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A cegueira social e o cego na sociedade

Por Ana Helena Corradini (anahelenacorradini@gmail.com) Em uma escola no município de Bragança, interior de São Paulo, João José trabalha como funcionário público. Durante sua rotina, receber e responder e-mails corresponde a grande parte da suas tarefas diárias. No entanto, frequentemente tem de lidar com o espanto de pessoas que o questionam sobre o modo como …

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Por Ana Helena Corradini (anahelenacorradini@gmail.com)

Em uma escola no município de Bragança, interior de São Paulo, João José trabalha como funcionário público. Durante sua rotina, receber e responder e-mails corresponde a grande parte da suas tarefas diárias. No entanto, frequentemente tem de lidar com o espanto de pessoas que o questionam sobre o modo como essa atividade é feita, e, por isso – tal como alguém obrigado a explicar que lemos uma página da esquerda para a direita, de cima para baixo –, João conta que seu computador ou aparelho celular são os responsáveis por ler as mensagens que lhe são enviadas.

João nasceu com Síndrome de Stickler, uma doença genética bastante rara, que acomete uma a cada 20 mil pessoas no mundo. Associada à produção de colágeno, a mutação gênica provocada pela doença causou o deslocamento de sua retina esquerda, quando ainda tinha apenas quatro anos, e da direita, aos dez. A partir desse momento, há exatamente vinte anos, João passou a enxergar o mundo de uma outra maneira e teve de encontrar, inicialmente às apalpadelas, um novo modo de encarar a vida.

Então na terceira série – hoje, quarto ano –, a escola da cidade onde morava não oferecia estrutura para atender a crianças com deficiência. Sua mãe, desse modo, teve de procurar alguma instituição em que seu filho cego pudesse estudar, até conseguir matriculá-lo no Instituto de Cegos Padre Chico, um internato.

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Ainda na penumbra, deficientes (visuais e outros) batalham para adentrar escolas adequadas às suas necessidades, enquanto tecnologias inclusivas pleiteiam para serem regularmente implementadas. (Foto: Revista Gambiarra)

Localizado há aproximadamente 140 quilômetros da cidadezinha onde vivia, o colégio é uma instituição filantrópica, na qual João foi alfabetizado em Braille para, no ano seguinte, prosseguir seus estudos regulares. Lá ele completou o ensino fundamental, quando em 2002 retornou à sua cidade natal para dar continuação a seus estudos na, ainda hoje, única escola a oferecer Ensino Médio à pequena população, que não chega a ultrapassar 15 mil habitantes.

Num momento em que os computadores de mesa eram o que havia de mais novo no mercado, surgiram os primeiros grupos de pesquisa em torno de questões relacionadas à forma como as tecnologias digitais poderiam ser adotadas em sala de aula, de modo a auxiliar o processo de aprendizagem. Até aquele momento, segundo conta a diretora do Instituto Crescer, Luciana Allan, essas novidades tecnológicas eram tidas pelos colégios particulares como mera estratégia de marketing visando atrair mais clientes a consumir seu produto de ensino, ao passo que, nas escolas públicas, o processo ocorria de modo ainda mais lento. Mesmo com a criação do ProInfo (Programa Nacional de Informática na Educação) pelo Ministério da Educação, em abril de 1997, uma série de entraves dificultavam a disponibilização de recursos para toda a rede de ensino, “e até hoje isso se passa dessa forma”, afirma Luciana.

Foi por volta dessa época que João teve acesso pela primeira vez aos recursos de informática que permitem a pessoas cegas terem maior independência e privacidade no universo digital. Tratava-se do leitor de telas Virtual Vision – um programa desenvolvido pela empresa MicroPower para ler informações (seja em texto ou menu) de praticamente todos os aplicativos, sem necessidade de fazer nenhuma adaptação no computador – e do Sistema Dosvox. Este último, um programa que “dialoga” com o usuário, é um projeto idealizado pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que se desenvolveu a partir da própria experiência de um aluno cego. Antes disso, o único recurso com o qual tivera contato e que lhe auxiliava nas tarefas do dia a dia era um relógio que “falava” as horas em espanhol.

