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Surrealismo brasileiro: nos sonhos está uma nova identidade

O movimento proporcionou um encontro entre diversas formas de expressão e de intelectualidade a favor da liberdade

 “Cada um que se interrogue a si mesmo e responda – que é a belleza? Onde repousa o criterio infallivel do bello? A arte é independente deste preconceito. É outra maravilha que não é a belleza. É a reallisação da nossa integração no cosmos pelas emoções derivadas dos nossos sentidos, vagos, indefiniveis sentimentos que nos vêm das fórmas, dos sons, das côres, dos tactos, dos sabores e nos levam à unidade suprema com o Todo universal.” 

O Estado de S. Paulo, 14 de fevereiro de 1922

Em 1922, o Brasil tomava consciência de que seu fazer artístico mudaria para sempre. A partir da Semana de Arte Moderna, se iniciou um tempo para revolucionar a arte do país e pensar o que é ser brasileiro por meio dela. 

Diante da certeza da mudança, uma arte do sonho, do delírio e da fantasia surgia na contramão: o surrealismo. O movimento dava voz aos desejos mais profundos de seus idealizadores e pensadores enquanto também construtores de uma nova marca artística: o modernismo. 

Trecho do jornal O Estado de S. Paulo lançado no ano de 1922. [Imagem: Acervo/Estadão]

As formas do surrealismo

Em 1924, o poeta e escritor francês André Breton lançou o Manifesto Surrealista, apresentando ao mundo essa nova forma de arte. No contexto da época, a Europa se recuperava da destruição causada pela Primeira Guerra Mundial. Para os nascentes surrealistas, a racionalidade humana tinha sido responsável pelos conflitos que levaram à guerra e, portanto, urgia um jeito revolucionário de reconstruir a realidade após esses eventos traumáticos. 

O surrealismo foi, inclusive, um opositor do chamado “retorno à ordem”. Isto é, uma resposta contrária às vanguardas artísticas no período entre-guerras da Europa, a fim de retomar a identidade dos países até então destruídos. 

O objetivo do surrealismo era fazer com que os seres humanos fossem capazes de entrar em profundo contato com sua consciência e ampliá-la, de modo a resgatar a sua potência imaginativa e criativa. Para os surrealistas, era tempo de retomar a condição natural da imaginação humana, àquela altura já modificada pelas condições do espaço urbano e das exigências da produtividade capitalista: “Esta imaginação que não admitia limites, agora só se lhe permite atuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária”, escreveu Breton em seu Manifesto. 

A partir do “desempenho desinteressado do pensamento”, como descreve o poeta, o surrealismo permite que a mente guie o processo artístico, quando entra em contato com a dimensão onírica, dos sonhos, abandonando a razão. Nessa proposta, valorizava-se a produção automática, evitando que houvesse qualquer interferência racional na plena expressão do inconsciente. 

O desinteresse em seguir regras e padrões levava a uma outra importante característica do surrealismo: a negação a todo tipo de opressão, sobretudo política, que acontecia na Europa no período entreguerras, como a ascensão do nazismo alemão e o fascismo italiano. 

O movimento no Brasil

O surrealismo nacional surgiu no contexto da Semana de Arte Moderna de 1922 e da formação do modernismo em suas diferentes fases. Para além do território paulista, local onde aconteceram as exposições, o evento cultural abriu portas para a construção de uma identidade brasileira. Essa era uma preocupação da classe artística da época, e não era diferente para os surrealistas: “Ao nos colocar diante daquilo que nos constitui, mas de que não temos conhecimento, a arte pode nos mostrar caminhos para construirmos e performarmos uma — ou muitas — identidades que não nos oprimam”, explica Thiago Gil, autor do livro Uma brecha para o surrealismo: percepções do movimento surrealista no Brasil (Alameda, 2015) em entrevista para o Sala33.

Cobra Grande, por Maria Martins, 1942. Suas esculturas incorporaram elementos da cultura indígena e amazônica. A artista tinha a natureza do Brasil como inspiração frequente para suas esculturas. [Imagem/Enciclopédia Itaú Cultural] 

No Brasil modernista, o surrealismo não foi um movimento organizado, como elucida Thiago: “O que houve foram artistas e poetas que tiveram, individualmente, um interesse pelas possibilidades poéticas e plásticas, além da dimensão existencial que o surrealismo explorava. E isso não necessariamente se desdobrava numa arte nacional, ainda que obras de Tarsila, Cícero Dias e Maria Martins, por exemplo, possam ser percebidas como uma proposta de arte brasileira.”

