Moda e política estão entrelaçadas de maneira tão indissociável que a relação consciente entre as duas pouco ocorre de imediato. O vestuário, da mesma forma que produtos de beleza como maquiagem e perfumes, são peças únicas, mesmo que por vezes produzidas em massa. Cada indivíduo toma as peças para si, transforma-as no que bem entender, uma jaqueta jeans deixa de ser apenas isso e se torna o que o indivíduo queira. Logo, nada mais natural que, ao utilizar da vestimenta para se expressar, as pessoas acabem imprimindo também suas visões políticas e sociais.
Política pelo consumo
A manifestação do casamento entre a expressão da política e da moda se inicia logo pelo seu consumo: o que o consumidor decide comprar, onde e de quem. Nos últimos anos a conversa sobre sustentabilidade e consumo ético vem crescendo nas redes sociais, com o surgimento de influencers como Nátaly Neri, que falam especificamente sobre esse assunto. Assim como marcas vêm tentando se adaptar à nova exigência dos consumidores quanto à produção ética e sustentabilidade. Desde 2018 a Amaro tem instituído iniciativas e medidas para melhorar a sustentabilidade, acompanhada das fast fashions brasileiras C&A, Riachuelo, Renner e diversas outras marcas ao redor do mundo.
A escolha da compra de itens produzidos por empresas de acordo com os ideais do consumidor sempre existiu, mas recentemente ganhou mais força e relevância com marcas sendo “canceladas” nas redes sociais pelas denúncias de trabalho escravo. “Se uma empresa tem uma reputação de exploração de trabalho infantil, matériais antiéticos e demonstra constante repúdio contra a comunidade LGBTQIA+, eu imediatamente deixaria de consumir seus produtos”, relata Tanya, estudante no ensino médio e amante da moda.
Itens, na sua maior parte das vezes, não são especiais e podem ser encontrados em montes com pouca diferença entre as diversas marcas que os produz. A descoberta do lado feio da moda faz com que consumidores se afastem dessas empresas. Natalia, estudante de jornalismo, relata a diminuição do seu consumo de marcas fast fashion ao descobrir os males causados pelas empresas. “Hoje eu priorizo marcas chefiadas por mulheres, empresas pequenas, produções locais, que respeitem o meio ambiente, que têm políticas de não desperdiçarem os materiais. Eu sei que a marca que eu estou comprando hoje em dia recebe um valor digno por costurar, que estou comprando algo em que acredito”.
Merchandising e protesto
A ligação entre moda e política não termina nos hábitos de consumo. A vestuária é comumente utilizada para a retratação mais clara da posição política, serve como merchandising para partidos e figuras políticas, e se torna símbolos icônicos como o boné Maga (Make America Great Again) e a camisa com a estampa do rosto do presidente Bolsonaro.
O uso da vestimenta para identificação de orientação ou partido político não é algo novo. Na história há a presença de vestuários notáveis como o uniforme do exército nazista, facilmente identificável pelas cores e as suásticas nos braços, e do Exército Vermelho da União Soviética, com suas budiónovkas (tipo distintivo de chapéu utilizado pelos miltares russos). A relação se aprofunda ainda mais com a participação de grandes designers em tais grupos militares, como Coco Chanel (fundadora da grife Chanel, que agiu como agente nazista) e Hugo Boss (fundador da grife Hugo Boss, que fez o design dos uniformes do exército nazista).
Mensagens e ícones em merchandising se estendem também para os movimentos sociais, onde cresce a polêmica de empresas fazendo uso de tais mensagens para obter lucro. Com o estouro do movimento Black Lives Matter (BLM, Vidas Negras Importam) nos Estados Unidos, muitas marcas passaram a vender itens de roupa com o nome do movimento, as hashtags BLM , Acab (All Cops Are Bastards, Todos os Policiais São Bastardos), CAP (Cops Are Pigs, Policiais São Porcos) e também itens com a imagem das vítimas de brutalidade policial, como Breonna Taylor e George Floyd.
As mercadorias que lucram em cima das vítimas são alvo de críticas na internet, enquanto as demais deixam apenas um gosto azedo. A professora Cláudia Vicentini, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, explica que esse vestuário, quando é utilizado como símbolo de resistência, se torna político. Logo, se uma indústria grande começa a vender esse slogan, será alvo de críticas. “Por esse slogan hoje ter um valor simbólico muito grande, atrelado ao sofrimento de uma grande parcela da população mundial, essa empresa vai ser questionada. Porque ela está vendendo algo que tem a ver com um grupo que foi historicamente massacrado”.
No entanto, os símbolos do Black Lives Matter, assim como muitos outros, foram usados em roupas e acessórios como forma de protesto em situações nas quais discrição era necessária. O uso da vestimenta como protesto se deu pelos jogadores da NBA, que boicotaram os jogos e vestiram camisas do movimento em demonstração de apoio. Assim como Lewis Hamilton usou um óculos de sol de Black Lives Matter na Fórmula 1, após o veto de camisetas para evitar protestos.
Em 2020 muitas marcas lançaram camisetas e máscaras com a palavra “vote” a fim de incentivar o registro de novos eleitores para a eleição estadunidense que ocorreu no início de novembro. Mais notoriamente a camiseta Model Voter, usada por diversos modelos e influencers no Instagram, que faz parte do projeto Fashion Our Future, uma iniciativa para conscientizar jovens eleitores.
Louis Vuitton usou um suéter com o dizer “Vote” em uma grande fonte para abrir seu desfile na Paris Fashion Week. Peça que foi criticada no Twitter por ser a única do tipo na coleção.
O casamento histórico entre a moda e a política
A ligação entre moda e política ocorre há décadas. Desde a Idade Média até a Era Moderna, quando a aristocracia utilizava vestimentas com os tecidos e materiais mais caros, que faziam com que as peças se destacassem não só pelo formato como também pela qualidade. A moda, feita para os ricos e somente acessíveis para eles, distinguia a classe política — a elite — dos demais.
A identificação da classe política pelas vestimentas hoje não é tão relevante. As grandes grifes ainda existem com seus preços exorbitantes, mas seus itens são muito mais discretos e difíceis de serem reconhecidos por aqueles que não estão mergulhados no mundo da moda. Isto é, quando não se utilizam das logos de suas marcas para demonstração de soberba.
O vestuário, assim como tudo na vida, é política. Seja no seu consumo, na sua produção, na sua representação ou uso, a indústria da moda consciente e inconscientemente se liga aos nossos ideais. Roupas, acessórios e produtos de beleza são parte do dia a dia de qualquer cidadão, tomam forma e significado de acordo com cada indivíduo.
A indústria, no entanto, por maior e mais influente que seja, não tem uma missão para influenciar as massas sobre questões ou movimentos políticos. As marcas dentro desta indústria, que carregam o rosto e nome de pessoas reais, têm o poder de levar essa influência, como citado pela professora Cláudia. O exercício da influência das marcas a favor de causas políticas e sociais é cada vez mais cobrado por consumidores, exigência que vem sido adotada e se torna cada vez mais transparente em marcas emergentes.