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A cidade feita de nós

Por Mariana Gonçalves (mariana.vick.goncalves@gmail.com) “Onde eu vivia antes — eu já morei em algumas cidades da Europa, muito diferentes entre si —, parecia que estava tudo resolvido, ao menos no sentido físico. Obviamente, havia problemas, mas eles não eram tão tangíveis. Aqui, quando a gente vê, está muito escancarado. Por outro lado, a maneira como a …

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Por Mariana Gonçalves (mariana.vick.goncalves@gmail.com)

“Onde eu vivia antes — eu já morei em algumas cidades da Europa, muito diferentes entre si —, parecia que estava tudo resolvido, ao menos no sentido físico. Obviamente, havia problemas, mas eles não eram tão tangíveis. Aqui, quando a gente vê, está muito escancarado. Por outro lado, a maneira como a população e os cidadãos se apropriam e criam maneiras de estar em espaços tão adversos é quase paradoxal. Se a praça não é confortável o suficiente, as pessoas têm o jogo de cintura de ir lá e inventar uma coisa nova. Se, na Europa, é muito mais fácil se apropriar do espaço público, porque a estrutura já é dada como resolvida, aqui há uma infraestrutura humana que faz com que a coisa role de alguma maneira. Por mais que seja uma luta dramática, difícil e injusta, isso é muito bonito. As pessoas têm que viver. No mundo ideal, nós não teríamos que criar estratégias e reivindicar habitação. É um direito — assim como é um direito também andar pelas calçadas sem medo de cair e torcer o pé. O assunto vai desde a coisa mais estúpida até aquilo que é essencial para a vida humana. Então, por mais que o contexto seja muito diferente, aqui eu sinto muito mais vontade de tornar as coisas melhores do que em outros países. Aqui, parece que há uma vontade de mudar. É muito vivo. Dá vontade de participar, intervir no espaço público — e fazer um trabalho público, de alguma maneira, ao invés de apenas criar teorias que não vão se aplicar à realidade.”

A Storefront for Art and Architecture, instituição nova-iorquina criada em 1982, pôs os pés no Brasil em agosto deste ano. A ocasião, no início do mês, era a inauguração da exposição “Cartas ao Prefeito”, instalada no espaço Pivô Arte e Pesquisa, localizado no Edifício Copan, região central de São Paulo. A propaganda anunciava o evento como uma mostra de artistas e arquitetos — sendo que todos, por regra, haviam escrito cartas ao prefeito da cidade, nas quais discutiam assuntos fundamentais da vida urbana. O destinatário nem sempre era o mesmo: alguns escreveram ao atual gestor, Fernando Haddad, enquanto outros se dirigiram a Luiza Erundina, em 1989,  ou a Ademar de Barros, em 1958. Também foram várias as cartas ao futuro prefeito de São Paulo, cujo nome ainda se desconhece. Itinerante, a exposição existe desde 2014 e já passou por outras capitais no mundo, como Bogotá e Lisboa, além de Nova York. No Brasil, a curadoria foi dos arquitetos Fernando Falcon, formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e Bruno de Almeida, que cursou em universidades em Portugal e na Suíça. É dele a citação que inicia este texto.

São Paulo, dilemas e democracia

Para Bruno, seria uma hipocrisia se a exposição em São Paulo assumisse o mesmo formato que a de Nova York. A cidade tem complexidades específicas — difíceis de apreender até mesmo para ele, que estuda o assunto — e não cabe em modelos engessados. Subvertendo algumas das regras propostas inicialmente, que seguiam a mesma dinâmica de outras capitais, a mostra em São Paulo renovou a estrutura das cartas e acrescentou à mostra o Seminário Cartas Abertas, que organizou diferentes mesas para discutir projeto e planejamento urbano, mas também temas como meio ambiente e resistência. A intenção era diversificar o evento, de modo que mais pessoas participassem dos debates e se atraíssem pelas questões que eram postas a respeito da cidade. “A arquitetura é uma linguagem muito autorreferente: o projeto, por exemplo, é de muito difícil assimilação”, disse Fernando. “Propor uma forma de comunicação diferente, mais direta, mais pessoal, foi uma maneira de a gente conversar melhor com o público.”