Mulher nadando, por Cícero Dias, 1930. Aquarela e nanquim sobre papel [Imagem/Enciclopédia Itaú Cultural] 

A ausência de grupos organizados não impediu que o surrealismo se desenvolvesse no país. No entanto, o contexto histórico do Brasil e sua posição em comparação ao coração do movimento, a Europa, colocavam em dúvida as suas possibilidades e seu alcance na sociedade:

“Os modernistas — especialmente os que se dedicavam à literatura, como Oswald e Mário de Andrade — viram o interesse dos surrealistas pelo inconsciente como algo muito próprio de uma civilização que acabava de sair da Primeira Guerra Mundial. O Brasil, assim eles pensavam, estava no lado oposto. Era um país novo, tudo ainda estava por se construir e fazer. Ou seja, precisávamos de uma razão construtiva porque nossa formação era outra. Então, a princípio, o surrealismo foi visto com certa desconfiança.”

Por causa disso, a partir do movimento antropofágico em 1928 e 1929, “aproximações” com o surrealismo levam a uma introdução dessa tendência nas produções artísticas, como esclarece Thiago. Artistas como Tarsila do Amaral, Cícero Dias e Ismael Nery retrataram surrealisticamente diferentes objetos, cada qual diante de seu ponto de vista e vivência no mundo.

Urutu, por Tarsila do Amaral, 1928. Paisagens oníricas inspiradas em suas memórias de infância inspiraram obras próximas do surrealismo, sobretudo em sua fase antropofágica (1928-1930). [Imagem/Reprodução: /tarsiladoamaral.com.br]
Anunciação, por Ismael Nery, 1930. Seu surrealismo se expressava, sobretudo, por meio de sua crença católica, aproximando religião e arte de uma forma não reconhecida oficialmente pelos criadores do movimento na Europa. [Imagem/Reprodução: Enciclopédia Itaú Cultural]

Nesse sentido, Ismael Nery, artista paraense, é um dos nomes mais importantes dessa expansão. Com apenas 27 anos, teve contato com importantes surrealistas europeus, dentre eles André Breton e Marc Chagall. 

A obra de Nery se recusava a retratar temas regionais ou nacionais, pois ele os considerava limitados e queria que sua obra refletisse questões universais. Ironicamente, o artista se torna um dos mais influentes nesse movimento. 

Seus retratos compõem cenários de difícil identificação e pouca definição sobre técnicas usadas ou movimentos artísticos ao qual pertenciam. Sua aproximação com o surrealismo lhe deu a capacidade de refletir sobre a condição humana, aquela que é comum a todos, sem limitações físicas ou locais: “O que é democrático no surrealismo é que ele não exige a princípio nenhum tipo de formação a quem quiser escrever um poema ou pintar um quadro surrealista. O mesmo vale para quem se coloca diante desse quadro. (…) Se o quadro ou o poema for capaz de te levar numa experiência de devaneio interior, de imaginação, de êxtase de qualquer tipo, é isso o que importa”, diz Thiago. 

Isso é benéfico também do ponto de vista psicológico e emocional, como explica a psicóloga junguiana Amanda Estima, entrevistada pela Jornalismo Júnior: “A arte enquanto livre expressão será sempre terapêutica. É preciso que haja liberdade de criação para que possamos nos expressar da forma mais fiel possível aos nossos processos internos.”

Tal qualidade do surrealismo é transmitida para admiradores e estudiosos. Leonardo Henrique, de 23 anos, considera que o surrealismo se trata de “ressignificar objetos e imagens” e da “liberdade de se criar uma nova atmosfera através de elementos não convencionais ou irreais”, além de ser algo que o conecta com sua própria introspecção.

Trecho de apresentação do caderno de exposições da 8º Bienal de São Paulo, em 1965, que teve como tema “Surrealismo e arte fantástica”. A obra de Ismael Nery foi amplamente reconhecida após esse evento. [Imagem: Reprodução/Bienal de São Paulo]

Das artes visuais para além delas

Desde Breton, o surrealismo já se mostrava plural em sua estrutura e formatos. O escritor e psiquiatra, idealizou um conceito capaz de se aplicar a todas as formas de arte e expressão.

Para Leonardo, por exemplo, o interesse pelo surrealismo não se desenvolveu por meio das artes visuais ou obras referentes ao modernismo: “Meu primeiro contato com o surrealismo foi com Salvador Dalí, no filme Um cão andaluz, dirigido por Luís Buñuel e com participação do pintor. Também as colaborações de Dalí com Elsa Schiaparelli na sua marca de alta costura Schiaparelli.”

