Eles estão lá, mas apenas porque foram colocados. Eles não falam, falam por eles. E eles reclamam, mas escolhemos o quanto queremos ouvir. Os animais estão presentes no mundo dos esportes, em meio aos grandes eventos, premiações e apostas milionárias. Contudo, o maior questionamento está no que de fato é feito a favor dos interesses desses animais, a partir de como são vistos socialmente.
Classificação legal
Não há muita segurança a esses seres no âmbito jurídico. No Código Civil brasileiro os animais são classificados como objetos, mais especificamente como “bens semoventes”. De acordo com o Artigo 82: “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”.
Ainda há trechos referentes à condição animal no Código de Defesa do Consumidor, no qual há o direito de arrependimento, que estabelece ser “absolutamente ilegal cláusula que estabelece a recusa da devolução do animal”. Assim, em caso de arrependimento com seu produto, o comprador pode devolvê-lo, tornando a situação dos animais extremamente vulnerável.
A professora Ivanira Pancheri, uma das responsáveis pela disciplina Direito dos Animais na Faculdade de Direito da USP, explica que essa classificação do animal como coisa vem do Direito Romano. Tais nomenclaturas foram criadas como uma forma de proteger essa coisa, tornando-a algo que poderia ser apropriado. Atualmente, não há mais uma discussão sobre os animais serem sencientes, ou seja, de manifestarem emoções. Segundo ela, há um movimento em países como Alemanha e Suíça, para elevar esses animais, e diferenciá-los de objetos não vivos, como uma cadeira, por exemplo. No entanto, nenhum país no mundo atingiu o nível de fornecer uma personalidade jurídica aos animais.
Ivanira também pontua a importância do pensamento denominado One Health, que ajuda a centralizar as principais questões da discussão: “Se não houver esse viés de direito animal, de uma visão exclusiva para o bem-estar do animal, do ser senciente, com respeito à dignidade e à liberdade daquele ser, há um segundo viés que é possível colocar na discussão. A saúde do animal é importante para a saúde do meio ambiente e para uma saúde única, inclusive que nos afeta”.
Há no Brasil um projeto de lei em tramitação que trata sobre essa mudança de status primária. Contudo, o PLC 27/2018, inicialmente proposto pelo deputado federal Ricardo Izar, sofreu intensas modificações a partir da inserção de emendas que, na opinião da professora, restringiram os grupos de animais que se beneficiariam desse reconhecimento.
No final de setembro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro assinou sancionar a PL1095 que altera a Lei de Crimes Ambientais. A partir de agora, a legislação conta com um item específico que diz respeito à proteção de gatos e cachorros.

As questões político-econômicas envolvidas
Os animais passaram a ser apenas uma das atrações dentro das estruturas dos grandes eventos. Passaram a ser um entretenimento no jóquei, considerando que a maior expectativa gira em torno do resultado de uma aposta, e não na emoção e beleza da corrida em si. Dentro desses grandes locais há shows, exibições de carros, feiras culturais, área de camping e também os próprios rodeios. A 65ª edição da Festa do Peão Boiadeiro de Barretos, que permaneceu marcada entre outubro e novembro de 2020, tinha em sua programação um total de 12 atrações musicais marcadas.
Calcula-se que uma edição da Festa de Barretos injete mais de 300 milhões de reais na economia regional, além de proporcionar cerca de dez mil empregos diretos. Assim, há de se imaginar que esse montante seja muito maior, dado que Barretos representa apenas um dos vários grandes rodeios nacionais. Um recente levantamento contabilizou duas mil festas de peão no país.
Além disso, o Brasil constitui o terceiro maior criador mundial de equinos. Na Revisão do estudo do complexo do agronegócio do cavalo, publicada em 2016 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o MAPA, estimou-se que a movimentação econômica da equideocultura seja de 16 bilhões de reais com a indústria do cavalo no Brasil – empregando aproximadamente 600 mil pessoas, diretamente, e 2,5 milhões, indiretamente, responsável por empregar aproximadamente 3 milhões de pessoas em todo o país.
Deve-se levar em consideração que nem todo sertanejo pode ser dono ou financiar os animais dos rodeios. O peão Marcelo Procopio, conhecido nos rodeios como Marcelo Carrerinha e nascido em Rinópolis no estado de São Paulo, reside atualmente em Whitesboro, Texas, e compete profissionalmente nos Estados Unidos. Ele compara os preços dos touros de rodeio ao de carros de luxo: “Às vezes as pessoas não entendem que um touro de rodeio chega a valer até 300 mil reais. Acho que ninguém que paga essa quantia em um touro vai aceitar maus tratos. As pessoas não vão investir dinheiro numa coisa para não cuidar. É o mesmo que comprar um carro de cem mil reais, você vai cuidar dele”.
