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Cinemateca Brasileira: a cultura cinematográfica pede socorro

“A Cinemateca é uma conquista histórica do cinema brasileiro”, afirma a comunidade cinematográfica brasileira por meio de um manifesto que conta com o apoio de diversas entidades e associações, nacionais e internacionais, ligadas ao audiovisual. “Ela é a memória viva de nosso país e o testemunho da grandeza atingida por nosso cinema ao longo da …

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“A Cinemateca é uma conquista histórica do cinema brasileiro”, afirma a comunidade cinematográfica brasileira por meio de um manifesto que conta com o apoio de diversas entidades e associações, nacionais e internacionais, ligadas ao audiovisual. “Ela é a memória viva de nosso país e o testemunho da grandeza atingida por nosso cinema ao longo da sua existência.”

A instituição, responsável pelo maior acervo audiovisual da América do Sul, é o mais antigo local de preservação de cinema do país. Contudo, a Cinemateca – prometida à ex-Secretária da Cultura, Regina Duarte, mas já descartada – sofre com uma crise financeira que se arrasta desde 2013 e está cada vez mais grave, colocando em risco a continuidade de seu funcionamento.

Artistas e funcionários em manifestação em prol da Cinemateca. [Imagem: Funcionários]

A história da Cinemateca Brasileira

A Cinemateca é a instituição responsável pela preservação e difusão da produção audiovisual brasileira. Esses arquivos são colocados sob sua guarda por meio de doações, depósitos legais ou depósitos voluntários. Localizada hoje no antigo matadouro municipal de São Paulo, na Vila Clementino, sua sede conta com salas de cinema, biblioteca e um jardim aberto. Mas sua história começa bem antes de ganhar esse espaço.

Fachada da Cinemateca, no Largo Senador Raul Cardoso. [Imagem: Jose Cordeiro/SPTuris]
A história da Cinemateca tem início em 1940, com a fundação do Primeiro Clube de Cinema de São Paulo, cuja proposta era estudar o cinema como arte independente. No ano seguinte, o Clube é fechado por órgãos de repressão da ditadura do Estado Novo. Em 1946, o Segundo Clube de Cinema de São Paulo é criado e, três anos depois, é aprovado um acordo com o Museu de Arte Moderna de São Paulo para a criação da Filmoteca do MAM/SP.

Em 1956, a Filmoteca se desliga do Museu de Arte Moderna, transformando-se em uma sociedade civil sem fins lucrativos – a Cinemateca Brasileira. E em 1962, é criada a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), cuja finalidade é auxiliar financeiramente a fundação, atuando na difusão e na viabilização de projetos para o desenvolvimento de suas  atividades.

Somente em 1988 o prefeito Jânio Quadros cede o espaço do antigo matadouro da cidade à instituição. A restauração dos galpões levou nove anos e as características estéticas e históricas recompostas foram complementadas por elementos contemporâneos e adaptadas de forma a permitir o isolamento necessário das áreas técnicas.

Em 2003, a Cinemateca é incorporada pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura e, graças aos recursos investidos pelo antigo Ministério da Cultura, em parceria com a SAC, dá um grande impulso nas suas atividades no período entre 2008 e 2013.

Porém, em 2018, foi assinado, em uma parceria entre o antigo Ministério da Cultura e o Ministério da Educação, o Contrato de Gestão. A Cinemateca passou então a ser administrada por uma Organização Social (associação privada sem fins lucrativos, que recebe subvenção do Estado para prestar serviços de interesse público), a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp).

No final de 2019, o Ministério da Educação cancelou o contrato da TV Escola com a Acerp (Fundação Roquette Pinto) e, consequentemente, também o da Cinemateca, a princípio vigente até 2021. Além disso, o governo deve cerca de R$ 11 milhões à instituição, referentes aos anos de 2019 e 2020.

Sessão de cinema ao ar livre no jardim da Cinemateca. [Imagem: Divulgação]
Atualmente, o acervo da Cinemateca é formado por cerca de 250 mil rolos de filmes – são obras de ficção, documentários, filmes publicitários, telejornais e registros familiares produzidos desde 1910. Ainda, conta com mais de um milhão de documentos relacionados ao cinema, como roteiros, cartazes, livros e fotos. Dessa forma, o aprimoramento dos procedimentos de preservação e restauração do acervo está entre as principais preocupações da instituição, assim como as condições de guarda desses arquivos.