Vestido lagosta, por Schiaparelli, inspirado diretamente pela escultura Telefone-Lagosta, por Salvador Dalí, de 1936. [Imagem: Reprodução/Mint Square] 

No campo das artes plásticas, além de Ismael Nery, destacam-se Cícero Dias, Maria Martins e Roberto Magalhães. O último, o mais contemporâneo de todos, possui uma trajetória de saída e retorno do Brasil que modifica sua arte. 

Nascido em 1940, Roberto Magalhães começa sua história retratando paisagens de seu local de origem, a praia da Ribeira, na Ilha do Governador, Rio de Janeiro. O Brasil sob a visão de Roberto Magalhães era fantástico e místico, e assim o artista se destacou como artista vanguardista brasileiro, sobretudo nos anos 60. 

Quando resolve sair do Brasil, vive o maio de 1968 no principal centro político do período: a França. Depois disso, passa a se interessar por ocultismo e filosofia, buscando respostas para as reivindicações da época e adicionando uma camada a mais para uma arte já repleta de símbolos e imaginação.

De forma distorcida e inesperada, Magalhães retrata o Brasil com em diversas das suas faces: a rural, a urbana, sua fauna, flora e os símbolos nacionais.

Caos Urbano, por Roberto Magalhães, 2014. Óleo sobre tela. [Imagem/Reprodução: Arremate Arte]

À esquerda, a obra “Ataque”, de 2006, pastel sobre papel. À direita, a obra “Defesa”, do mesmo ano e técnica. Ambas por Roberto Magalhães. [Imagem/Reprodução: Galeria Espaço Arte]

Para a literatura, houve a contribuição de Murilo Mendes. Grande parceiro de Ismael Nery, seus poemas incorporaram as ideias essencialistas do amigo. 

Em Recordações de Ismael Nery, um livro de memórias sobre o artista escrito por Murilo e Adalgisa Nery, esposa do homenageado, Murilo afirma ter tido inspiração para suas obras após conversas com Ismael sobre “sucessão”, “analogia” e “interpenetração de formas”, evidenciando seu esforço em levar para as artes literárias aquilo que surge inicialmente na tela e na pintura. 

No que tange ao surrealismo, Mendes demonstrava interesse pelo movimento e a liberdade que ele oferecia para cada participante interpretar o mundo e transformá-lo de várias formas. Com isso, se inspirou em artistas de todas as épocas, não estabelecendo limites temporais ou culturais. Para o autor, havia possibilidade de encontrar convergências entre diferentes sabedorias e experiências. 

É essa abertura ao novo é que leva à proximidade quase que intuitiva do surrealismo com a mente humana e seu estudo. Os limites do inconsciente humano, pouco explorados até então, se tornaram objeto de interesse da psicologia, principalmente com o trabalho de Carl Jung, e da psicanálise, com Sigmund Freud, e passaram a dialogar profundamente com o campo artístico surrealista. 

Amanda Estima, psicóloga junguiana, explica a origem dessa relação: “Os sonhos são a principal via de acesso para o inconsciente. Eles acontecem quando a consciência descansa e o universo misterioso do inconsciente passa a fomentar imagens e a se comunicar de formas indiretas. Podemos até dizer que o universo do inconsciente é um universo de imagens surrealistas, se formos pensar na perspectiva da via régia para o inconsciente, que são os sonhos.”

Partir para o estudo das imagens oníricas e fantasiosas produzidas no inconsciente humano não se trata de uma recusa irresponsável do mundo real. De acordo com Estima, interpretar o surrealismo dessa forma seria equivocado e até perigoso: “Quando os conteúdos do inconsciente ultrapassam o limiar da consciência, a pessoa vai viver uma experiência dissociativa que a psicologia chama de esquizofrenia, que é este rompimento total com o real. Por isso a arte tem uma função tão importante, pois ela possibilita que a gente apure esse significado simbólico do inconsciente pela consciência, ou seja, que a gente consiga trazer e aprender na consciência os conteúdos simbólicos”. 

A arte surrealista e a psicologia defendem que o conhecimento sobre o que se passa dentro da psique humana seja apreendido de forma equilibrada. Thiago Gil também aponta para esse fato, trazendo a perspectiva artística: “Eles [surrealistas] buscavam caminhos para ampliar nossa percepção deste mundo, pois a razão nos oferece uma perspectiva extremamente limitada. O sentido político do surrealismo era fundamentalmente o desejo de mudar o mundo.”

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