“Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Décio Pignatari: Torquato Neto é a releitura brutalista, agônica, desesperada desses três poetas. Torquato Neto encarnou um cristo que esse João Batista de três cabeças prenunciou. Torquato Neto é, então, o melhor esboço do mito do poeta cult do Brasil”. É com essas palavras que o protagonista de Torquato Neto — Todas as horas do fim (2018) é descrito, logo no início do documentário. O curioso é ver que o Brasil inteiro conhece a Tropicália, mas são poucos os que ouviram falar de Torquato Neto. Poeta teresinense que se juntou com o grupo de baianos de Gilberto Gil e Caetano Veloso, Torquato é um desses letristas geniais que permanece às sombras de figuras mais televisivas, como o próprio Gil diz no longa dirigido por Eduardo Ades e Marcus Fernando.
Mas não adianta culpar só o povo pelo desconhecimento de um dos membros mais ativos da Tropicália. Torquato, apesar de ser o Nosferatu no Brasil — sua atuação como o vampiro no curta homônimo dirigido por Ivan Cardoso, em 1971, é uma das imagens mais conhecidas do poeta —, teve uma morte precoce e trabalhava bem mais com a palavra que com a melodia, algo que o filme mostra perfeitamente. Em uma dos escritos do artista, lidos e interpretados pelo ótimo Jesuíta Barbosa, Torquato comenta que resolveu sair da poesia dos livros para a poesia das letras musicais por ver na música um maior poder de transmissão de ideias, de comunicação. E Torquato não estava errado: se juntando ao movimento que queria desvendar a vida nos trópicos, o teresinense teve espaço para mostrar diretamente um pouco de sua arte, mesmo tendo partido bem cedo.
Aliás, a morte do protagonista é um ponto chave do documentário, que já fala sobre o suicídio de Torquato logo no início. É complexo interpretar se essa informação ganharia mais relevância encerrando o longa, como se fosse o ápice da vida do artista, ou iniciando, numa espécie de aviso prévio ao telespectador. Certo ou errado, começar já com esse fato causa impacto e, de certa forma, justifica o subtítulo: Todas as horas do fim define direta e precisamente a história de um personagem que desejou e desistiu diversas vezes de pôr fim a própria vida. “Esse incessante morrer/ que nos teus versos encontro/ é tua vida, poeta,/ e por ele te comunicas/ com o mundo em que te esvais”, versos de Drummond para descrever Manuel Bandeira, mas que se aplicam perfeitamente a Torquato Neto. Apesar disso, os dois poetas que viveram assombrados pelo mesmo fantasma deixaram legados vivos até hoje.
Dividido em partes bibliográficas — falando sobre a família e a infância em Teresina, os estudos em Salvador, a mudança pro Rio de Janeiro e até seu exílio para Londres durante a Ditadura Militar — e partes artísticas, o filme, em seus 88 minutos de duração, consegue transmitir a vibe de toda uma época: canções de Betânia, clássicos do Cinema Novo e poesias de Torquato se intercalam para demonstrar a efervescência cultural dos anos em que o poeta viveu. A relação com Ana, sua esposa, e com o filho Thiago também são mostradas no longa, ressaltando um lado bem mais apaixonado e afetuoso do artista. Mas o documentário mostra que nem a alegria familiar livrou o protagonista das idas e vindas em busca de ajuda psicológica.
“Não deixam eu comer de garfo e faca, mas me dão gilete pra fazer a barba”, pontua Torquato em um de seus escritos sobre sua vida no sanatório. Até mesmo em seus momentos mais vulneráveis, o letrista se mantinha pertinentemente crítico e escrevendo cartas, poemas, lembranças. “Louvo a luta repetida da vida para não morrer”; “O poeta que trai a sua poesia é um infeliz completo e morto. Resista, criatura!”; “Não tenho vontade de viver, mas quero; não sei porque continuar, mas quero”. Entre angústias e genialidades, Torquato Neto — Todas as horas do fim se mostra como uma ótima porta de entrada para o Brasil, finalmente, descobrir Torquato Pereira de Araújo Neto.
Torquato Neto — Todas as horas do fim já está nos cinemas brasileiros. Confira o trailer abaixo, e descubra mais sobre o filme na entrevista do Cinéfilos com os diretores.
por Ingrid Luisa
ingridluisaas@gmail.com