Essas tecnologias, entretanto, não estavam vinculadas à metodologia de ensino adotada pelas escolas onde frequentou. Assim, o processo de aprendizagem dependia muito mais da disposição dos educadores para tornarem as aulas mais acessíveis. Durante sua trajetória escolar, em diversas ocasiões teve de lidar com o despreparo de professores, os quais recorriam à pergunta “como eu vou ensiná-lo?”, ouvida inúmeras vezes por João. Neste período, seus docentes se predispunham a ditar o conteúdo da lousa para que pudesse ser transcrito para o Braille e, nas atividades que exigissem a leitura, contava com a ajuda de colegas. Somente no ano de 2006, ao ingressar no ensino superior, ele aderiu definitivamente a ferramentas mais modernas e eficazes como tática para auxiliá-lo nos estudos.

O processo de inclusão de pessoas com algum tipo de deficiência, bem como de qualquer outro setor invisibilizado da sociedade, resulta do uso de recursos técnicos, muitas vezes simples, associado à atitude social de cada indivíduo. Deste modo,  desmitifica-se a crença de que a manipulação de rebuscados aparatos tecnológicos faz-se indispensável. Na própria definição do conceito de Tecnologias Assistivas, proposto pelo Comitê de Ajudas Técnicas (CAT) da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, enquadram-se todo e qualquer produto, prática ou estratégia que contribuam para a autonomia de pessoas com deficiências, incapacidades ou mobilidades reduzidas. “Desde o objeto mais elementar, mais simples”, enfatiza o professor e pesquisador Teófilo Galvão Filho.

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Para Teófilo, Tecnologia Assistiva não é sofisticação, mas “qualquer recurso complementar, artesanal ou complexo, que auxilia a autonomia de pessoas com deficiência, com incapacidades e mobilidades reduzidas. (Foto: Arquivo pessoal)

Tanto é que, apesar de atribuirmos aos colégios privados o mérito por fazerem uso de tecnologias cada vez mais sofisticadas e normalmente acreditarmos que as escolas públicas encontram-se sempre em desvantagem, o que se observa no Brasil em relação ao incentivo à inclusão de alunos com deficiências é justamente o contrário. O denominado Atendimento Educacional Especializado, mais conhecido pela sigla AEE, é um programa proposto pelo MEC a toda rede pública de ensino, com a finalidade de eliminar os obstáculos de aprendizagem entre diferentes alunos, considerando-se as necessidades específicas de cada um. Teófilo ressalta que também existem iniciativas privadas bastante interessantes nesse sentido, porém não tão sistemáticas quanto às do governo. Questionado se esse quadro reflete os interesses da escola particular, ele afirma com convicção que, enquanto existirem aqueles que veem a educação como um comércio de mercadorias, cujo único fim é o lucro, a escola não estará cumprindo com sua verdadeira missão: garantir educação a todos.

Membro do CAT, Teófilo atualmente ministra aulas no primeiro curso brasileiro de engenharia direcionada à Tecnologia Assistiva e acessibilidade, na UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia). O curso, ainda que esteja em processo de desenvolvimento e adaptação, já representa um significativo avanço ao reconhecer a existência de um grupo socialmente marginalizado, fomentando sua visibilidade. Muito do discurso de Teófilo converge para um aspecto da fala de João. Ambos salientam que, no processo de inclusão, as barreiras ideológicas são as mais prejudiciais, pois a formulação prévia de um conceito, baseada sobretudo na ignorância, abre margem a uma série de suposições que se distanciam da realidade. Assim, ao passo que existem ideias pré-formuladas em relação aos portadores de deficiências, passamos a agir da forma que nos parece a mais conveniente. Em muitos casos, devido ao desconhecimento e ao receio em perguntar qual é a melhor forma de contribuir, aquilo que era para ser uma ajuda acaba por tornar-se mais um empecilho.

