Sim. Não. Bom, depende para quem você pergunta. É texto em Facebook falando sobre a nova dieta milagrosa, é um tweet sobre a nova cura do câncer. Pensamento cientificamente embasado tem sido cada vez menos difundido. Em tempos de corte, ou contingenciamento, depende para quem você pergunta, o temor pelo futuro da ciência é um sentimento que habita diversos corações brasileiros. O medo é de um futuro negro, negro como a Idade das Trevas.
Aproveitando o tema da “Idade das Trevas”, o Pint of Science Brasil reuniu na Taverna Medieval, bar com temática autoexplicativa, alguns palestrantes para debater sobre este caminho incerto que a ciência traça atualmente. Seria ela capaz de se equilibrar nessa corda bamba?
Para apresentar suas visões, os palestrantes foram Astolfo Araújo, Natália Pasternak e Paulo Saldiva. O primeiro, geólogo e arqueólogo, é atual professor do Museu de Arqueologia e Etnografia da Universidade de São Paulo e é estudioso sobre interdisciplinaridade. A segunda é ex-diretora do Pint of Science Brasil e atual diretora do Instituto Questão Ciência, iniciativa que busca unir evidências científicas com a criação de políticas públicas. Por fim, o último, mas não menos importante, é médico e atual diretor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.
O ambiente de uma taverna gerava uma ambientação muito interessante para o evento. Realmente remontava a algo mais “clandestino”, apesar de muito popular. O bar, montado para recriar quase igualmente um restaurante da Europa Medieval, apresentava passagens secretas para o banheiro, poções e pouca iluminação.
Primeiro de tudo fomos lembrados que o Pint of Science Brasil é o maior do mundo. A palestra em si começou comentando da nova parceria entre o evento e a renomada revista Scientific American, que foi distribuída como brinde no evento. E, aproveitando esse apoio, chamaram ao palco Astolfo, que fez parte do time que estampou a capa da última edição da revista.
Se haverá ciência em 2020? Bom, se depender da equipe do arqueólogo, sim. Boa parte de sua apresentação girou em torno da descoberta revolucionária que a equipe do pesquisador fez. Dois brasileiros e dois italianos fizeram uma escavação que revelou artefatos que comprovam que os primeiros hominídeos saíram da África muito antes do imaginado.
Os quatro pesquisadores enfrentaram muitos desafios ao tentar divulgar sua pesquisa. Quatro latinos tentando contrapor a narrativa predominante na comunidade científica nunca foi algo bem-visto. A publicação do artigo demorou a sair, mas agora ele até estampa a capa da Scientific American.
E agora a equipe busca verbas para continuar a pesquisa de maneira a contribuir amplamente para a área da arqueologia. O debate entre os quatro é se o que foi encontrado é um sítio arqueológico stricto sensu, ou seja, se representa um local em que populações efetivamente se reuniam como parte do dia a dia.
O palestrante também comentou um pouco sobre a interdisciplinaridade que a área de arqueologia prega. E a partir disso, disse que esta é uma característica importante para o ensino de qualquer ciência, já que amplia o campo de visão do pesquisador. Sem isso, a descoberta revolucionária jamais seria possível.
Em seguida, o microfone foi dado para Natália. Ela entra de maneira categórica “Vai ter ciência em 2020? Não. Vamo encher a cara”. Brincadeiras à parte, a visão da pesquisadora realmente vem carregada de um tom mais negativo do que o resto da palestra.
Ela começa citando, por exemplo, a ampla disseminação das fake news. Ela mesma diz que é muito mais fácil produzir um texto fácil, como dizer que cebola cura câncer, do que um texto que refute isso, já que ele tem que ser bem embasado e geralmente mais complexo.
Ela pede, mesmo assim, que todo sejamos os “chatos no almoço de domingo”. O que ela quer dizer com isso? Pede que sejamos aqueles que confrontam quaisquer fatos pseudo-científicos que são disseminados. Então, quando alguém anuncia que está fazendo a nova dieta detox no almoço de domingo, é benéfico contrapor o fato, explicando que o real detox quem faz é o fígado, algo que não depende tanto da dieta. Apesar de às vezes chato ou inconveniente, esse tipo de conduta se faz necessária nos tempos de hoje.
Isso porque ela diz que é necessário manter a “fogueira” acesa. Ou seja, temos que continuar acreditando e divulgando a ciência para que ela não acabe. Comentários em almoços de família ou conversas em mesas de bar são muito benéficos para esse propósito. Ela mesma cita as faculdades de vintém, que nada mais eram do que casas de café em que as pessoas se reuniam para aprender ciência no preço de um vintém, que equivalia a um café.