Sobre os donos dos animais, Marcelo complementa que “são pessoas apaixonadas pelo esporte e que têm o dinheiro. Eles pagam muito caro nos touros de rodeio, é um verdadeiro hobby que eles gostam, fazem por amor mesmo”.
Veicula-se uma justificativa idealizada, dizendo que os rodeios devem ser organizados por constituírem uma tradição sertaneja nacional. No entanto, os primeiros animais criados no Brasil eram da raça caracu. Esses animais são grandes e pesados, o que não condiz com a descrição do perfil de um bovino de rodeio.
Estabelece-se uma relação problemática, ou melhor, extremamente amigável, dado que as recentes posições do ministério tendem a concordar com posicionamentos defendidos pelos grupos de grandes proprietários rurais. Assim, deixa-se de ter um maior âmbito contestador desses protocolos, pois não há um grupo fiscalizador formado por uma pluralidade de posicionamentos sobre o assunto. A professora Ivanira Pancheri definiu o decreto presidencial como “no mínimo discutível”.
Denúncias de maus-tratos
Em entrevista para o Arquibancada, Beatriz Silva, ativista e presidente da ONG Bendita Adoção, página com mais de 20 mil seguidores no Facebook, comentou sobre a grande quantidade de denúncias de maus-tratos. Por mais que existam plataformas de denúncia online como o DEPA (Delegacia de Proteção Animal), a demanda é muito grande. Há, na visão dela, uma necessidade de mudança mais profunda.
“A demanda é muito grande. Entendo até que a Delegacia de Proteção Animal aqui no estado de São Paulo não consiga acompanhar uma quantidade de denúncias de crimes clandestinos, de vizinhos que mantêm animais em correntes”, pontua. Beatriz diz que, dentro de sua função como educadora, é necessário realizar um trabalho de base de educação e transmitir às crianças e aos jovens que os animais não são objetos: “A gente tem que desconstruir as imagens utilitaristas dos animais, que é uma imagem cartesiana que vem de séculos atrás”.
Animais no rodeio
O questionamento principal em torno da utilização dos animais na prática dos rodeios permeia não somente o impacto no animal durante o pouco tempo de duração de uma prova no rodeio, mas também toda a criação daquele animal. Na visão de Marcelo Procopio, essa diferença no tempo de vida constitui uma diferença positiva entre os dois tipos de animais: “Quem pensa muita coisa sobre maus-tratos aos animais do rodeio teria que conhecer o dia a dia do touro de rodeio, como funciona”.
Para o peão, as pessoas fazem esses apontamentos sem considerar a diferença de anos vividos pelos animais: “Um touro de rodeio vive seus vinte e poucos anos. E um touro de abate com três ou quatro anos já está sendo morto”.
No entanto, o animal de rodeio acaba tendo o mesmo fim de um animal criado para a indústria alimentícia, o abate. Um artigo publicado pela revista The Animals Agenda, realizado na década de 1990, realizado pelo doutor em veterinária C.G.Harber, inspetor da USDA – sigla em inglês para Departamento de Agricultura dos Estados Unidos – relatou o estado da carne dos animais que vinham dos rodeios para o abate. O profissional relatou que havia grandes quantidades de fraturas, além de muito sangue acumulado internamente em meio à pele dos animais.
Apesar disso, o breve tempo de participação nos eventos já é suficiente para, no mínimo, questionar tais práticas. O artigo Cruéis Rodeios: A exploração Econômica da Dor, requisitado e publicado pelo Ministério Público de Goiás, é composto por 18 laudos que tratam das várias problemáticas envolvendo a prática dos rodeios.
Um alvo de duras críticas é a utilização do sedém, dispositivo definido pelo Novo Dicionário da Língua Portuguesa como “um cilício de sedas ásperas e mortificadoras”. Nessa mesma obra, “cilício” é definido como tortura e tormento. Esse dispositivo comprime partes das áreas intestinais e do prepúcio do touro, onde se aloja o pênis, constituindo uma região de sensibilidade do animal.