O seu Laboratório da Imagem e do Som é hoje um dos mais completos laboratórios de processamento audiovisual da América Latina. A gestora de projetos culturais audiovisuais, Beatriz Lindenberg, ressalta que, durante o mandato de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, “a Cinemateca era impecável, tudo lá era muito bom, tanto que chegou a ser, e ainda é hoje, uma das quatro mais importantes cinematecas no mundo de restauro de filme – isso não é pouco”.

Após quatro incêndios e a perda de milhares de rolos de filmes em nitrato de celulose, o investimento na construção de novos espaços de guarda de matrizes é inevitável para responder ao natural crescimento do acervo e permitir a implantação de espaços com condições técnicas que atendam às especificidades dos diferentes tipos de suporte presentes no acervo da fundação.

A Cinemateca conta ainda com duas salas de exibição equipadas para a projeção de diferentes formatos, desde a clássica película de 35mm até as tecnologias mais recentes do cinema digital. Em atividades de difusão cinematográfica, é oferecido ao público programações que contemplam grandes clássicos, raridades e obras contemporâneas do cinema nacional, incluindo filmes que não se enquadram no modelo do mercado de produção e exibição.

 


Importância do Cinema Nacional

As obras audiovisuais são parte de uma história e tradição, são elementos artísticos, culturais e sociais que integram o patrimônio cultural do país. Esses arquivos, de diferentes gêneros e tipologias, registram os mais diversos aspectos do campo cinematográfico e são de suma importância para a cultura de um povo.

Os primeiros filmes brasileiros tinham caráter documental e as obras ficcionais tiveram início apenas em 1908. Contudo, o cinema nacional foi substituído por produções hollywoodianas após a Primeira Guerra Mundial. O Cinema Novo, que estreava na década de 1960, foi responsável por um grande desenvolvimento da cinematografia brasileira.

Durante o regime militar houve um paradoxo: o mesmo Estado autoritário que financiava as produções também as censurava. Surgiu, então, o Cinema Marginal, de caráter experimental e radical, composto por cineastas contrários ao industrialismo trazido às produções pela Embrafilme. Próximo ao fim da ditadura, o cinema brasileiro passou a documentar as memórias desse período, principalmente de seus “anos de chumbo”.

A década de 1990 trouxe aos filmes nacionais uma diversidade de temas e enfoques, e as novas tecnologias levaram a um aumento nas produções. Todavia, estabeleceu-se um monopólio das grandes produções no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, fortemente criticado quanto à falta de representatividade e à repetição de gêneros e elencos.

Elenco do filme Acabaram-se Os Otários, primeiro filme brasileiro falado. [Imagem: Cinemateca Brasileira]
A indústria cinematográfica movimenta cerca de 25 bilhões de reais ao ano e emprega 98 mil pessoas em todo o país, apesar de sofrer com a falta de investimentos e incentivos por parte do governo. Beatriz Lindenberg, que é uma das fundadoras do Instituto Marlin Azul, fala sobre um período de reconhecimento internacional do cinema brasileiro e uma produção que passou a ser regionalizada, graças às políticas de fomento da Ancine e do antigo Ministério da Cultura. “Era um reconhecimento em todas as linguagens, em todos os gêneros, a gente vinha numa escalada ao longo da década, [num momento em que] o Brasil começou a fazer também um trabalho de abertura da cinematografia para fora do eixo Rio-São Paulo”, afirma Beatriz.

Hannah Chequer-Queiroz, cineasta brasileira que atua como produtora em Los Angeles, acrescenta que “por ser um meio visual, o cinema traz uma popularização da cultura, que é algo muito importante. Filmes como Central do Brasil, Auto da Compadecida e Que Horas Ela Volta? refletem justamente o público que normalmente não se enxerga em um museu de arte ou uma biblioteca”.

Dessa forma, fica claro que o descaso do governo com a Cinemateca não afeta apenas a instituição, mas tudo que ela representa para o universo cinematográfico brasileiro. Toda a história do audiovisual nacional, sua difusão à população e a possibilidade de preservar as produções futuras estão em jogo quando se trata dos ataques à Cinemateca Brasileira. Além de compreender a importância de um cinema que represente as diferentes realidades nacionais, é essencial entender a necessidade de se conservar a memória composta por todas essas produções.

 


S.O.S. Cinemateca

Devido à falta de repasses e de recursos por parte do Governo Federal e à indefinição quanto à sua gestão, a crise da Cinemateca chega a índices alarmantes. Os salários dos funcionários estão atrasados e há dificuldades inclusive de pagar a conta de luz – um apagão elétrico atingiria diretamente a climatização das áreas de conservação, podendo causar incêndios por processos de autocombustão de rolos de filmes.

