1999, seu melhor e último ano na Stewart, Rubinho subiu ao pódio três vezes, conseguiu uma pole-position – quando o piloto inicia a corrida na primeira posição do grid de largada – e, no GP de Interlagos, ficou 23 voltas na liderança, tendo que abandonar a corrida após problemas com o motor.
O bom desempenho levou a uma proposta da McLaren, que Rubinho recusou para aceitar a maior oportunidade de sua carreira até então, ainda maior que a McLaren. Em 2000, Barrichello passa a defender a scuderia Ferrari, correndo, como segundo piloto, ao lado do alemão Michael Schumacher.
Da desilusão ao topo
Antes de entrar efetivamente na corrida que mudou a carreira de Barrichello, é importante ressaltar a relação dos brasileiros no GP da Alemanha. Em Hockenheim, Fittipaldi conquistou os primeiros pontos de sua carreira, ocupando um quarto lugar no seu ano de estreia, 1970. Piquet e Senna, por sua vez, chegaram ao topo do pódio no circuito por três oportunidades cada.
No ano de 2000, as primeiras corridas pareciam apontar ao tricampeonato de Michael Schumacher. Foram cinco vitórias nos primeiros oito circuitos. Porém, na 11ª etapa do campeonato, o alemão vinha pressionado por ter abandonado as últimas duas provas, o que permitiu aos pilotos da McLaren, o finlandês Mika Häkkinen e o escocês David Coulthard, a aproximação na tabela. O brasileiro estava em quarto no campeonato, porém um pouco distante (36 pontos contra 48 do finlandês).
Nos treinos classificatórios em Hockenheim, a imprevisibilidade da corrida já era testada. Em meio a fortes chuvas, a Ferrari teve complicações. Por conta das mudanças que a scuderia havia promovido, os dois carros tiveram problemas elétricos e mecânicos. Com isso, o alemão fez quase todo o treino com o carro reserva, conquistando a segunda colocação no grid de largada, atrás de Coulthard. Rubinho, que teve pouco tempo na sessão, ficou apenas no 18º lugar.
O jornalista e blogueiro Rodrigo Mattar explica que, na Ferrari, havia uma preferência pelo alemão, ainda mais em um momento de ameaça por outros pilotos: “O Michael Schumacher era claramente o primeiro piloto, e o Rubens ali não podia mais do que ser segundo, era uma equipe voltada para o alemão”.
No domingo, contudo, havia uma esperança de que, correndo em seu país, Schumacher conseguisse retomar a ponta. Tudo foi por água abaixo quando, na primeira curva das 45 voltas, o alemão choca-se contra a Benetton de Fisichella e abandona uma corrida pela terceira vez seguida. Com Barrichello nas últimas colocações, parecia que o fim de semana seria desastroso para a Ferrari, que via as McLarens ultrapassando o primeiro piloto da equipe.
O que ninguém esperava era que o brasileiro fizesse uma das melhores recuperações já vistas na Fórmula 1. Beneficiado pela falha de Jenson Button, que estava em 16º e não conseguiu ligar o motor na largada, além das várias ultrapassagens, Rubinho terminou a primeira volta já no top 10. A corrida de ataque seguiu e, em questão de cinco voltas, conseguiu alcançar o quinto lugar, ultrapassando nomes como Eddie Irvine (Jaguar), ex-companheiro na Jordan e quem o brasileiro substituiu na scuderia italiana.
Flavio Gomes aponta que a saída de seu companheiro de equipe da corrida facilitou essa recuperação: “O Schumacher era melhor, então com o Schumacher na pista, ele se tornou favorito à vitória, ainda mais correndo na Alemanha”. Sem o alemão no páreo, Rubinho poderia realizar as manobras necessárias para alçar posições melhores.
Até a 15ª volta, Barrichello ultrapassou De la Rosa (Arrows) e Trulli (Jordan), alcançando a terceira posição. Apesar da estratégia da equipe de realizar duas paradas, para começar com o carro mais leve de combustível e ultrapassar o máximo de carros possíveis, não se esperava tamanha recuperação. Por ter menos gasolina, o piloto teve que parar nos boxes na 17ª volta, retornando à pista em sexto.
Atrás das McLarens, que se isolavam na ponta, com Häkkinen na liderança, das Jordans de Trulli e de Frentzen, e da Arrows de De la Rosa, o brasileiro teve que novamente voltar a atacar. Em seguida, Frentzen também fez um pit-stop, fazendo com que Rubinho alcançasse novamente a quinta colocação. O ataque era tão forte que, na vigésima volta, conseguiu fazer a volta mais rápida da corrida, marcando 1min44s300.
De repente, o primeiro fator que mudou a corrida…
Na 27ª volta, um francês invadiu a pista para protestar contra a Mercedes-Benz, empresa da qual ele havia sido demitido por motivos de saúde. Com isso, o Safety Car foi acionado, fazendo a distância entre os pilotos diminuírem. Essa foi a deixa perfeita para vários pilotos fazerem suas paradas de reabastecimento e trocas de pneu, inclusive a Ferrari, que conseguiu devolver Rubinho à pista melhor do que estava, na terceira colocação.
À sua frente, apenas Häkkinen e Trulli, seguido por De la Rosa, Frentzen e Coulthard. Mal o carro de segurança saiu da pista, com a prisão do invasor, ele teve que voltar, devido ao incidente envolvendo o brasileiro Pedro Paulo Diniz, mantendo a proximidade entre os carros. A corrida reinicia-se já na volta de número 30, com Rubinho, antes de tudo, defendendo a sua posição, o que consegue fazer magistralmente.
