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A biodiversidade brasileira como caminho para a ciência

Uso de espécies nativas pode ser a solução para problemas atuais, mas iniciativa enfrenta diversos entraves

A produção de ciência no Brasil é resiliente. Mesmo com inúmeros empecilhos, como a falta de financiamento, de valorização dos profissionais e acesso a importantes fontes para pesquisas, o país continua produzindo artigos e descobertas de grande relevância.  

Acompanhamos diversos avanços da ciência no Brasil e no mundo a cada dia. Apesar de todo o potencial que a biodiversidade brasileira traz para a produção científica, existem problemas que atrapalham tanto a conservação ambiental quanto a garantia de produção e reconhecimento científico no Brasil. O uso da nossa biodiversidade para descoberta de produtos úteis à nossa saúde não é atual. Durante o século passado, diversos cientistas fizeram descobertas que impactaram o mundo. Cientistas brasileiros continuam concebendo, com a fauna e flora, soluções que vão até mesmo para séries médicas internacionais, como The Good Doctor e Grey’s Anatomy.

Ciência, fauna e flora brasileira: Vital Brasil e Maurício Rocha e Silva

O Brasil já produz ciência e tem diversas descobertas há bastante tempo. Uma das fontes dessas descobertas é o mais brasileira possível: a nossa biodiversidade.

Ainda na primeira metade do século 20, o sanitarista, médico e cientista Vital Brasil fez uma descoberta importante para a ciência mundial. Já há algumas décadas, cientistas haviam descoberto como produzir o soro antiofídico — soro usado no combate de venenos de serpentes —, mas, acreditava-se que ele era universal, ou seja, um único tipo funcionaria para o veneno de todas as cobras. É a partir disso que Vital Brasil desenvolve uma teoria contrária: para cada veneno, um soro específico. Essa descoberta afetou a ciência mundial, garantindo um melhor tratamento para aqueles que sofriam com ataques de animais peçonhentos. Já em 1949 foi descrita a bradicinina, substância de um dos remédios mais utilizados contra pressão arterial no mundo todo: o Captopril. Sua descoberta foi feita num laboratório brasileiro por Maurício Rocha e Silva, médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e Wilson Teixeira Beraldo e Gastão Rosenfeld. Com base no veneno da jararaca, espécie nativa do Brasil, eles puderam identificar os efeitos da bradicinina, inicialmente em cachorros, por meio de injeções que resultaram na queda na pressão arterial do animal. De acordo com a Sociedade Brasileira de História da Medicina, essa é a segunda descoberta científica mais importante no Brasil.

Imagem de uma Jararaca enrolada e com a língua para fora em meio a folhas secas, animal que faz parte da biodiversidade brasileira.
Encontrada da Bahia até o Rio Grande do Sul, a Jararaca (Bothrops jararaca) é uma das representantes mais comuns do sudeste do país. Essa espécie eventualmente também pode ser encontrada em regiões do Paraguai e Argentina que fazem fronteira com o Brasil. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

Pele de tilápia-do-nilo

Em 2015, pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) em parceria com o Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ), iniciaram uma pesquisa sobre o uso da pele de tilápia-do-nilo (Oreochromis nicoticus)  para tratamento de queimaduras. 

O estudo foi inspirado nas observações do cirurgião plástico Marcelo Borges, professor da Faculdade de Medicina de Olinda (FMO), em Pernambuco, que apontaram que o material, geralmente descartado pela indústria pesqueira, é rico em colágeno — substância utilizada para tratamento de queimaduras —, além de apresentar boa umidade e alta resistência à quebra. Assim, surge a ideia de utilizá-la como um curativo. 