Para resolver o limbo jurídico no qual a entidade se encontra, o governo cogitou a criação de um contrato emergencial para a manutenção das atividades – a reestatização com Regina Duarte à frente do projeto, que não foi adiante – e até o fechamento da Cinemateca. A situação levou o Ministério Público Federal a solicitar esclarecimentos sobre a falta de pagamentos e passou a envolver também o Ministério Público de São Paulo, que investiga a intenção do Governo Federal de fechar o órgão.

O prefeito de São Paulo, Bruno Covas, chegou a iniciar um diálogo com a Secretaria de Governo, a fim de transferir a gestão da instituição para o município. O Ministério do Turismo e a Secretaria Especial da Cultura, contudo, afirmaram que a Cinemateca entra em uma fase de reincorporação pela União e não será fechada. O projeto de estatização obedeceria à necessidade do Ministério de realocar funcionários de carreira.

Sobre a postura do governo, especialmente em relação à questão de Regina Duarte, Beatriz Lindenberg acredita que “é uma incongruência, são sinais muito atravessados, que são mais uma expressão do que está sendo esse governo – o governo da destruição”. Ela salienta, ainda, que governos que se relacionam com a sociedade de forma autoritária tendem a atacar a cultura, “porque a cultura se manifesta de uma maneira plural, são muitas vozes, é uma expressão da liberdade”.

Regina Duarte já é carta fora do baralho para cargo na Cinemateca Brasileira. [Imagem: Adriano Machado/Reuters]
A Acerp comunicou, em ofício enviado à Secretaria Especial da Cultura, que a melhor solução seria a regularização do contrato em vigor, mas que, apesar de discordar do fechamento até o final do ano e a reestatização da Cinemateca, vai colaborar. A Organização Social pediu ainda para que sejam regularizados os repasses da Secretaria junto a ela.

Após várias demissões e mais de três meses sem receber salários, os funcionários entraram em greve e pedem apoio financeiro em uma campanha pública. Eles afirmam que o ofício do Ministério Público Federal e a ação civil pública podem ajudar a restaurar os repasses pendentes, mas não garantem a continuidade dos trabalhos enquanto a gestão e o orçamento permanecerem suspensos.

A campanha pública tem o intuito de amenizar os efeitos dos atrasos, redistribuindo as doações aos mais de 150 trabalhadores contratados pela Acerp ou por empresas terceirizadas. O pedido lembra que “não podemos esquecer que sem trabalhadores não se constroem nem se preservam acervos, ainda mais em uma instituição como a Cinemateca, cujo conhecimento e competência na preservação e difusão do patrimônio audiovisual brasileiro são construídos e atualizados diariamente, na totalidade das suas atividades correntes e de médio e longo prazo”.

Os trabalhadores da Cinemateca ressaltam que a importância da instituição está, sobretudo, na preservação da enorme variedade de registros presentes no acervo, além da difusão da cinematografia e no atendimento à pesquisadores e produtores. “Com sua atuação, a instituição oferece possibilidades para novas produções cinematográficas e novas reflexões em relação à nossa sociedade e à nossa cultura”, destacam.

Artistas e apoiadores se manifestaram, no dia 06 de junho, em apoio à Cinemateca e em repúdio à falta de apoio à cultura por parte do Governo Federal. O ato, chamado SOS Cinemateca, foi organizado pela Associação Paulista de Cineastas (Apaci). Outro movimento, o Cinemateca Acesa, que reúne mais de 40 entidades do cinema, divulgou um vídeo em que diversos artistas pedem apoio à campanha dos funcionários.

Cineastas, técnicos, artistas e apoiadores pedem socorro à Cinemateca. [Imagem: Piero Sbragia]
No manifesto, divulgado em redes sociais e no site Benfeitoria, os trabalhadores afirmam: “por acreditarmos que a interlocução da Cinemateca Brasileira com a comunidade cinematográfica é essencial para o seu urgente e devido resgate, reivindicamos a formação de uma comissão com membros indicados pelas principais entidades cinematográficas do país a fim de que se estabeleça um contato formalizado e periódico”.

Hannah Chequer-Queiroz lembra que não só o Brasil, mas diversos países testemunharam o benefício do bom mantimento de uma cinemateca nacional e afirma que “a preservação vai muito além do simples legado histórico e contribuição à cultura, pois também promove o cinema clássico às novas gerações”.

 


Como ajudar a Cinemateca:

Contribua: campanha online para apoio financeiro aos trabalhadores

Assine: petição “Cinemateca Brasileira pede socorro”

Confira: https://www.youtube.com/watch?v=5KQeYWSz9zs

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