Eis que surge o segundo fator de mudança…
Começa a chover na área dos paddocks. Contrariando a equipe, Barrichello recusa-se a recolher-se aos boxes e trocar os pneus. Mattar aponta que o risco tomado pelo piloto estava relacionada às condições da pista: “A decisão tomada de não parar para pôr o pneu biscoito, que é o pneu apropriado para pista molhada, foi pelo traçado, que em alguns trechos estava molhado e em outros não”. Além disso, o pneu para chuva, em piso seco, como estava em alguns pontos, perde a aderência, o que prejudicaria o desempenho.
Foram poucos os pilotos que fizeram o mesmo que Rubinho, excepcional piloto de chuva. Apenas Coulthard, que pararia posteriormente, Frentzen, e o também brasileiro Ricardo Zonta, arriscaram – o último, apesar de não completar a prova, também fez uma ótima corrida, saindo da 12ª colocação e alcançando o quarto lugar. Dessa forma, após 35 laps, Rubinho finalmente chega à primeira posição, a qual não deixaria escapar.
Barrichello, inclusive, contou em coletiva após a corrida a motivação para a escolha contra a própria equipe, ciente dos riscos tomados: “Naquele momento, foi uma decisão para a vitória ou para não fazer pontos”.
Enquanto o brasileiro tenta se distanciar na área da floresta, local com a pista seca e que, portanto, favorecia seu carro, Häkkinen vinha muito forte na parte molhada, conseguindo tirar segundos preciosos e já posicionando-se na segunda posição. Porém, a estratégia de Barrichello auxiliou muito nessa distância e, faltando seis voltas para o final, a diferença entre os pilotos era de dez segundos.
Nas últimas três voltas, a pista começa a secar, o que favorece ainda mais o plano de Rubinho. A torcida alemã encontrou a quem torcer e, nas últimas curvas, faz muito barulho pela vitória. Em 1h25min34s418, Rubens Barrichello conseguiu quebrar as expectativas de uma prova perdida para, após quase sete anos, voltar a tocar o tema da vitória brasileira, imortalizado por Senna, nas transmissões e no coração dos brasileiros.
O primeiro lugar não foi apenas comemorado efusivamente pelo piloto, que buscava essa conquista desde sua estreia, em 1993, mas também por quase todas as scuderias, inclusive as que ele havia corrido anteriormente e até mesmo pela McLaren. Junto disso, Schumacher também comemorou muito, não só por seu companheiro de equipe, mas também porque impediu que Häkkinen e Coulthard ultrapassem-no na classificação.
Gomes opina que essa corrida, por todos os fatores anormais e surpreendentes da prova, além da apreensão por essa conquista, foi um marco no automobilismo: “Ele leva um ‘tempinho’ pra ganhar a primeira corrida e ganha uma corrida sensacional. É uma das maiores vitórias que eu já vi, é uma das maiores vitórias da história da Fórmula 1 pelas circunstâncias em que aconteceu”.
No topo do pódio, a emoção comovia a todos. Após a execução dos hinos do Brasil e da Itália (por conta da Ferrari), com Rubinho chorando copiosamente na bandeira brasileira, Häkkinen e Coulthard, que ficaram com a segunda e a terceira posição, respectivamente, ergueram-no ao ar, representando como essa vitória e a forma como ela aconteceu marcou a todos os presentes e os que a assistiram.
Um novo piloto
Os sete anos na Fórmula 1 sem ganhar uma corrida certamente incomodavam Rubinho. Muito desse incômodo também vinha das brincadeiras e provocações que os torcedores brasileiros faziam com o nome de Barrichello, o tratando como se fosse um mau corredor, o que nunca foi.
Para Rodrigo Mattar e para Flavio Gomes, a opinião brasileira é que foi mais afetada, enquanto a opinião da crítica especializada e internacional nunca foi negativa em relação a Rubinho. “Lá fora eu acho que o respeito ao Rubens sempre existiu, muito mais do que o brasileiro respeita. O brasileiro é muito galhofeiro, é metido a brincalhão, gosta de fazer uma palhaçada, e o Rubens foi alvo de piadas muito jocosas. Mas como piloto, ele é excepcional” aponta Rodrigo, enquanto para Flavio, “a opinião internacional da mídia esportiva especializada não mudou grande coisa, porque as pessoas que conhecem Fórmula 1 sabiam que ele era um piloto com todas as condições para ganhar uma corrida e que, numa equipe grande, isso iria acontecer mais cedo ou mais tarde”.
Desde seu triunfo em Hockenheim, Rubinho alcançou mais dez vitórias na carreira, tendo sido duas vezes vice-campeão mundial e, com mais de 320 Grandes Prêmios disputados, se tornou o piloto a mais vezes e por mais tempo correr na Fórmula 1. Depois da Ferrari, defendeu ainda equipes como Honda, Brawn e Williams na modalidade.
Desde que saiu da Fórmula 1, correu na Fórmula Indy, em que conquistou bons resultados e, na Stock Car Brasil, em que foi campeão no ano de 2014. Com uma carreira brilhante no automobilismo e sucesso em todas as modalidades por que passou, Barrichello é um dos maiores nomes do esporte no Brasil.