“História não é bula de remédio nem produz efeitos rápidos de curta ou longa duração.” Esse excerto é uma prévia de toda narrativa do livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, escrito pela antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. A obra relata as profundas raízes do autoritarismo no Brasil, desde a invasão dos estrangeiros, nos tempos coloniais, à recriação de modos autoritários no presente. Longe de culpabilizar somente o passado, o livro questiona como a contemporaneidade usa do monopólio da verdade e do saudosismo de um passado para defender a moralidade da família e da ordem civilizatória em momentos de crise e mudanças institucionais no Brasil.
Lilia utiliza-se de oito capítulos para desenvolver uma síntese que coloca o leitor em contato direto com os aspectos que moldam as faces mais obscuras da arbitrariedade brasileira. Os tópicos são nomeados como Escravidão e Racismo, Mandonismo, Patrimonialismo, Corrupção, Desigualdade Social, Violência, Raça e Gênero, e Intolerância, que traduzem uma relação direta com as configurações do autoritarismo brasileiro. Diante de 280 páginas, a autora busca tratar a problemática com estudos sólidos, pesquisas e dados estatísticos.
Na introdução, Lilia Moritz busca desmistificar a cordialidade de um Brasil acolhedor e pacífico, características que permeiam na sociedade brasileira. A autora utiliza de uma contextualização histórica para relatar a construção de uma política brasileira calcada no abuso de poder desde a monarquia.
A alimentação de um regime patriota e nacionalista, criada pela Corte que se instalava pelo Brasil, servia como ferramenta de manipulação de um país que utilizou e se utiliza da eufemização das relações como, por exemplo, o racismo velado . Tal aspecto pode ser visto, na falsa crença de uma democracia racial que prega a inexistência do racismo no Brasil. O regime escravocrata que vigorava no passado, segundo o livro, “pressupunha a propriedade de uma pessoa por outra e criava a forte hierarquia entre brancos que detinha o poder e negros que deveriam obedecer” essa maneira de ser portar já revelava que o país não era cordial com a leva de negros que chegaram aqui e que Deus não era é brasileiro. De início é possível observar que a escritora não traz opiniões sem fundamentos, mas fatos que comprovem as falidas argumentações acerca da cordialidade conceituada por Sérgio Buarque de Holanda.
Ao longo do desenvolvimento do livro, a antropóloga relata a dizimação de nativos perante terras invadidas e culturas desrespeitadas. A obra utiliza-se, também, de sociólogos, como Gilberto Freyre que, ao escrever Casa-Grande & Senzala, ameniza a violência sofrida por minorias em nome de uma miscigenação. As violações do corpo da mulher negra, a palmatória e o uso da chibata, como mecanismo de domesticação dos senhores de terras, aparecem no primeiro capítulo do livro como um divisor que reflete condutas autoritárias. A naturalização de tais violências definiu desigualdades e fez de raças marcadores sociais.
No segundo capítulo, Mandonismo, a figura do senhor de terras e os interesses privados colocados acima do bem público são criticados por Lilia. O poder de mando do senhor e a consolidação de coronéis, formavam o sistema coronelista uma perpetuação de apadrinhamento. Títulos, proteção, postos e matrimônios serviam como rituais que solidificavam hierarquias e submetia a população mais desfavorecida às oligarquias locais.
Era um mundo de negócios na base de troca, empréstimos e favoritismo, que se estende até hoje por meio de famílias importantes que fizeram da política uma dinastia. Clãs Gomes, no Ceará, Sarneys, no Maranhão, Caiados, em Goiás, e Tucanos, em São Paulo, são exemplos dessas velhas oligarquias familiares que se perpetuam na política. Com veia árdua de escrita, ela denuncia informações que são e devem ser de interesse público.
Patrimonialismo e a Corrupção, temas que se complementam no livro, mostram-se como faces diferentes de uma mesma moeda. São feitos de personalização de leis e instituições que buscam usar-se do bem público privadamente para tirar vantagens. O hábito de furar fila, a isenção de impostos para latifundiários e a troca de favores, representam a clara extensão do Estado para o ambiente externo. Ao traçar um panorama sobre a corrupção, a antropóloga valida a atribuição que é dada ao Estado de “máquina pública de corrupção”. Práticas de favorecimentos, tráfico de influências, nepotismo e abuso de autoridade acompanham governos brasileiros há tempos. Intencionalmente, o capítulo sobre a Corrupção é o mais longo da obra.
Um das faces mais perversas do autoritarismo descrita pela autora é a violência e desigualdade social. Para mostrar o cultivo da cultura da violência no país, a autora apresenta o Atlas da Violência, de 2018. É mostrado que o país conta com 60 mil mortes violentas por ano concentradas principalmente no estados do Nordeste e Norte. A obra cita que, sob o uso de armas de fogo, o Brasil mata 207 vezes mais que Alemanha, Áustria, Dinamarca e Polônia.
A violência urbana, insegurança, mortes no campo, cultura do estupro e violência contra minorias são pontos muito bem enfatizados ao decorrer da obra. Lilia reitera, também, os estereótipos de cor que faz de jovens negros e das periferias vítimas mais sucessíveis à mortes violentas. A autora valida tais afirmações com dados estatísticos e estudos acadêmicos.
Raça, gênero e intolerância são perpassados na obra como temas que se cruzam diretamente. Eles refletem a intolerância presente na maior parte da massa brasileira, que se utiliza de diferenças físicas e estereótipos para desqualificar, inferiorizar e julgar. As comunidades LGBTQ+ e negra são as principais vítimas dessa sociedade autoritária, discriminatória e racista. Lilia argumenta que, quando governos autoritários usam da intolerância como forma de se eleger, o Estado de Direito é fragilizado e condutas desumanas tornam-se aceitas. Tais condutas provocam a aversão ao diferente e a banalização da violência que acabam por retirar direitos e dá licença para matar minorias, e é nesse momento que a democracia também morre.
A escrita do livro ocorreu entre 2018 e primeiro de março deste ano diante de um cenário englobado pela disseminação de fake news e o descrédito atribuído aos intelectuais como o educador Paulo Freire. A obra Sobre Autoritarismo Brasileiro, lançado pela Companhia das Letra, reflete um momento de tendência brasileira à abertura do autoritarismo, racismo e conservadorismo, no momento mais crucial da democracia – a hora do voto. O livro traz uma análise ao leitor sobre o ser autoritário brasileiro, incrustado na história nacional por tempos e mostra, de forma simples, as problemáticas de tal postura.