Nessa hora, inclusive, o ambiente enriqueceu muito a palestra. O estande de arco e flecha, as passagens secretas, as pessoas a caráter, a iluminação baixa, tudo contribuía para uma imersão maior. Você efetivamente se sentia nessa tal Faculdade de Vintém. As bebidas em formato de poções também contribuíam para a atmosfera e ajudam a digerir toda a informação de maneira mais leve.
Então, chegou a vez do último palestrante. Ele, para contrapor Natália, veio com uma visão mais otimista. Paulo diz que “o ser humano nasceu para trabalhar em equipe”, justificando isso pelo desenvolvimento neuronal-comunicacional da espécie.
A partir daí incita certas críticas que, para ele, atrapalham no desenvolvimento da ciência. O tecnicismo, por exemplo, prejudica muito a disseminação do conhecimento científico para o público maior. Além disso, tratar a ciência como uma certeza também gera problemas, “toda certeza é uma ignorância.”
Levanta, ainda, uma questão muito instigante. “Vamos pesquisar para quem precisa ou para quem paga?”. Num país que estrutura tão mal a ciência, às vezes torna-se tentador pesquisar para quem paga, já que infelizmente ainda não se compra comida com ciência. Porém, o palestrante cita sua área, a medicina, ao dizer que não podemos desistir de pesquisar para quem precisa, já que eles serão os que aproveitarão os frutos da pesquisa.
Mais ou menos por aí acabou a palestra em si e foi tempo para as perguntas. Tempo de participar das dinâmicas da casa mais uma vez. Tempo de puxar a alavanca que revelava o banheiro. Enfim, não houve uma pausa propriamente dita, mas pelo menos dava para pedir uma bebida.
A própria sessão de perguntas foi mais leve, de maneira que era possível acompanhar ela enquanto se atirava com arco e flecha, por exemplo. A primeira pergunta entrou um pouco no que os palestrantes falaram sobre comunicar a ciência e combater as fake news.
Natália respondeu reiterando muito do que disse durante sua palestra. Lembrou da dificuldade de se refutar fake news e fez um lembrete valioso “é preciso apertar a tecla SAP na ciência”, ou seja, não adianta querer que a ciência seja divulgada sem fazemos isso com uma linguagem que não é acessível ao grande público.
Ela ainda continua dissertando ao responder a próxima pergunta “Como definir o que é ciência para alguém que não é cientista?”. Nas palavras dela, ela diz melhor que qualquer um, “é um processo de investigar a realidade como um corpo não fixo, visando chegar próximo da verdade”.
A resposta foi categórica, mas ainda deu palco para um complemento de Astolfo que adiciona que ele vê a ciência como “uma atividade humana de investigar a realidade”. Inclusive o “humana” vem com todos os benefícios e malefícios que a palavra traz, o que justamente gera essa margem para a que essa prática possa ser falha e muitas vezes completamente errada.
Já caminhando para o fim, a penúltima pergunta pôs em pauta se a divulgação dos métodos científicos seria algo benéfico para a recepção do público. Natália cita que, nessas horas, o cientista precisa trabalhar com o jornalista e o relações públicas para garantir uma divulgação adequada, já que eles são os profissionais da comunicação.
A palestra então acaba com a pergunta “Por que o Brasil não tem um Prêmio Nobel?”. Paulo responde que essa não foi uma possibilidade que nunca existiu. Tivemos grandes cientistas na nossa história, como Oswaldo Cruz, porém “o encarecimento da pesquisa e a necessidade de networking complicaram esse feito”.
E assim, foram feitos os agradecimentos finais e o evento acabou. Cumprimentos rolaram, despedidas, pagaram-se as contas e pouco a pouco o bar foi se esvaziando. Era hora de apagar as luzes. Mas não da ciência.
A respeito da pergunta “Por que o Brasil não tem um Prêmio Nobel? “feita pelo jornalista durante o evento. Em 1960, o brasileiro Sir Peter Medawar compartilhou o Nobel de medicina com o australiano Sir Frank Burnet pela descoberta da tolerância imunológica adquirida, que tem implicações fundamentais para transplantes de órgãos. Não se fala deste caso porque diz muito sobre as escolhas do país. Como não prestou o serviço militar e seu pedido de dispensa para fazer ciência foi recusado pelo então ministro da aeronáutica, Salgado Filho, teve sua cidadania brasileira preterida.
https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/1960/medawar/facts/