A abertura da exposição, de acordo com os curadores, contou com a presença de mais de mil pessoas. Segundo o professor Guilherme Wisnik, também da FAU-USP — e que participou da exposição —, o interesse pelos assuntos da cidade tem tomado proporções inéditas em São Paulo. O arquiteto diz que existe uma espécie de “espírito do tempo” — ele usa a expressão Zeitgeist, em alemão, para definir — ligado ao ativismo urbano em todo o mundo, representado por movimentos anti-globalização e pelo Occupy Wall Street, por exemplo. No caso do Brasil, as manifestações de junho de 2013 foram um marco nesse sentido. “Por razões históricas, como a colonização e a escravatura, o conceito de esfera pública nunca foi muito bem compreendido por aqui, e isso tem um espelhamento nas cidades”, disse Guilherme. “Acontece que, agora, isso tem mudado. Tem surgido no Brasil e em São Paulo uma vontade da população explícita de ter espaço público.”

A batalha pelo espaço público, como chama o professor, ampara-se na ideia de ressignificar a política nas cidades. Embora o conceito de “cidade” não seja, em si, definitivo, mantém-se a noção de que é ela, essencialmente, um lugar para a democracia, no qual se consolidam os pactos e as práticas democráticas entre as pessoas. Quando a cidade é tomada por poucos grupos e planejada arbitrariamente, a vida urbana começa a enfrentar problemas. A cidade de São Paulo, que por muito tempo seguiu — e, em alguns aspectos, ainda vem seguindo — um modelo de desenvolvimento excessivamente ambicioso, autoritário e tecnocrático, tornou-se uma difícil equação para os profissionais da arquitetura e do urbanismo. Para Fernando Falcon, esse é um problema que atinge todos os outros — os de mobilidade, habitação social, meio ambiente, desenvolvimento urbano, entre outros. “Um dos maiores desafios que eu acho que nós temos é o de conseguir congregar as diversas forças que atuam na cidade. Nos últimos anos, isso avançou um pouco, mas é preciso renovar o modelo político, construindo administrações realmente horizontais, que contemplem mais pessoas.”

Entre nós: reportagens especiais

No início de fevereiro, a Agência J.Press de Reportagens já concebia esta série especial. O tema, ainda não apurado, seriam as eleições municipais em São Paulo. O projeto tomou forma cinco meses depois — a começar pela consulta que fizemos online — e, terminado o planejamento, estavam definidas sete diferentes pautas para cumprir com uma só agenda: a demanda da cidade. É evidente que a política, nesse caso, é inevitável; mas os temas eleitorais ficaram de fora. Estudantes, leitores e paulistanos de todos os lugares da capital nos enviaram propostas de investigar São Paulo por meio de temas que a revelassem em sua dimensão urbana, real, que ultrapassa as gestões municipais. Para o geógrafo e professor Jaime Tadeu Oliva, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, a cidade é “uma forma social de vivermos juntos”, que “tem como essência o fato de diminuirmos as distâncias físicas entre nós”; a urbanidade, nesse sentido, atua para promover a diversidade e o acesso à infraestrutura pelo máximo grupo de cidadãos. É a esse modelo de São Paulo, pautado no encontro e na pluralidade, que persegue este especial.

O professor, autor da tese “A cidade sob quatro rodas”, que explica as afinidades entre São Paulo e o automóvel, é entrevistado de Laila Mouallem na reportagem “De estacionamento a estacionamento”, na qual se aborda a mobilidade paulistana pela perspectiva dos carros. O tema é apresentado dos pontos de vista econômico, ideológico e do projeto, com um panorama da implantação da indústria automobilística no Brasil, do incentivo exagerado ao uso do transporte individual em São Paulo e das medidas tomadas pela última gestão para amenizá-lo. É preciso desacelerar o automóvel — e não só pelos seus problemas cotidianos, como os altos índices de congestionamento; mas porque, em essência, ele não é compatível com a cidade. Jaime aponta que o carro contribuiu para a constituição de uma cultura anti-urbana em São Paulo, na qual parte da população abdicou de experiências agregadoras para viver fechada em si, entre muros, de estacionamento a estacionamento.