Um dos principais argumentos para aceitar o uso do sedém é o de que uma montaria dura apenas oito a dez segundos. A réplica do documento justifica que, na verdade, o instrumento chega a permanecer 40 segundos comprimindo a região da virilha do animal. No entanto, a pouca duração de seu uso não serve como uma sólida justificativa, pois se esse argumento fosse verdadeiro, não se poderia considerar chibatadas como uma prática dolorosa, dado que o contato entre a chibata e a pele dura milésimos de segundo.
Beatriz comenta sobre a vinda de animais de rodeios para a ONG: “Nós já recebemos animais de exploração de vaquejadas, de prova dos três tambores, animais explorados neste tipo de situação e que tem algum tipo de lesão ou uma fratura e são descartados posteriormente”.
A ativista aponta que nem todas as pessoas que têm esses animais querem continuar com eles depois de feridos. Esses animais já que não podem não retornar ao esporte, ficam mancos, por exemplo, “a gente já recebeu muitos animais nessa situação, que é muito delicada, muito complexa”, complementa Beatriz.
Impactos metabólicos
O professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP e especialista em equinos de alto desempenho Alexandre Gobesso também foi entrevistado para a matéria e comentou sobre o as mudanças ocorridas na rotina de um cavalo atleta, que passa por um estresse de adaptação: “Assim como o início de um programa de treinamento promove mudanças fisiológicas, psicológicas e metabólicas, a falta de atividades físicas, para um cavalo atleta, promove modificações no organismo como um todo”.
Alexandre atesta que “qualquer alteração na rotina de um cavalo que está condicionado fisicamente e psicologicamente ao treinamento, passará por estresse, que irá variar de acordo com o temperamento de cada animal”. Segundo Gobesso, a falta de atividade física provavelmente ocasionará ócio, que se não for trabalhado, pode gerar distúrbios comportamentais.
Há muitos métodos de avaliação dos animais baseados em medidas fisiológicas, como frequências cardíaca, pulmonar e de concentração plasmática de lactato, por exemplo. Existem também outros parâmetros mais sofisticados – como o volume de oxigênio consumido e sudorese – que, além de serem usados como métodos comparativos entre animais, servem para o monitoramento de treinamento e prevenção de lesões.
Quando perguntado sobre os grandes eventos esportivos com animais, o professor Alexandre disse que, primeiramente, é necessário considerar que “o esporte existe para beneficiar o homem”. A partir disso, ele fala que os grandes eventos esportivos não representam a maior ameaça ao bem-estar dos animais.
De acordo com ele, mesmo que as grandes arenas dos rodeios tenham muitas luzes e barulho, esses animais já estão adaptados a esse ambiente, e que nesses espaços há maior fiscalização de ONGs, veterinários e, até mesmo, por parte dos organizadores. Alexandre identifica que o maior problema está nos eventos pequenos e irregulares, nos quais não é possível garantir tanta segurança aos animais.
Vieses de pensamento
As palavras de Alexandre estão bastante de acordo com a Teoria dos Cinco Domínios, proposta por Mellor e Reid, em 1994. Essa teoria é constituída por um método sistemático que inclui quatro domínios físicos ou funcionais (Nutrição, Ambiente, Saúde e Comportamento) e um domínio mental (Estado Mental ou Afetivo). Anteriormente à Teoria dos Cinco Domínios, em 1965, o Comitê Brambell definiu as Cinco Liberdades do Animal: liberdade de fome e sede, de medo e ansiedade, de desconforto, de ferimentos, dor e doenças e de expressar seu comportamento natural.
As duas visões divergem, pois a Teoria das Cinco Liberdades é lida, muitas vezes, como um conceito total. O principal argumento daqueles que discordam dessa teoria é o de que na natureza é impossível que o animal encontre-se em um estado livre de dor ou de qualquer experiência negativa. A Teoria dos Cinco Domínios, por sua vez, trabalha de forma escalar, indo de uma experiência extremamente negativa para uma extremamente positiva para o animal, trabalhando continuamente para atingir o equilíbrio entre os domínios inadequados.
Eles estão lá, e estão lá por nossa causa. Não há dúvidas que o animal é utilizado em benefício do homem. Nesse cenário, observa-se o espectro variado entre aqueles que talvez não concordam ou enxergam tal fato e agem de forma exageradamente antropocêntrica; aqueles que enxergam e buscam alternativas de atenuar inadequações e aqueles que têm consciência desse fato e questionam as mais diversas formas de exploração animal.