No decorrer desse processo de reconhecimento da diversidade, e sobretudo de sua aceitação, dispositivos legislativos adquirem significância na medida em que colocam esse debate em pauta no país. Além de funcionarem “como um suporte, um amparo para as pessoas com deficiência reivindicarem seus direitos”, nas palavras do próprio Teófilo.

Entrou em vigor, no início deste ano, a Lei Brasileira de Inclusão, a qual, dentre uma série de garantias à pessoa com deficiência, torna obrigatória a acessibilidade aos concursos de ingresso para o ensino superior e proíbe qualquer atitude discriminatória, como a cobrança de mensalidades mais caras a alunos deficientes – a escola, neste caso, estará sujeita à punição. Antes disso, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada no Brasil em 2008, dois anos após aprovação da ONU, já indicava um grande avanço legal para pessoas com deficiência.

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O Estatuto de Pessoas com Deficiência, de 2015, triunfou em junho deste ano após o STF julgar inconstitucional que escolas particulares recusem ou cobrem mais de alunos deficientes. (Fonte: Câmara dos Deputados)

Em termos de dispositivos que garantam suportes legais aos portadores de deficiência, o país encontra-se bastante avançado. Contudo, Teófilo argumenta que, “na prática, ainda está longe de encontrar aquela condição real de inclusão para a maioria dessas pessoas”. A inclusão nas escolas assume papel fundamental, pois possibilita às crianças conviverem desde cedo com as diferenças e, acima de tudo, reconhecerem a diversidade.

Contrapondo-se à concretização de um novo ambiente escolar, fundamentado nas especificidades de cada aluno, os modelos clássicos de ensino, que ainda são seguidos, impõem-se como um obstáculo à medida que se baseiam numa suposta normalidade. Nesse cenário de contradições, a adoção de novas técnicas torna-se relevante. Adriana Martinelli é uma das idealizadoras do LED (Laboratório de Experimentações Didáticas), um programa de formação de professores desenvolvido com o intuito de propor-lhes projetos didáticos inovadores.

Em entrevista, Adriana destaca como sendo as principais vantagens do uso de tecnologias digitais na sala de aula a possibilidade da existência de um diálogo assíncrono, isto é, que não acontece simultaneamente, e a oferta de uma gama maior de opções de aprendizado que não apenas o texto, presente nos livros.

Mais do que isso, àqueles que possuem alguma dificuldade ou limitação, essas tecnologias permitem o acesso a um conhecimento que antes lhes era inacessível. Em amplitude ainda maior, elas expandem o universo da pessoa com deficiência, que não se limita mais aos cômodos de suas casas. Seus lares agora é a escola, o ambiente público, o trabalho, a universidade.

João ainda atenta para o fato de que, num processo contínuo, por meio dessas ferramentas técnicas, novas Tecnologias Assistivas têm sido criadas, agora com muito mais prioridade, pelas próprias pessoas com deficiência.

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Ao propor novo modelo de formação docente, a LED aposta na inovação dos métodos de ensino. (Foto: Jornada Led)

Quando questionado acerca dos desafios que ainda tem de enfrentar, João, como quem olha para além daquilo que podemos enxergar, responde que não há muito tempo o ser humano era julgado pela sua cor, depois passou a ser classificado de acordo com sua orientação sexual e pelas limitações físicas de cada um, “mas aos poucos tomamos consciência de que somos iguais na humanidade e diferentes nas necessidades e não o inverso”, diz. Nesse sentido, João vê a tecnologia como “uma grande porta de entrada, pois ela trabalha justamente a premissa de que somos iguais e que mesmo que eu tenha uma limitação, não significa que não possa contribuir, produzir, experimentar, viver”.

2 comentários em “A cegueira social e o cego na sociedade”

  1. Parabéns professor, sua atuação na área de tecnologia assistida favorece a formação de novos profissionais, é um incentivo para os alunos do CETENS.

  2. Parabéns professor, sua atuação na área de tecnologia assistiva favorece a formação de novos profissionais, é um incentivo para os alunos do CETENS.

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