Imagem mostra um paciente em um hospital, com roupas verdes e a mão, que sofreu queimaduras, coberta de pele de tilápia.
Para usar a pele de tilápia em pacientes com queimadura, as escamas, o tecido muscular, as toxinas e o odor característico do peixe são retirados da pele. Há ainda um processo de descontaminação e esterilização. [Imagem: Reprodução/Revista Pesquisa Fapesp]

A partir disso, Edmar Maciel, cirurgião plástico e presidente do IAQ, e Manoel Odorico de Moraes, médico e professor da Faculdade de Medicina da UFC, lideraram um estudo sobre o uso da pele do animal no tratamento de queimaduras de 2° e 3° grau, fato que permitiu um processo acelerado de cicatrização.

Diferente de outros curativos, o material não precisa ser trocado constantemente nem causa dor ou desconforto, o que evita o uso de anestésicos e permite um barateamento do processo. Por esses motivos, os cientistas desejam, no futuro, levar a tecnologia ao Sistema Único de Saúde (SUS), responsável pelo atendimento de 97% dos queimados, segundo dados divulgados pela Agência Brasil, em 2019. Além de uma alternativa mais barata, a técnica permite uma menor dependência dos bancos de doações de pele humana — também utilizadas para essa finalidade —, uma vez que estes são poucos e não suprem a necessidade de atendimento da população

O material também vem sendo utilizado no procedimento de reconstrução de vagina e estudado para usos odontológicos e veterinários. 

Extrato de jambu 

Hortaliça da região amazônica, conhecida principalmente na culinária paraense, em pratos como o tacacá e o pato no tucupi, o jambu também é muito utilizado pelos povos indígenas e ribeirinhos para tratar de dores de dente e garganta. Em 2017, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desenvolveram um processo para obtenção do extrato de jambu mais puro e com melhor aproveitamento do espilantol, substância responsável pelos efeitos anestésicos e analgésicos da planta.

Em meio a biodiversidade brasileira, temos o Jambu. A imagem mostra uma plantação dessa hortaliça, que é mais baixa, como um arbusto, e tem a ponta avermelhada e amarela.
Jambu (Acmella oleracea), conhecido também como agrião-do-pará, é originário da América do Sul. [Imagem: Reprodução/Jornal da Unicamp edição web]

 A técnica de obtenção possui poucas etapas, tornando a extração mais rápida, e faz uso de reagentes atóxicos e baratos. Outra principal vantagem do procedimento é a remoção do pigmento verde do substrato, característico da clorofila, coloração indesejada para o destino final do produto, principalmente na indústria de cosméticos.

Além disso, o extrato vem sendo estudado para função acaricida e uso odontológico

Obstáculos para maior implementação da biodiversidade na ciência

Ainda que com grandes descobertas proporcionadas pela diversidade de espécies, a área ainda não recebe a devida atenção e apoio no país, o que prejudica diretamente o progresso tecnológico. De acordo com o primeiro diagnóstico da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (2019), que visa informar e orientar a respeito de decisões econômicas, políticas e sociais acerca da biodiversidade, a riqueza natural é uma alavanca para o desenvolvimento do Brasil, uma vez que é o diferencial do país no cenário mundial. 

Contudo, para que isso seja possível, uma série de empecilhos devem ser solucionados, sendo os principais deles a falta de estímulo, de organização e de planejamento para integração dos feitos científicos em todos os setores da sociedade.

Para Maria da Graça Salomão, doutora em biologia e pesquisadora do Instituto Butantan, falta um gerenciamento daquilo que precisamos e temos facilidade para desenvolver na área da biotecnologia. Não há uma estratégia abrangente e integrada à sociedade brasileira, que defina um projeto com base nas necessidades do país: “Quais os seres vivos que temos disponíveis? Qual o potencial ecológico, tecnológico desses organismos? Que linhas de pesquisa devemos fomentar e que são interessantes para o Brasil? Tudo isso tinha que vir numa visão macro, tanto científica, como educacional e econômica-social para que as instituições tomassem as decisões de mais benefício à sociedade”, afirma a cientista. 

De fato, parte desse problema advém da base de dados pouco consolidada: somente em 2018 foi realizado o primeiro grande compilado de dados, no estudo O futuro dos ecossistemas tropicais hiper diversos, divulgado na revista Nature; revelando que grande parte da dificuldade de planejamento está relacionada a informações duplicadas e principalmente à não cultura de compartilhamento de dados dentro da comunidade científica.