A segunda reportagem, escrita por Iolanda Paz, trata da cultura em outro âmbito — o de bibliotecas, centro culturais, casas de cultura, teatros e CEUs, todos de responsabilidade do município. Dando enfoque à descentralização desses equipamentos na cidade, o texto, de certo modo, também fala da mobilidade urbana. Atualmente, as consequências do espraiamento do território paulistano são evidentes — e a principal delas está na manutenção de uma “não cidade” em torno das áreas centrais, à qual a infraestrutura necessária não chega por meio do Estado. O texto dá conta de políticas e de programas de fomento da Prefeitura e analisa as medidas tomadas nos últimos anos em relação à produção cultural nas periferias. Também fala do assunto a reportagem de Natan Novelli Tu, que dá ênfase ao projeto pedagógico dos CEUs, integrado com diversas políticas públicas e com a comunidade. Ao contrário do modelo tradicional das escolas do Brasil, que foram estruturadas sobre o confinamento, o isolamento e a segregação — a fala é do professor Elie Ghanem, da Faculdade de Educação da USP —, a proposta dos CEUs prevê a convivência. “A principal condição humana [dos centros] é a de encontrar as pessoas e junto com elas projetar o futuro, projetar o seu próprio lugar”, diz o arquiteto e entrevistado Alexandre Delijaicov, que em 2001 os projetou.

O texto de Carolina Unzelte e Giovanna Querido aborda a relação entre centro e periferia na cidade a partir da habitação. Apontando para índices graves — segundo relatório de Raquel Rolnik para a ONU, o déficit habitacional paulistano atinge 230 mil famílias —, as repórteres dão um panorama da urbanização em São Paulo, explicando as atribuições municipais para a habitação e a legislação vigente sobre o assunto, além de mostrarem um pouco da vida nas ocupações e da militância pelo direito à moradia. Em seguida, Lucas Almeida escreve a respeito das áreas verdes na cidade. Com entrevistas a arquitetos, engenheiros ambientais e ativistas, o repórter fala sobre as alternativas de desenvolvimento sustentável para a metrópole, de modo que a preservação ambiental, a qualidade de vida e o usufruto da estrutura urbana possam entrar em consonância.

Após a reportagem de Caio Nascimento, que trata das pessoas em situação de rua em São Paulo, o texto de Mayara Paixão, que encerra este especial, apresenta uma possibilidade de cidade para as mulheres. No último mês de julho, foi divulgado nas redes sociais um questionário intitulado “Mulher, você se sente segura em SP?”, no qual mais de quinhentas paulistanas deixaram respostas a respeito de como enxergavam as ruas da cidade, com opiniões, relatos e propostas de políticas para São Paulo. Os resultados da pesquisa indicaram o que já parecia claro: a discriminação e a violência de gênero manifestam-se diariamente no espaço público — incluindo o paulistano —, que, historicamente, não foi projetado para o uso feminino. O texto aponta para uma perspectiva de segurança apoiada na infraestrutura urbana — a qual, além da proteção, ofereça às mulheres melhores oportunidades de vivência e fruição da cidade. 

Ou ainda: não só para elas. Neste especial, a J.Press preferiu acreditar em São Paulo como uma cidade inteiramente capaz de se concretizar em seu potencial urbano, cultural e político; uma cidade na qual, cada vez mais, seus habitantes possam se erguer e tomá-la para si, usando-a livremente. Nós convidamos todos os leitores da Jornalismo Júnior a acompanhar os textos até o final. As reportagens serão publicadas diariamente, de 22 a 30 de setembro, com intervalos nos dias 25 e 28. Boa leitura.

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