Prática que começou na Idade Média, o trote é um problema para os calouros desde seu surgimento
Por Mariana Miranda (marimiranda94@gmail.com)
Indecisão, sufocantes horas estudos diários, pressão, lágrimas, angústias. Essa é apenas parte de uma lista praticamente infinita de etapas que o estudante brasileiro enfrenta para concorrer a uma vaga nas melhores faculdades do país. Contudo, quando seu objetivo é finalmente alcançado, o novo calouro tem que enfrentar mais uma etapa amedrontadora: o trote. Teoricamente essa antiga prática visa a integração do novo aluno ao mundo universitário, mas muitas vezes acaba adquirindo um teor sádico, com constantes torturas e humilhações.
A história dos trotes
O começo da prática de trotes é datado da Idade Média, mesmo período em que as primeiras universidades surgiram. Naquela época, os estudantes muitas vezes mudavam de país para cursar a disciplina desejada, o que gerava um desentendimento entre forasteiros e habitantes, bem como rivalidades entre grupos de nacionalidades diferentes dentro da própria universidade. Essas doses de violência deram início ao que hoje é conhecido como trote.
A França tinha algumas das melhores universidades medievais, estas palco de violentos trotes que, futuramente, espalharam-se pelo mundo. Com duração de mais de um ano, ele era realizado em três etapas: a recepção, onde os veteranos roubavam livros e moedas dos calouros, bem como o agrediam e humilhavam; a servidão, onde o calouro tornava-se escravo do veterano e levava palmatórias caso não obedecesse, e por fim a alforria, onde o novato bancava uma festa para alguns veteranos, diretores e promotores da universidade, onde era agredido por todos eles.
A Alemanha incorporou essas etapas e as radicalizou. As universidades alemães eram mais fracas do que as francesas e tinham trotes ainda mais violentos. Para os veteranos, o calouro era uma fera a ser domada, imagem essa associada a burrice e a ignorância. A única maneira de transformá-lo em uma pessoa civilizada e inteligente era raspando seus ”pêlos”, ou seja, o cabelo e a barba. Após o ciclo do trote, o novo veterano faz um juramento afirmando que fará o mesmo ritual com os calouros que estão por vir.
Trotes no Brasil
Existem registros de trotes no Brasil desdes as primeiras turmas de direito de faculdades nos estados de Pernambuco e São Paulo. É nas universidades mais antigas ou mais concorridas que os calouros sofrem os piores trotes. David Hornblas, professor da UBC e orientador educacional, explica: “os cursos mais concorridos exigem do estudante um período de estudo longo e muito intenso, e por vezes, estressante. Essa condição pode desencadear processos psicológicos diversos, como os trotes violentos, haja vista, considerarem um direito de fazer isso, afinal ‘mereço porque estudei’. Esta é uma lógica perversa e sua fundamentação está em outras áreas, como por exemplo, a psicopatologia. Isso vale para as universidades públicas, privadas, interior ou capital. Estudantes de medicina, com frequência, produzem atos de transgressão sérios, pois consideram esses movimentos um direito, afinal, ‘seremos médicos’, profissão que muitos vêem dentro de uma posição ‘acima do bem e do mal’. Um imaginário popular.”
No começo do ano letivo de 1831, um estudante morreu por causa do trote. Foi o primeiro caso registrado no Brasil. Após ser insultado por um aluno do quarto ano, o calouro reagiu e foi ferido por uma faca, falecendo duas horas e meia depois. Em 1999, 168 anos depois, Edison Tsung Chi Hsueh morreu afogado durante o trote promovido pelos veteranos de Medicina da USP. Mesmo após tantos anos, veteranos continuam a agir inconsequentemente. “Acredito que é o exercício de um poder ilegítimo, ‘validado’ por razões pessoais, pela ‘tradição’ e uma espécie de vingança pueril baseada na premissa: ‘fazem sempre’, ‘fizeram comigo’ e outras tantas estapafúrdias. As punições – normalmente brandas ou inexistentes – reforçam essas práticas. Do ponto de vista individual, sugere-se traços de personalidade específicos tais como agressividade, e violência. Mas nem todo veterano é assim” acrescenta David.
Cada vez mais os trotes são perseguidos e julgados pela polícia, pela mídia e até mesmo pela própria universidade. Em 1970, trotes culturais e beneficentes começaram a ser realizados por faculdades como a ECA-USP e o Mackenzie. Em 1983, a campanha anti trote abrangiu 60 centros e diretórios acadêmicos na cidade de São Paulo. Contudo, essas medidas não foram suficientes para evitar a morte do calouro de medicina em 1999 e outras praticas humilhantes até os dias de hoje.
Trotes violentos atuais
No início de 2013, a USP de São Carlos promoveu o concurso “Miss Bixete”, onde as calouras competem entre si para serem “miss”, muita vezes apelando para o próprio corpo e para uma exagerada exposição no palco do evento. A Frente Feminista de São Carlos manifestou-se contra a prática desse trote machista, porém alguns alunos irritaram-se com o protesto e ficaram pelados, simulando relações sexuais com bonecas infláveis e carregando cartazes que hostilizavam as feministas.
Ainda no começo do ano, o trote de direito da UFMG gerou muita polêmica: uma caloura foi pintada de preto e acorrentada nos pulsos por um veterano, mostrando o teor racista e machista da suposta brincadeira. Além disso, um calouro foi preso em um pilar enquanto os veteranos faziam um sinal nazista para a câmera. No trote do Mackenzie no segundo semestre, uma foto mostra três calouras, com as roupas rasgadas, sendo levadas por uma “coleira” de tecido por um veterano, todas agachadas.
O medo de não ser aceito pelos colegas por parte dos calouros e a certeza de uma impunidade por parte dos veteranos é a combinação perfeita para que trotes sejam realizados todos os anos. David conclui: “Tenho um amigo que sofreu horrores porque não aceitou os trotes. Ele partiu para defesa ante os veteranos e machucou seriamente um deles. Houve processo que não deu em nada. Ele ficou isolado durante os seis anos de faculdade, mas acho que essa é uma situação pontual. Um aspecto que tenho visto com frequência é a lógica de ‘certos direitos especiais’ dos mais abastados. Mais uma vez fruto da impunidade, afinal, em caso de transgressão (não somente nos trotes), há recursos para boas defesas, são ‘amigos do rei’”.