Esse cenário de não planejamento impacta até mesmo a definição do papel da ciência na sociedade, já que seus avanços são guiados pelas demandas da população. “As prioridades precisam ser pensadas e listadas, num plano nacional de ciência e tecnologia. Na medida que isso não ocorre, a ciência também sofre, porque o cientista é um empregado da sociedade e se frustra por não poder ter mais participação na melhoria da qualidade de vida de seu povo. Há muito o que explorar no Brasil, mas nós ainda não definimos tais prioridades”.

Desafios da conservação ambiental e ciência: biopirataria e patentes

Apesar de todo o potencial que a biodiversidade brasileira traz para a produção científica, existem problemas que atrapalham tanto a conservação ambiental quanto a garantia de produção e reconhecimento científico no Brasil. “O Brasil é um dos países que apresenta a maior riqueza de espécies nativas. A sua biodiversidade é imensa, e muitas aplicabilidades dessas espécies para nós são perdidas a cada ano conforme degradamos diferentes ambientes. Temos inúmeras espécies de fauna e flora que ainda não foram catalogadas”, relata Beatriz Fumelli, doutoranda no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). 

Nesse sentido, a biopirataria é um grande desafio. A retirada da fauna e flora de seu habitat natural para outras regiões afeta todo o bioma local, bem como as cadeias alimentares do local de origem e do local para onde eles são levados. Além disso, afeta a produção científica: “temos relatos de pesquisadores de outros países que roubaram espécies nativas daqui e levaram para outros lugares para extrair compostos e usá-los na fabricação de medicamentos”, detalha Beatriz. A biopirataria afeta não apenas a fauna e flora, mas também a ciência e economia no Brasil, que poderia ser beneficiada pela descoberta de novos compostos e princípios.

A perda de patentes não é novidade no Brasil. A doutora Maria das Graças  relata que esse também foi um problema enfrentado por Maurício Rocha e Silva. O medicamento, que tem como base a descoberta do cientista, foi patenteado por um laboratório estrangeiro, pois, no Brasil da época, havia pouca atenção e experiência em casos assim. Beatriz ainda reafirma que esse não é um caso isolado, mas que atualmente, a biopirataria e o patenteamento de espécies nativas de outros países é mal visto no meio acadêmico. “Hoje em dia esse comportamento é repugnado, mas é uma postura recente”. 

O registro de patentes de fauna e flora tipicamente brasileiros por outros países ou empresas privadas impede que a ciência brasileira, que é produzida majoritariamente nas universidades públicas, utilize os compostos e ativos encontrados, mesmo tendo maior acesso às plantas e animais que o país ou empresa que o patenteou. Um caso que ficou bastante conhecido foi o registro do açaí por uma empresa japonesa em 2003. O açaí voltou a ser reconhecido como brasileiro em 2007, mas não foi o único a passar por isso. O jambu e sua substância, espilantol, foram patenteadas nos Estados Unidos, o que pode impedir seu uso em pesquisas desenvolvidas no Amazonas, mesmo que essa seja uma planta típica da região. 

A destruição dos biomas brasileiros também lesa as possibilidades e aplicabilidade da biodiversidade, com espécies que não são ao menos registradas e descobertas. Todas essas questões afetam diretamente a saúde da população e das florestas. “Todas as formas de vida estão conectadas no planeta. Isso é inevitável porque compartilhamos um ambiente em constante evolução. Infelizmente, estamos em uma década essencial para tomarmos consciência das nossas atividades e impactos no planeta. Ela é, inclusive, chamada de Década da Restauração. Se não mudarmos ficará claro para as pessoas como a perda de biodiversidade vai afetar nosso cotidiano nos próximos anos”, complementa Beatriz. 

Banner do especial 2022, lê-se "Especial Brasilidades", o fundo do escrito é colorido.

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